Ode a Vénus
Deusa nua e perfeita
Que incendeias a carne e a ressuscitas, Que tornas viva, activa,
insatisfeita, No final da colheita, A matriz corroída que
visitas:
Vem outra vez ao triste acampamento Destes
pobres mortais! Vem, nesse primaveril deslumbramento,
Trazida pela bruma e pelo vento Da morada das fontes naturais!
Molhada pelo mar salgado e frio, Sai da concha e passeia A
regar de frescura, amor e cio O deserto vazio Desta areia!
Porque tu és o mito redentor! És a flor Que há-de
chegar a fruto! És a poesia, o sol, o fogo eterno A aquecer
cada inverno Que fecha o céu da vida no seu luto.
Deusa! Mulher e aparição num corpo só! Seios, umbigo, coxas e
cabelos Que são fios abertos de novelos Onde se aperta a
seiva como um nó.
Presença virginal e fecundada, Quem
se pode salvar sem te sentir Quente e marmórea no seu leito?
Senhora, concubina e namorada, Ver-te despida é já de si despir
O sarro morto que se tem no peito!
Da penumbra do tempo
vem teu nome Cinzelado na pedra da verdade; Da raiz desse
tempo vem a fome Dum beijo submisso que nos dome à sua
maternal humanidade.
Lodo e ternura, lume e arte. Um
seio que dê sonho e alimente! O desejo a buscar-te, A
condição a dar-te, E toda a lama do prazer ausente!
Na
própria chama acesa Arde a lenha do mal. Arde, e fica
certeza Do halo que circunda a realeza Que toca cada coisa
natural.
Vem, grega sabedoria dos sentidos! Sem pecado e
sem vício, mostra erguidos Os instintos, a forma e a paixão!
Filha de artistas e da natureza, Só te pede a beleza Quem a
traz a bater no coração!
:: Miguel Torga, in "Odes",
1946; "Poesia Completa", 2000) ::
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