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histria: AS GUERRAS DO ZAMBEZE - PARTE 1
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De: manuelnhungue (Mensaje original) |
Enviado: 07/09/2007 02:17 |
AS GUERRAS DO ZAMBEZE PARTE 1 D - NASCIMENTO DOS SUPER-PRAZOS Se deixarmos esta base e olharmos para a superstrutura, ou melhor, para o seu nascimento, assistiremos à eclosão de um fenómeno único na África tropical durante o período colonial: a evolução de uma instituição que, incumbida a princípio de defender os interesses metropolitanos, ia transformar-se, por uma rápida africanização, numa máquina de guerra virada contra esses mesmos interesses. Com isso, o andar médio da pirâmide serviria de resguardo entre o vértice e a base e atrasaria durante três ou quatro décadas a conquista da infra-estrutura. 1) A selecção natural pela força Os colonos e os chicundas, triturados e dizimados, e deixados ao abandono nos prazos do Sul, aglutinaram-se em redor de alguns senhores de prazos decididos a resistir a sul do Zambeze ou então atravessaram também o rio para ir instalar-se na margem norte, nos prazos de Quelimane e do delta. O fenómeno é duplo: 1) os pequenos senhores, apenas com algumas aldeias, não tinham capacidade para lutar com os Angunes e deixaram a Zambézia ou foram refugiar-se nos postos de Tete, Sena e Quelimane ou até em Moçambique, em Goa ou na Metrópole, confirmando assim a sua tendência para o absentismo; 2) os grandes senhores de prazos foram, portanto, o único recurso dos habitantes. Atraíram a si os chicundas que estavam na disponibilidade devido à fuga dos respectivos senhores e fortificaram-se num processo acelerado, parecido com a evolução que costumava observar-se nos Impérios em vias de extinção. a) A fortificação Na Zambézia, o castelo dos senhores de prazos seria a aringa, isto é, um formidável acampamento entrincheirado, constituído por um recinto cercado de estacas enterradas no chão que pegavam e voltavam a crescer oferecendo uma barreira vegetal que resistia bastante bem à artilharia da época. As grandes aringas, comparáveis aos kraals do centro e sul de Angola, podiam chegar a ter dois quilómetros de perímetro e albergar até 6 000 homens - e, num caso, 15 000 pessoas. O senhor, a sua família, os escravos, os soldados, os "serviços administrativos" e até o próprio gado podiam resistir tanto melhor aos assaltantes quanto mais perto de nascentes ou de rios fossem construídas as suas aringas. Uma inovação extraordinária nesse mundo banto era a presença, por vezes, nos super-prazos, de canhões instalados em bastiões de pedra. Nada pode, talvez, traduzir melhor o apagamento do Estado português. As primeiras aringas começaram a ser construídas nos anos 40 e, à medida que se ia acentuando a insegurança, os grandes senhores iam-se transformando no Estado, pois este dava-lhes ou vendia-lhes o armamento necessário enquanto o não perdia nas ulteriores derrotas. b) Os barões bantoizados Voltara o tempo dos caudilhos do século XVII, mas dissolvera-se o laço, já muito leve, com o suserano. Em certos casos, a outorga do arrendamento era já uma simples ficção; e em seguida cessou. O domínio do senhor passou então a ser hereditário e a ampliar-se pela conquista armada sem a mínima preocupação com o seu reconhecimento pelas autoridades coloniais. Perante esta impotência, Moçambique tentou salvar as aparências fazendo capitães-mores dos mais ameaçadores de todos aqueles potentados - para terminar desse modo o processo do seu enfraquecimento e perda de prestígio ao delegar as suas funções nos mais ousados e poderosos, isto é, nos que mais se afastavam do respeito pelo nome de português. Com efeito - factor de capital importância -, os grandes senhores que tinham sobrevivido localmente às invasões angunes já não eram os senhores do século XVIII: eram cada vez menos portugueses e cada vez mais bantos. A proporção de sangue branco era já, ou ia ser dentro em breve, tão pequena que os senhores se não distinguiam dos seus súbditos senão pelo uso de uma língua mais ou menos corrompida, por umas aparências de catolicismo desencaminhado, pela farda portuguesa e, evidentemente, pela concentração do poder. Com o correr dos anos, um punhado de senhores de prazos transformou-se num conjunto de chefes africanos, fundadores de novas dinastias - para não dizer de micro-Estados. O Zambeze engolira os seus conquistadores e a História ia fazer dos descendentes destes os principais obstáculos à implantação colonial de ambos os lados do grande rio. 2) Os novos dinastas Enquanto não examinamos, no período seguinte, quatro outras destas entidades políticas (Matakenya e Macololo, a norte do Zambeze, e Kanyemba e Carazimamba, a sul), trataremos desde já ('") das origens de cinco dessas novas dinastias antes de 1858. Isso a fim de melhor definir a natureza dos seus conflitos com a autoridade portuguesa, que durante muito tempo fingiu considerá-las como rebeldes quando, das cinco aqui estudadas, três estavam, na realidade, à frente de entidades independentes, uma dava origem a uma república militar e a quinta se limitava politicamente à vida do seu fundador. Esses macro-prazos em plena expansão territorial e ultrapassando todos eles as fronteiras dos antigos domínios da Coroa, eram o que um autor denomina supra-prazos polities ou, mais simplesmente, Estados secundários. Examinaremos primeiro as dinastias do norte do Zambeze, de montante para jusante, e depois as do sul, subindo de novo o rio, para terminar por aquela que havia de infligir aos Portugueses as mais pungentes derrotas. E - MACANGA: A DINASTIA DOS PEREIRAS 1) Uns Afro-goeses turbulentos Macanga, que