É
visível que o desconforto da população brasileira está
crescendo exponencialmente, apoiado por uma imprensa
cada vez mais atenta e agressiva.
A
Itália e o Brasil se parecem em muitas coisas, a começar
por aquilo que os italianos definem como gioia de
vivere, a alegria de viver, aquela capacidade rara
de não se levar totalmente a sério, rir das próprias
mazelas e saborear aquilo que a natureza e o gênio
humano colocaram ao seu dispor gratuitamente: a riqueza
cultural, arquitetônica, histórica, gastronômica e
artística da Itália; a maravilha natural e humana da
Terra Brasilis que “tinha todos os climas, todos os
frutos, todos os minerais e animais úteis, as melhores
terras de cultura, a gente mais valente, mais
hospitaleira, mais doce e mais inteligente do mundo – o
que precisava mais?” como escreveu Lima Barreto.
Brasil
e Itália tinham algo mais em comum: a corrupção política
pandêmica, entranhada nos costumes, aceita
tranquilamente como um fato da vida pela população, que
desenvolveu uma atitude cínica ou resignada em relação à
absoluta desenvoltura com que as elites políticas
saqueavam o Estado ou transformavam a vida pública em
uma continuação da privada, como dizia Aparício Torelli,
um filho de italianos que se transformou no
brasileiríssimo Barão de Itararé, o nobre fidalgo de
Bangu-sur-mer. Até que, nos anos noventa, o juiz Antonio
Di Pietro deflagrou a campanha das Mãos Limpas (Mani
Pulite). Centenas de políticos italianos foram
investigados, muitos foram presos e, confiantes na
crônica impunidade, as lideranças parlamentares tentaram
anistiar os crimes e desqualificar as acusações. O
ex-premier Bettino Craxi recorreu até mesmo a um
argumento brasileiríssimo: “Todos fazem a mesma
coisa...” (Já ouviu esse argumento em bocas por estas
nossas paragens, paciente leitor?).
Mas,
daquela vez, o caldo entornou, os italianos tão
tolerantes e risonhos se encheram com tanta desfaçatez e
a campanha tomou corpo; todas as tentativas de anistiar
os envolvidos foram rechaçadas pela população indignada,
e o sistema eleitoral teve de ser modificado para
aplacar a ira popular. Muita gente, antes intocável,
acabou na cadeia, alguns se suicidaram, os principais
partidos políticos implodiram. Nunca mais a Itália foi a
mesma. Ficou ainda melhor quando limpou as cavalariças
do poder.
Quando
faremos a mesma coisa? Quando será que a população irá
se encher com tanta desfaçatez e mostrará que sua
paciência tem limites, que seu bom humor não é infinito?
Quando isso acontecer, quem sabe o presidente Lula pare
de querer transformar em pecadilhos veniais os hábitos
malcheirosos que tomaram conta de boa parte do aparelho
político brasileiro. Ou, então, deixe de considerar
natural que a estrutura do Estado seja utilizada com
desenvoltura como extensão dos negócios particulares da
família Sarney, como tem feito. Ou, então, entenda que
quando se abraça com Collor e se socorre dos bons
ofícios de Renan Calheiros, transmite à população uma
sensação, mesmo que involuntária, de absoluta tolerncia
com o que a vida pública brasileira tem de pior.
É
visível que o desconforto da população brasileira está
crescendo exponencialmente, apoiado por uma imprensa
cada vez mais atenta e agressiva. O temor reverencial da
“otoridade” típico de nossa cultura começa a ser
substituída por impaciência e indignação que se
realimentam com cadavez mais vigor. Ainda estamos longe
de atingir o ponto de absoluta fadiga de materiais a que
chegaram os italianos, mas tudo indica que estamos no
caminho.
Quando
a iniquidade, a desfaçatez e o cinismo das mani
sporche tomam conta das esferas de poder, a
população costuma reagir de maneiras extremadas: ou se
refugia na abulia, tapando os narizes e procurando
conviver com o inconvivível; ou explode irada como na
Revolução Francesa, abandonando qualquer resquício de
civilidade na esperança (diga-se de passagem sanguinária
e ilusória) de corrigir o mundo de uma só vez. Os
responsáveis pela Mani Pulite italiana ensinaram
ao mundo que é possível melhorar substancialmente a
qualidade da vida política sem perder o bom humor, sem
abdicar da gioia de vivere.
Belmiro Valverde Jobim Castor
- é professor do Doutorado em
Administração da
PUCPR.