Civilização de Especialistas
A
verdade é que hoje vivemos numa civilização de especialistas e que é vão todo o
empenho de que seja de outro modo. Sob pena de não ser eficiente, o homem das
artes, das ciências e das técnicas tem de se especializar, para que domine
aqueles segredos de bibliografia ou de prática, e para que obtenha os jeitos e a
forte concentração de pensamento que se tornam necessários para que se possa não
só manejar o que se herdou mas acrescentar património para as gerações futuras.
E, se é certo que por um lado o especialismo favorece aquela preguiça de ser
homem que tanto encontramos no mundo, permite ele, por outro lado, aproveitar em
tarefas úteis indivíduos que pouco brilhantes seriam no tratamento de conjuntos.
O preço, porém, se tem naturalmente de pagar; paga-o o colectivo quando se
queixa, e muito justamente, da falta de bons líderes, de homens com uma larga
visão de conjunto, que saibam do trabalho de cada um o suficiente para o poderem
dirigir e se tenham eles tornado especialistas na difícil arte de não ter
especialidade própria senão essa mesma do plano, da previsão e do animar na
batalha as tropas que, na maior parte das vezes, mal sabem por que se batem;
paga-o o indivíduo quando, no cumprimento de uma missão fundamental para os
destinos do mundo, se arrisca a ser político e sofre todos os habituais ataques
dos especialistas de um ou outro campo que se não lembram de que o defeito para
o político não é o de não ser técnico mas o de não ouvir os técnicos e não lhes
dar em troca, a eles, o sentido largamente humano que tantas vezes lhes falta.
E, mais grave, paga-o de um modo geral a própria natureza humana, que embora
gostosamente embalando a sua preguiça nas delícias do especíalismo, sente ainda,
mais fundo e constante, o remorso de o ser.
Ao
certo, remorso de quê? Em que trai o homem, sendo especialista, a sua verdadeira
missão de homem? Creio que em vários pontos. Um deles seria, por exemplo, no que
respeita à fraternidade humana. Impedido pela especialização, pela
compartimentação do saber, pelo emprego até de uma linguagem que se torna
incompreensível para quem não andar exactamente pelos mesmos caminhos, de
estabelecer relações com os outros em plano verdadeiramente elevado, o
especialista tende ao ideal de uma civilização em que cada minhoca fosse
paciente e forçadamente cavando a sua galeria, e daí em grande parte a sua
reacção quase instintiva contra o político; daí a facilidade com que colabora em
guerras e, dentro das guerras, em engenhos cada vez mais mortíferos e mais
bárbaros, com a desculpa fácil de que a guerra é talvez fatal, talvez da
natureza humana, e lhe não compete a ele senão olhar a sua retorta ou apertar o
seu parafuso; daí o até agradecer, embora com um certo jeito de quem consente em
extravagncias, que a própria arte, que lhe poderia dar a chave das portas que o
fecham, se tenha também tornado uma questão de especialistas. E só vem a ter
alguma ideia do que seja fraternidade quando bebe, quando joga, ou quando, numa
Humanidade em filas e às escuras, olha no cinema, através da mais simples das
artes, homens não especialistas cumprindo, bem ou mal, a sua natureza humana.
Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios
Filosóficos'
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