não era, juridicamente, um prazo, pois não pagava foro, seria até 1902, sob a direcção dos Pereiras, uma entidade, ou mesmo um Estado, independente e depois protegida. O fundador fora um goês, Gonçalo Caetano Pereira que, vindo para Moçambique por volta de 1760, se apoderara de jazidas auríferas (os bares) a norte de Tete, na região dos Maraves, e viria a receber o território da Macanga das mãos do Undi e, por alianças com os regulados, pela pura e simples violência e pelo comércio com o Cazembe, construíra um feudo que na altura do seu falecimento era já de enormes dimensões. Seu filho, Manuel Caetano, herdaria o título de capitão-mor, dominaria a região marave com os seus soldados-escravos chicundas e protegeria os destacamentos do Exército regular enviados além do Zumbo, no rio Aruângua, em 1827 (feira de Marambo). Considerava-se que era amigo e aliado da Administração de Tete, e passa por ser o homem mais poderoso da região dos Maraves durante as três primeiras décadas do século XIX. Quando se reformou da sua carreira de sertanejo patriótico, o poder passou para seu irmão, Pedro Caetano, que estava muito menos próximo dos interesses de Tete. a) Choutama, o iniciador das guerras Pedro Caetano, ou Choutama, é tido por primeiro régulo, ou rei, da Macanga. Notamos a viragem política: geneticamente, Pedro Caetano não podia ser senão um mestiço afro-gôes e, portanto, ainda próximo dos Portugueses, e, para mais, era capitão da milícia de Tete. No entanto, recusou-se a acompanhar a missão oficial de José Maria Correia Monteiro e António Cândido Pedroso Gamitto, que foram enviados em 1831-1832 para reatar relações com o Cazembe. Tinha já mais que um pé na sociedade africana tradicional, pois estava à frente do regulado de Chicucuru. Em 1840 inaugurou aquilo a que os historiadores portugueses chamam "guerras do Zambeze" ao expulsar das suas terras um régulo marave de nome Bive (Bivi), o qual pediu socorro aos Portugueses de Tete. Os moradores de Tete, que já naquela época não tinham com que felicitar-se pelo monopólio comercial (marfim e escravos) dos Pereiras entre o Revubué, afluente do norte do Zambeze, e uma grande parte da região marave, organizaram uma pequena expedição, dirigida pelo tenente Rodrigo Jacinto de Sousa, contra o seu próprio capitão de milícia e foram bastante maltratados a 8 de Maio de 1841. Tiveram de esperar por 23 de Março de 1842 para pôr Choutama em fuga, mas ele continuou com as incursões. Por fim, os Portugueses de Tete reuniram forças suficientes, recrutadas nos prazos, para invadir a Macanga com êxito em 1843. São atribuídas a essa expedição quatro companhias (Quelimane, Sena e duas de Tete), ou seja, 300 homens, e cinco pequenas peças de artilharia. Choutama fingiu submeter-se e pediu paz. Nos anos seguintes, dedicou-se ao reforço do seu domínio entre o Chire e o rio Aruângua: vários regulados e prazos do norte caíram sob a sua alçada. Não se ficou por aí e organizou o bloqueio comercial de Tete para noroeste. Pôs a resgate e saqueou os moradores de Tete e ganhou, de facto, uma espécie de protectorado na povoação. Faleceu a 17 de Março de 1849. b) Chíssaca, o vitorioso (1849) Seu filho, igualmente Pedro Caetano, dito Chissaca (""), julgou que o pai fora envenenado por um membro da família dos Cruz, senhores de Massangano, na outra margem. Pediu, portanto, a Tete que lhe entregasse os culpados e, perante a recusa das autoridades, enviou, a partir de 19 de Maio de 1849, os seus escravos (600 a 700 homens) para que devastassem as aldeias dos prazos de Tete da margem norte e, em especial, as dos Cruz. Por pouco se não apoderou de Tete, que tinha à justa as forças necessárias para mandar alguns destacamentos dar alívio aos senhores de prazos que não fugiram. A requisição das pirogas impediu-o de atravessar o rio. O comandante militar de Tete pediu a Quelimane artilharia e 150 a 200 homens, na esperança de que Joaquim José da Cruz, senhor de Massangano, ainda fiel, acorresse em seu socorro com 600 homens. Mas Cruz fez-se esperar. Ò comandante lançou uma subscrição entre os moradores de Tete e reuniu panos suficientes para aliciar Chibiça, régulo marave da margem esquerda, e Cataruza, o Mwene Mutapa da altura. Depois de novas demoras, o capitão João de Sousa Nunes de Andrade atravessou o Zambeze a 6 de Agosto de 1849 com 57 homens de primeira linha, oito milicianos e l 881 escravos e homens livres, armados com 395 espingardas e armas indígenas. A 19 de Agosto recebeu uns escassos 80 homens de Chibiça e a 23 de Agosto defrontou os de Chissaca, que sofreram cerca de 200 mortes. Mas a 24 de Agosto de 1849, quando a mísera coluna se dirigia para a aldeia de Chissaca, os auxiliares fugiram e Chissaca atacou. Os Portugueses debandaram, abandonando a artilharia (duas peças), e perderam um capitão de segunda linha, um sargento, dois soldados e uns vinte auxiliares. Essa franca derrota infligida pelos Pereiras viria depois a provocar a destituição do governador de Tete e novas exigências de Chissaca, que reclamava o prazo de Chingoza, pertencente à família Cruz. 2) A guerra comercial a) Contra Massangano dos Cruz (1853) O novo comandante militar de Tete, Tito Augusto de Araújo Sicard, remendou uma paz claudicante que durou três anos e recuperou a artiIharia perdida; mas Chissaca não desistira da sua vingança sobre os Cruz e atravessou o Zambeze na estação seca de 1853; aliado ao Macombe Chipapata, rei do Barué, pôs cerco em pessoa à formidável aringa dos Cruz, em Massangano. De Junho a Outubro de 1853, 4 000 homens, 600 dos quais armados com espingardas, tentaram tomar o "castelo verde" dos Cruz; mas em vão. Neste conflito, os Portugueses