A Páscoa Cristã
A expansão das reflexões filosóficas dos primeiros cristãos, associada ao surgimento de uma Igreja formal, entre os séculos I e IV AD foram responsáveis, inicialmente, pela formulação de uma doutrina básica, iniciática, do Cristianismo - não sem inúmeros “rachas” e dissensões que passariam a atender pelo nome coletivo de“heresias” ao longo dos mais de mil anos que separam este período da diáspora da Reforma Protestante.
Dentro desta doutrina básica,“aperfeiçoada” esporadicamente por Concílios, Éditos e Bulas Papais, sempre houve espaço para a imitação dos ritmos da natureza e dos costumes do Homem no calendário católico. Tanto que, ao longo da História, vemos a Igreja adaptar peculiaridades de cultos pagãos à sua própria mitologia (por exemplo, abraçando a “Festa do Sol” germânica como a data de celebração do Natal), promovendo ela própria todo tipo de sincretismo de que hoje, conhecido e colonizado todo o planeta, quer se distanciar.
A celebração de festas judaicas, como o Pessach – celebrado no primeiro domingo após o dia 14 de Nissan - foi mantida pelos cristãos primitivos, especialmente os judeus convertidos, mais como um costume do qual era difícil livrar-se do que por razões canônicas.
As próprias contradições evangélicas contribuíam para a dissociação do evento em relação à Morte e Ressurreição de Cristo (por exemplo: São João coloca Cristo morrendo à hora do martírio dos cordeiros pascais, depois de uma celebração antecipada da festa, ao contrário dos outros evangelistas que O põe na Cruz após a celebração do Pessach mesmo, na assim chamada “Última Ceia”, numa assincronia pouco explicada). A “Páscoa de Cristo” e toda a rede de interrelações semióticas entre Jesus e o Cordeiro, a “passagem” dos judeus e a travessia de Cristo para e de volta do mundo dos mortos, eram abstrações que só seriam perfeitamente assimiladas depois.
Naquele momento de choques intensos entre as várias interpretações históricas e evangélicas, a“controvérsia pascal” só seria resolvida pelo Concílio de Nicéia (325 AD), que desvinculou definitivamente a Páscoa Cristã do Pessach Judaico, não só em termos semiológicos e místicos, mas também em relação ao cálculo de sua data.
Um cálculo bastante complicado baseado no calendário lunar (como o judeu) - e não no solar (como os calendários Juliano e Gregoriano) - permite estabelecer uma das várias datas prováveis para a Páscoa da Igreja Ocidental (sempre entre 22 de Março e 25 de abril). Desconhecido da maioria dos mortais, o cálculo desta data foi objeto de estudo até mesmo de grandes matemáticos - como Carl Friedrich Gauss, que fez uso de algoritmos para melhor defini-lo.
Em um Congresso em 1997 (Aleppo, Síria), o Concílio Mundial das Igrejas propos uma reforma no cálculo da data da Páscoa, baseada doravante em calculus astronômicos diretos que eliminariam as diferenças de data entre as Igrejas Ocidentais e Orientais, reforma esta que deveria ter começado a ser implementada a partir de 2001, mas até o momento não foi adotada por nenhuma das igrejas representadas.
Enquanto isso continuamos nós, cristãos do mundo todo, a pensar nos feriados ao fim do primeiro terço do ano mais como uma celebração de consumo, naufragados entre ovos de chocolate ou verdadeiros, pintados, entre novos mitos como coelhos e novos costumes como a troca de presentes, numa verdadeira elegia à fagocitose do espiritual pelo Capitalismo.
O sentido real disso tudo, desta festa oriunda de tantas histórias relembradas e esquecidas, continua obscuro a aqueles que têm fé – mas carecem de entendimento histórico; continua muito claro a aqueles que acreditam em dogmas – mas não possuem a largueza de espírito para refletir realmente sobre o que estão celebrando; e ameaça – como o Natal - tornar-se apenas mais um feriado para aqueles que não acreditam, mas apreciam os festejos e a suposta integração social e familiar oriunda deles. Afinal, até em países como a China e o Japão – tradicionalmente não-cristãos – a Páscoa tem sido comemorada...
Meus votos são, enfim, de uma Feliz Páscoa:
- Para os que têm fé: que procurem o entendimento filosófico e histórico da data, a fim de melhor celebrá-la.
- Para os que só possuem o verniz da religiosidade: que busquem, nestes dias, crescer na fé.
- Para o resto dos mortais: que chafurdem no melhor chocolate que seu dinheiro puder comprar. Depois do bacalhau, é claro. E com muito prazer!
Renato van Wilpe Bach |