de Tete optaram por uma prudente aparência de neutralidade, pois o comandante militar estava, de facto, cheio de terror por causa de Chissaca. Conhecendo-se a moralidade administrativa daquele tempo, não é de espantar ver-se Chissaca, um "rebelde", ou melhor, um inimigo, aliar-se a um vizinho de Portugal, o Barué, para guerrear num prazo contra um "vassalo" de Tete, investido por Tete na missão de defender a fronteira. Os Cruz de Massangano, bombardeados, pediram auxílio aos seus "protectores" e apenas conseguiram alguns quilos de pólvora, vendidos a preço exorbitante. Não o esqueceriam, mas resistiram aos bombardeamentos de uma peça que o rei do Barué tomara a um comboio do governo. O Macombe chegou a requisitar e obter, mediante ameaças, dois artilheiros europeus que dispararam contra Massangano . A 15 de Outubro, os cercados conseguiram realizar uma surtida vitoriosa que derrotou os homens dos Pereiras (os Macangueiros) e do Barué (os Baruistas). Capturaram três peças de artilharia. A guerra terminara e os "soldados" de Chissaca, derrotados, regressaram à outra margem do rio. É perfeitamente evidente que, nestas guerras entre Macanga e Massangano, travadas num território nominalmente português, a táctica da Administração consistia em enfiar a cabeça entre os ombros e aguardar que os adversários se esgotassem. Assim se poupava o Exército "regular" ou que por tal passava. Para Macanga, a questão estava em impedir, custasse o que custasse, que a influência comercial dos Portugueses de Tete e dos prazos do norte, bem como a estrela de Massangano, a sul, irradiassem até ao Niassa, ao noroeste e ao nordeste por intermédio de caravanas de Bisas (para noroeste) e Ajauas. Eram igualmente seus inimigos os regulados maraves ainda não submetidos (Chibiça, o leste do Chire), os prazos entre o Revubué e o Chire e o Massingire. A 15 de Outubro de 1853 deu-se, pois, uma viragem na história da Zambézia, visto que Chissaca, ao qual se atribuía o intuito de voltar-se contra Tete e Sena depois de vencer Massangano, nunca mais encontraria meios para atirar-se aos postos da margem direita do rio. Estaria em declínio a estrela da Macanga? b) O apogeu da Macanga Entre 1849 e a sua morte, ocorrida em 1858 numa campanha contra os Pimbes (Maraves do oeste), Chissaca não rompeu abertamente a paz com os Portugueses. Chegou até a enviar-lhes, em 1854 e 1855, contingentes de tropa para combater Massangano. Podemos considerar que uma família que fazia sentir o seu poder até para lá de Kariba e até ao Chire, que bloqueava à sua vontade as caravanas que se dirigiam ao Niassa e que comprava tantas armas quantas as que Sena lhe podia vender era uma permanente ameaça para os Portugueses. Apoiadas no tri-nómio escravos-marfim-armas, três gerações tinham bastado aos Pereiras para formar um desses efémeros "impérios" que existiram na África Central no século XIX. Chissaca (1849-1858) assinala, pois, o apogeu desta dinastia afro-goesa; mas Macanga nem por isso deixou de inquietar a guarnição de Tete. F - MASSINGIRE: A DINASTIA DOS VAZ DOS ANJOS 1) Um negreiro afro-goês: Mataquenha I A história desta dinastia antes de 1854-1857 é aparentemente menos turbulenta, provavelmente por ser menos longa. Ó seu fundador fora igualmente um goês, Paulo Mariano Vaz dos Anjos, que no início do século se instalara como senhor de vários prazos; era coronel da milícia e era um comerciante muito rico, já idoso em 1823, quando uns oficiais da Marinha britânica o encontraram em Maruro, na margem norte do baixo Zambeze, a sul da ligação fluvial entre este rio e Quelimane. Seu filho, Paulo Mariano II, tinha os mesmos dois primeiros nomes que o pai mas é mais conhecido pela alcunha de Mataquenha I (aquele que faz tremer) devido à sua crueldade. Pai e filho reuniram à sua volta vários regulados manganjas e colonos e/ou chicundas tongas e senas que tinham atravessado o Zambeze. Enriquecidos com o tráfico negreiro, podiam assoldar "soldados profissionais". Mataquenha I, casado com a filha de Galdino Faustino de Sousa, um dos mais poderosos senhores de prazos de Sena e insigne negreiro, seguiria as pisadas do sogro. Este, em 1852 ou 1853, invadiu a montanha de Morumbala, uma espécie de república de escravos foragidos e de homens insubmissos à lei dos senhores, a quem flagelavam ao longo do Chire e do Zambeze. Galdino Faustino de Sousa implantou uma aringa em Morumbala e apanhou, naturalmente, a sua parte do saque de escravos ali feito. Este conquistador do sul do Estado manganja legalizou as suas proezas ao obter o prazo de Massingire. Tal como os Pereiras da Macanga, Galdino Faustino de Sousa receava o poderio nascente dos Cruz de Massangano e viria a fornecer um importante contingente de soldados e carregadores para a campanha portuguesa de 1854 contra Massangano. Esse exército privado era comandado por seu genro, Mataquenha I, que por morte de Galdino Faustino de Sousa, nesse mesmo ano, herdou a aringa, os interesses comerciais do sogro negreiro e, principalmente, os chicundas. Mataquenha I, que era também cunhado de António José da Cruz Coimbra, o principal exportador de "engagés" (contratados) para a Reunião, considerou-se no dever de arranjar "mercadoria" devastando os prazos à volta de Sena, o que não podia deixar de atrair sobre ele a hostilidade dos senhores de prazos seus vizinhos e, de um modo mais acessório, a da guarnição da praça. 2) Uma potência no Baixo Zambeze Depois de repelido, Mataquenha I retirou para a margem esquerda, na qual ampliou os seus domínios à custa de razias para norte, na região dos Cheuas, e construiu uma temível aringa em Chamo, num ilhéu do Chire abaixo de Morumbala, protegida pêlos pântanos. Essa aringa era, na realidade, uma praça forte que dominava a navegação, com paliçada dupla, aterro, um arsenal que podia conter até 7 000 espingardas e quatro canhões de bronze. Mataquenha I e seu irmão, recolhidos nessa cidadela, entregaram-se impunemente à caça de escravos que o cunhado depois exportava. Em 1854-1855, as vilas de Tete e Sena embaraçadas na luta contra Massangano, a montante, estavam incapazes de organizar urna acção contra este negreiro que não tinha sequer o cuidado de disfarçar as suas actividades sob uma qualquer capa. Chegaria até a atacar a guarnição de Sena. Mas ao terminar a campanha de 1854-1855 contra Massangano, as autoridades decidiram desferir um grande golpe. Mataquenha I foi preso quando se encontrava em Quelimane (1857) e ficar-nos-emos, provisoriamente, por este episódio da crónica dos altos feitos e malfeitorias desse chefe de bandidos, que mais tarde viria a reconstituir as forças a ponto de transformar-se, com o nome genérico do seu Estado, o Massingire, num adversário difícil de vencer. G. MAGANJA DA COSTA: OS LEAIS ALVES DA SILVA O mundo do distrito de Quelimane era híbrido, pois os prazos estendiam-se, certamente, a partir do delta mas seguiam, principalmente, a costa até Angoche, cuja fronteira variava, conforme as épocas, do Ligonha ao Moniga (ou Tejungo). Não havia ali Estado nem dinastia propriamente ditos; mas, na Maganja da Costa, uma sucessão de senhores de prazos com relações de parentesco e cujos soldados iriam constituir uma república armada, extremamente original, no final do século. O primeiro que se assinala é um português (e não goês), António Alves da Silva, pai de João Bonifácio Alves da Silva, o adversário de Mussa Quanto de Angoche. Os seus princípios foram modestos: comércio de longo curso e consolidação dos prazos à beira do ĺndico pelo sistema das aringas, ao qual Mussa Quanto, saindo de Angoche, infligiria rude golpe em 1855 ao destruir a grande aringa do prazo, em Maganja da Costa (perto de Erive). Como os interesses dos primeiros Alves da Silva coincidiam com os da Coroa, a Maganja da Costa seria, inicialmente, o braço forte da autoridade portuguesa contra os outros senhores de prazos e contra Angoche. Essa aliança, e a forte proporção de sangue branco que havia nos senhores do prazo fizeram da Maganja da Costa um todo que, antes do mais, era um macro-prazo e que só viria a levantar-se contra os Portugueses quando os soldados não tivessem já senhores que de tal os impedissem. Incluimo-lo aqui para conhecer os antecedentes da resistência do fim do século. Por enquanto, os Alves da Silva eram "vassalos" fiéis que defendiam a região fronteiriça com o mundo suahili e, ao mesmo tempo, a explorava implacavelmente (incursões no Licungo) sem desprezar as investidas contra os Lomués, o vale superior do Chire e o lago Niassa. H - A GORONGOSA DE MANUEL ANTÓNIO DE SOUSA: UM "BALUARTE" DO IMPÉRIO Se deixarmos esta família de extracção portuguesa e atravessarmos o Zambeze para sul, encontraremos um goês, tal como o eram os antepassados dos Pereiras e dos Vaz dos Anjos; mas a comparação fica por aí, pois o homem que entre 1858 e 1892 seria a ponta de lança da autoridade portuguesa nunca seria um rebelde declarado, já que a sua aliança com os Portugueses lhe permitia forjar um verdadeiro Estado nos prazos a sul de Sena e, em especial, na Gorongosa. Manuel António de Sousa, igualmente conhecido pelo nome de Gouveia chegou em 1852 ou 1853 à Zambézia, onde obteve a sucessão do tio e casou com a prima. Foi comerciante em Sena e não demorou a instalar (1854-1855) uma aringa na Serra da Gorongosa, em Massara ("3), no interior de um prazo invadido pêlos Angunes do sul do Save. Muzila, o régulo angune do norte de Gaza, enviou um impi de guerreiros seus para de lá o expulsar, mas Manuel António de Sousa repeliu-os. Esta vitória contra os Angunes, a que a Zambézia não estava habituada desde havia mais de vinte anos, chamou para junto de Manuel António de Sousa bandos de soldados-escravos sem senhor, caçadores de elefantes e todos os que tinham motivos para desejar levar uma vida de aventuras sob a autoridade de um cabo de guerra. Em três ou quatro anos, o senhor temperou as suas forças heteróclitas e fez delas um corpo de combate de considerável eficácia que Lisboa utilizou nas suas guerras e, em primeiro lugar, contra os arqui-rebeldes, a encarnação do mal absoluto na historiografia portuguesa da Zambézia no século XIX: Massangano e a família dos Cruz. I - MASSANGANO: A DINASTIA DOS CRUZ Este Massangano moçambicano não tem de comum com o Massangano de Angola, tão glorioso nos anais da resistência portuguesa do século XVII, senão o facto de ser um ponto fortificado, situado na principal artéria fluvial da colónia. Quanto ao resto, os Portugueses de Moçambique talvez preferissem nunca ter ouvido falar de Massangano, que seria até 1888, 1891, ou mesmo 1917, uma das maiores fontes de preocupações de todos os governadores-gerais, a "sombra negra" dos autores portugueses . 1) Uns Afro-tailandeses ambiciosos Assim como Macanga era a família dos Pereiras e Massingire a dos Vaz dos Anjos, Massangano era a família dos Cruz, cuja origem é igualmente asiática, mas não goesa, pois Nicolau Pascoal da Cruz era um militar siamês (ou luso-siamês, ou até sino-tailandês) ao serviço de Portugal. Chegou à Zambézia em 1767, casou ali com uma senhora mestiça e passou a ser um pequeno senhor de prazo, de fortuna diminuta mas com muitos descendentes que, naturalmente, se ligaram às outras famílias de senhores de prazos. O seu filho mais velho, António José da Cruz, nascido em 1777, casou com uma filha do Mwene Mutapa (no Monomotapa). Em 1807, o tenente-general António Norberto de Barbosa Vilas Boas Truão, que comandava uma expedição punitiva contra um régulo da região de Chicoa, devastou as terras do Mwene Mutapa, que o capturou e mandou matar. António José da Cruz, devido ao seu parentesco com o Mwene Mutapa, foi acusado, talvez injustamente, de traição e viria a ser enforcado e despedaçado em Moçambique em 1813. Era o primeiro "rebelde" da família. Seu filho Joaquim José da Cruz fez a sua aprendizagem de sertanejo percorrendo o domínio zambeziano com as caravanas de diversos senhores de prazos. Vemo-lo até a acompanhar a expedição oficial do major José Maria Correia Monteiro e do capitão António Cândido Pedro-so Gamitto, que com 420 homens alcançaram a corte do Cazembe e nela residiram (1831-1832). Este filho de um supliciado, que tinha por avós um asiático e o Mwene Mutapa, estava perfeitamente integrado na sociedade dos senhores de prazos em que tinham raízes seus tios e tias. Começou a enriquecer e, em 1849, ano da morte de Choutama, o terceiro dos Pereiras da Macanga, tomou de arrendamento dois grandes prazos abandonados a sul do Zambeze: Massangano e Tipué, a jusante de Tete, entre o Luenha e as gargantas da Lupata, povoados por Tongas, que eram nominalmente vassalos do Barué mas sofriam as flagelações dos Angunes. Os colonos e a Administração de Tete viram nele um senhor de prazos sólido que os protegeria amortecendo as invasões angunes. 2) Nhaude: a criação de Massangano Joaquim José da Cruz, mais conhecido localmente com o nome de Nhaude (a teia de aranha, ou o terror, conforme os autores), obteve autorização para construir a sua aringa em Massangano, repeliu os Angunes e firmou-se no território chona por meio das suas alianças matrimoniais nos regulados vizinhos e nas famílias reais do Monomotapa e do Barué. Possuía já a base territorial que lhe permitiria resistir aos golpes dos Pereiras de Macanga, inimigos da sua família. a) Um homem temível Nhaude era considerado um homem útil a Tete, embora se tenha esquivado em 1849, quando a vila apelou a ele para lutar contra Chissaca da Macanga. Em 1850, na sequência de um diferendo privado em que interveio o governador militar, mandou capturar um destacamento de doze homens e humilhou o alferes que foi a Massangano intimá-lo a apresentar-se em Tete. Dispondo apenas de 80 soldados africanos e três oficiais brancos, desprovidos de armamento, sem paga e sem comida, Tete considerou que o incidente era de menor importância. É um facto que Nhaude tinha já perto de 400 homens armados . Ia em poucos anos transformar-se num soberano africano legitimado que invocava os espíritos dos antepassados, ouvia o seu conselho e dispersava os varões da família pondo-os à frente dos regimentos (ensacas) estacionados no Estado e na fronteira, fortificada contra os Angunes. Ele era o Estado, mas o Estado era também a capital, Massangano, a aringa real, a alguns quilómetros da confluência do Luenha com o Zambeze. Massangano era também a possibilidade de intercepção do tráfego fluvial entre Tete e os prazos de jusante graças à necessidade de passar por um braço do rio ao alcance do fogo da aringa. Era, finalmente, o início da constituição de um exército permanente de escravos (chicundas) com o reforço de guerreiros tongas. Mesmo estando ainda na fase balbuciante, um poder desses não podia deixar de inquietar os senhores dos prazos por ele devastados e os Pereiras, já instalados a norte do rio e que, além das razões de queixa familiares que tinham contra Nhaude e contra a família Cruz em geral, corriam o risco de em qualquer momento ficar isolados dos seus fornecedores de armas. |
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De: manuelnhungue |
Enviado: 07/09/2007 02:18 |
AS GUERRAS DO ZAMBEZE PARTE 2
b) O conflito entre os Pereiras e os Cruz Em 1852, os Pereiras e os Cruz combateram-se nos arredores de Tete e o tráfego no rio ficou bloqueado, de tal maneira que o comandante militar de Tete implorou a protecção de Nhaude para que este escoltasse o comboio fluvial que ficara imobilizado em Sena. Por parentesco ou por interesse, os moradores de Tete inclinavam-se, na sua maioria, para os Pereiras, que no entanto os não poupavam nem a roubos de marfim nem a assassínios. De um modo geral, Nhaude, mais pobre, passava nessa época, aos olhos das autoridades de Tete, por ser um mal menor que Chissaca; e, sem poder medir forças com nenhum deles, esperavam que eles se gastassem nos seus conflitos. Já vimos que os coligados da Macanga e do Barué que puseram cerco à aringa de Massangano foram derrotados a 15 de Outubro de 1853. Os homens de Nhaude, esfomeados pelo cerco, pilharam alguns prazos portugueses amigos de Chissaca e Tete, ao vê-lo, resolveu pedir socorro ao governador de Quelimane. Este enviou um medianeiro a Massangano, o coronel de milícia Galdino José Nunes, homem hábil na resolução das intrigas dos seus concidadãos. Chissaca, da Macanga, oferecera um prémio de cerca de três toneladas de marfim pela cabeça de Nhaude e um oficial-bandido goês iniciara já a caça com 150 homens. Galdino José Nunes conseguiu desmontar a cilada armada a Nhaude e apaziguá-lo e obteve dele a liberdade de trânsito no Zambeze (Dezembro de 1853). Nhaude deixou igualmente passar para Tete uma força de 80 soldados. As suas canoas patrulhavam, todavia, o rio e ele zelava ciosamente por que Chissaca não recebesse armas ocultas nas embarcações fretadas pelo Estado português. 3) Primeira campanha contra Massangano (Abril de 1854-Junho de 1855) a) Uma guerra privada Mantinham-se as relações; mas Nhaude incomodava, decididamente, demasiados moradores. António José da Cruz Coimbra, cunhado de Mataquenha I de Massingire e fornecedor-cliente de Chissaca, foi queixar-se ao governador de Quelimane do saque dos seus bens, efectuado pêlos homens de Nhaude, e recebeu autorização para reunir as tropas a fim de vingar-se. Para o fazer, iria obter o apoio dos senhores de prazos de jusante, entre os quais Galdino Faustino de Sousa (o sogro de Mataquenha I) e João Bonifácio Alves da Silva, da Maganja da Costa. Essa expedição privada, sob o comando de António José da Cruz Coimbra, devia obter o apoio das tropas regulares de Tete e dos seus moradores. O governador de Quelimane, Jerónimo Romero (que já encontrámos no Cabo Delgado), ordenara o fuzilamento de Nhaude e de seu filho António Vicente da Cruz, de quem falaremos mais adiante, visto que iria ser depois o terrível Bonga . Os senhores de prazos contrataram 400 chicundas e as autoridades forneceram armas e pólvora, pois parecia evidente que Moçambique saía da sua letargia e resolvera impor-se no Zambeze. Um decreto de 24 de Novembro de 1853 criara o distrito de Tete, distinto do de Quelimane, o que não teria tido consequências se o primeiro governador do novo distrito, António Cândido Pedroso Gamitto, o enviado ao Cazembe de 1831-1832, não tivesse sido mandado da Metrópole (31 de Dezembro de 1853) com 240 soldados brancos . AS tropas chegaram a Quelimane no início de Junho de 1854, mas Gamitto já não era o homem adaptado à situação. De resto, Nhaude era sobrinho da sua primeira mulher. Notemos, todavia, esta participação metropolitana, invulgar na época. Doente, com falta de transportes, desavindo com o governador-geral Vasco Guedes de Carvalho e Meneses e mal obedecido pelos seus oficiais, Gamitto encontrou em Mazaro e em Sena os seus homens a perecer de febres e disenteria (fim de Julho de 1854). Foi substituído nas suas funções e o comando das tropas foi confiado a Tito Augusto de Araújo Sicard, ao qual não repugnava vender armas aos rebeldes. Entretanto, as forças que os senhores de prazos tinham reunido tinham entrado "em campanha" no início de Abril de 1854, a partir de Quelimane, mas, no fim de Maio de 1854, bastaram alguns batedores de Nhaude para, em Bandar, semear o pânico entre os auxiliares de António José da Cruz Coimbra, que não puderam realizar a ligação a Tete. Nhaude, ao ver quebrado o seu acordo de 1853 com Galdino José Nunes, mandou homens seus atacar Tete a 8 de Junho de 1854, e estes saquearam a Câmara Municipal. Era muito grave. b) A intervenção das autoridades Depois de ter vigiado o seu negócio pessoal e de esperar por reforços (perto de 600 auxiliares armados) e mantimentos, Sicard acabou por abandonar a segurança de Sena com os expedicionários, as tropas locais e os chicundas de vários senhores de prazos, entre os quais Mataquenha I de Massingire. Dispunha de cerca de l 000 combatentes que, tendo deixado passar a estação seca, subiram o Zambeze a partir de 17 de Outubro na direcção de Massangano. A 16 de Novembro de 1854, essa tropa variegada, comandada conjuntamente pelo comerciante António José da Cruz Coimbra e por Sicard, trocou de um e outro lado do Zambeze uma fuzilaria sem consequências com as poucas centenas de guerrilheiros de Nhaude, na confluência do Mucomadzi. Tinham fugido alguns remadores e carregadores e Sicard, apesar de ter as tropas intactas, apesar da sua artilharia e dos seus mais de cem soldados europeus, decidiu, a quatro dias de marcha de Tete, retirar para Sena. Esse triste comandante-comerciante receava que os Angunes atacassem Sena. E, no entanto, António José da Cruz Coimbra e Sicard tinham recebido reforços de Chissaca da Macanga, que não esquecera a derrota sofrida em 1853. c) O enviscamento Nhaude, por seu lado, considerava que não estava em guerra com o governo mas sim com os seus aliados. De modo que enviou a Sena uma embaixada com a promessa de abandonar Massangano. No fim de Novembro de 1854, a expedição, desmoralizada, acampava a dois dias de Sena e recebia o enviado de Nhaude em Dezembro. Os homens da Macanga quiseram assassinar o embaixador, mas Sicard recusou. António José da Cruz Coimbra e os outros senhores de prazos (excepto Alves da Silva) fomentaram então uma amotinação e, a 20 de Dezembro de 1854, Sicard, quer dizer, o representante da autoridade central, era destituído das suas funções com a concordância dos oficiais do activo e recambiado para jusante, onde pôde refazer a sua fortuna. A partir desse momento, foi António José da Cruz Coimbra, um "civil", quem conduziu esta lamentável "campanha" em que as forças regulares foram simples joguetes dos verdadeiros senhores da Zambézia. António José da Cruz Coimbra passou para a margem esquerda do Zambeze e conseguiu chegar a Tete (início de 1855) sem que Nhaude tentasse impedi-lo. O governador e comandante de Quelimane, coronel Joaquim de Azevedo Alpoim, viera, entretanto, reforçar Sena e informar-se da sorte da expedição; e não teve remédio senão recolher Sicard, "destituído" mas homem a poupar porque era protegido do governador-geral. Era o habitual enviscamento. Alpoim tentaria depois reatar negociações com Nhaude a partir de jusante enquanto a montante os "bravos" de Tete, acossados pela fome, aguardavam socorros para depois, em Junho de 1855, atacar Massangano. Foi por essa época que Nhaude morreu, provavelmente na sua aringa. Alpoim quis aproveitar-se deste facto para varrer Massangano, mas os moradores de Sena dissuadiram-no, apesar da presença de 300 soldados de primeira linha e de 200 homens de Chissaca em Tete. Os motins de Dezembro de 1854 nunca viriam a ser punidos; e Sicard seria nomeado governador de Tete, em Novembro de 1855, pelo seu protector. Neste lamentável caso, as tropas metropolitanas tinham sofrido, pelo menos, 87 mortes por doença; e, provavelmente, muitas mais. As guerras do Zambeze abriram, portanto, bastante mal o período para os Portugueses. 4) Bonga: princípios pacíficos Massangano surgia já, seis anos depois da sua fundação, como uma potência militarmente secundária mas já capaz de resistir à acção conjunta (s/c) das tropas locais e europeias e das forças dos senhores de prazos. Na realidade, Nhaude não tivera à sua frente senão uns fantasmas de combatentes, e foi um pouco à pressa que o classificaram entre os inimigos de Portugal. Nunca fez correr sangue de militares do governo, e aquela caricatura de campanha fora organizada contra ele unicamente por instigação de senhores de prazos que defendiam os seus interesses particulares contra os de outro. E esta estranha aliança, em 1854-1855, dos Portugueses com Macanga (embora tivessem sido inimigos em 1841, 1843 e 1849) e com Massingire (estando próxima a prisão, em 1857, de Mataquenha I e para breve, em 1858, a destruição da sua aringa), parece-nos a demonstração da irresponsabilidade e da impotência das autoridades, vulgares instrumentos de negreiros que invocavam a sua qualidade de cidadãos quando esta lhes permitia arruinar um rival. Nhaude morreu em Maio ou Junho de 1855 e seu filho mais velho, António Vicente da Cruz, dito Bonga (gato bravo, ou gato-tigre), seu cabo de guerra, impôs-se facilmente à frente de Massangano e lá continuaria (1855-1879) para se transformar no sonho mau dos Portugueses. De momento, o capítulo das guerras de Massangano não foi reatado, visto que os doze primeiros anos do reinado de Bonga iam ser os de um senhor de prazo que pagava escrupulosamente o foro, que visitava Tete regularmente para tratar dos seus negócios e para baptizar os filhos e que, quanto ao resto, governava Massangano conforme bem entendia - isto é, era a imagem de um burgrave renano que tivesse ficado anacronicamente na Zambézia a cobrar portagem aos barcos e às caravanas que passassem ao alcance das suas armas e da sua aringa. J - CLOACA OU COLÓNIA? l) As trevas de África? Estas sórdidas histórias de negreiros polícromos ou francamente rebantoizados que se passeavam com um feitiço dentro da algibeira da farda de capitão-mor, esta galeria de administradores doentes cuja sobrevivência dependia da sua venalidade e passividade, estas autoridades africanas que vendiam os seus súbditos com a mesma facilidade com que vendiam os escravos, estes chefes de regimentos angunes que despovoavam regiões inteiras pela estéril glória de um potentado, estes capitães de navios que descarregavam cachaça e espingardas e embarcavam mulheres, crianças e varões robustos para os conduzir às Américas e às ilhas francesas - tudo isto pode parecer ao leitor da actualidade a quintessência da Darkest África tal como a descrevem os exploradores da segunda metade do século XIX, incumbidos de levar as luzes da colonização moderna a um continente mergulhado nas trevas (s/c). A descida ao colector de esgoto de uma colonização moribunda não deve, porém, fazer-nos esquecer que essa colonização só nos parece nauseabunda porque se gaba de ter ligação com uma metrópole europeia. Aquilo que se passava a l 500 quilómetros a norte dali, no hinterland de Zanzibar, sob o domínio omani, ou as actividades individuais dos abastecedores das plantações cubanas, brasileiras e da Virgínia, a 2 000 quilómetros a oeste, não era menos horroroso; e a escolha destas duas distâncias e destas duas direcções está longe de ser limitativa. No entanto, seriam os estabelecimentos portugueses e as "dependências" zambezianas de Portugal que estariam na primeira linha da denúncia, pela Europa manufactureira, e especialmente britânica, do horror do trafico de escravos. Porquê? 2) Livingstone, o revelador Aí, como em Angola, seria Livingstone quem revelaria ao mundo o lamentável estado em que se encontrava a Zambézia. Em Janeiro de 1856, o GoodDoctor, vindo de Angola, chegava ao Zumbo arruinado e, muito bem recebido em Tete pelo inenarrável e inevitável Sicard, ali ficaria até Abril para depois descer o rio de barco. O escocês verificou que os homens de Chissaca da Macanga podiam devastar impunemente a margem esquerda e ir vender os seus escravos a Sena porque, embora o comandante tivesse realmente soldados, "é notório que a milícia indígena foge invariavelmente quando há que combater e abandona os oficiais ao inimigo". Como os oficiais não recebiam paga havia quatro anos, "são todos obrigados a traficar para alimentar as suas famílias". Embora elogiasse a hospitalidade portuguesa nos seus primeiros escritos destinados à publicação, não pôde evitar acrescentar que "aqui a imoralidade e a escravidão realizaram a sua obra; em parte nenhuma o nome de europeu desceu tão baixo". Apesar disto, Livingstone, que não soube conseguir que lhe explicassem as rivalidades entre os senhores dos prazos nem a forma como tinham decorrido as guerras de 1849, 1853, 1854 e 1855, foi um observador superficial da realidade política, mas a retumbância da sua descrição iria em 1857 apontar o projector vitoriano para aquele recanto obscuro da colonização portuguesa. Foi, principalmente, no seu regresso à Grã-Bretanha (Dezembro de 1856-Março de 1858) e nas suas conferências que Livingstone montou a sua máquina de guerra contra Portugal, imaginando fundar uma colónia britânica na África Central (no planalto de Batoka, na Zâmbia), facto que implicaria a liberdade de navegação no Zambeze. Ao ser anunciada (Dezembro de 1857) a organização de uma expedição oficial britânica, dirigida pelo irascível escocês, o Ministério português ficou sabendo que a irrupção dos vapores britânicos no rio iria causar complicações e, provavelmente, uma espoliação política. Apesar de tudo, Lisboa aceitou prestar auxílio à expedição, mas ao criar a 4 de Fevereiro de 1858 o distrito da Zambézia concretizou oficialmente os seus direitos nos territórios do vale do Zambeze entre a foz e o Zumbo. Livingstone voltaria em Maio de 1858 com o título de cônsul em Quelimane, acompanhado de um vapor e oito cidadãos britânicos. Transformou-se então no europeu mais insidioso, rancoroso e implacável que Portugal teria de combater para conservar os seus estabelecimentos zambezianos. E faria escola, pois praticamente nenhum cidadão britânico que visitou a Zambézia antes do século XX teve nada de bom a dizer dos Portugueses além de que estes constituíam "um manifesto exemplo de degradação tropical" . Daí a querer expulsá-los era um passo que rapidamente seria dado. 3) O vértice da pirâmide Antes que voltemos a observar Livingstone na Zambézia e antes que comece o período das grandes guerras no rio, é-nos necessário estabelecer a exacta nomenclatura das reais possessões zambezianas de Portugal no final das invasões angunes e dos primeiros conflitos entre as autoridades e os super-prazos que gradualmente se iriam transformar em Estados secundários. Por outras palavras, além da Macanga, do Massingire, da Maganja da Costa, da Gorongosa e de Massangano, que estavam nos limites da dissidência, que os tinha ultrapassado ou que continuavam submissos sem deixar de ser autónomos, qual era em 1854-1857 a verdadeira consistência do vértice da pirâmide zambeziana? Ainda é fácil enumerar aquilo que se erguia dos escombros e dizer o que se ocultava por trás das pomposas denominações de distrito de Quelimane (incluindo Sena), distrito de Tete e distrito de Sofala, e que não era mais que a sombra dos antigos Rios de Cuama, ou Rios de Sena. Encontramos, essencialmente, quatro presídios, as suas cercanias, um arquipélago e uma artéria fluvial. Era esta, talvez, o mais importante de tudo, visto que, sem o seu domínio, a presença portuguesa se desmoronaria. Tanto como no domínio suahili, era na água e graças às suas embarcações que Portugal se mantinha na Zambézia, pelo menos até Tete. E, no entanto, como era grande o contraste com Angola! K - O DISTRITO DE QUELIMANE 1) O Zambeze vital Ainda menos que o rio Cuanza, em Angola, o Zambeze, entre Tete e o mar, só era português na medida em que um senhor de prazo da margem não impedisse a passagem pêlos estreitos e gargantas que possuísse. O rio tem um caudal extremamente irregular e está semeado de ilhas efémeras no curso inferior; o delta metamorfoseia-se de ano para ano a tal ponto que os canais de navegação nunca estão garantidos ; as saídas para o mar estavam em meados do século tão impraticáveis que as barcas já muito raramente passavam a barra e preferiam descer e subir braços obstruídos e incertos como o Muto, pelo qual só quando o nível das águas era suficiente se podia chegar a Quelimane sem mudar de transporte. Teremos uma ideia do conhecimento do baixo Zambeze em Portugal e no resto da Europa nos anos 50 sabendo que o autor do livro sobre Moçambique que na época era uma autoridade em Lisboa reproduz uma descrição de João dos Santos, extraída do seu Ethiopia oriental, de 1609 ("O, fornece, acerca da Zambézia, estatísticas comerciais de 1806 e se entrega ao género preferido dos seus concidadãos dados à literatura colonial: a profecia encantatória. "O Zambeze, em cujas margens reina o silencio da inacção, apenas interrompido pelo perpassar de alguma fera ou de algum cafre, quasi tão selvagem como ella, ha de animar-se com a vista de laboriosas colónias militares, e com o ruido dos campos que inutilmente retalha e fertilisa hoje". Mais prosaicamente: que havia ainda de português em terra? 2) Os domínios reais a) Quelimane A sede do distrito, palustre e lodosa, era a saída fluvio-marítima da Zambézia e, nessa qualidade, o segundo porto de Moçambique. Era ainda uma simples feitoria ( fundada em 1544), protegida por uma bateria de canhões virados para a praia que estava entregue a uma companhia do exército regular. Era, principalmente, uma alfândega que receava perder importância se fosse instalado no Zambeze o posto fiscal do Lua-bo. Qualquer guerra no Zambeze tinha repercussões na alfândega de Quelimane. Em 1853, isto é, antes do conflito com Massangano, a vila contava 335 cristãos e cristãs, 120 muçulmanos, Parsis e Baneanes, 17 negros livres - ao todo, 472 civilizados. Em 1855, morreram ali de fome 6 a 7 mil Africanos, provavelmente incluindo os refugiados dos prazos. Em 1858 foram ali recenseados 9 254 escravos e 59 libertos . Ali viviam vários senhores ás prazos que preferiam a indolência da vila à insegurança das suas terras. b) Sena A vila, antiga e opulenta capital de Rios de Sena mas já na mais completa decadência (com, pêlos menos, sete casas nobres em ruínas), era escala obrigatória entre Tete e o mar. Abandonada pêlos moradores em 1830 (fome), ameaçada pêlos Angunes em 1835, privada dos lucros da quase totalidade dos prazos que a rodeavam e que estavam já a ser sugados pela fúria das guerras, Sena tinha uma sombra de guarnição num forte arruinado, postado num deserto em que os bandos dos senhores de prazos ditavam a sua lei. Desconhece-se a sua população naquela época, mas parece que pagava tributo aos Angunes do Estado de Gaza. 3) As antigas influências Estes dois pontos eram tudo o que subsistia de presença oficial real no distrito de Quelimane. Estavam assinaladas minas de ouro em Manica, mas nenhum português as explorava já. Na realidade, a influência portuguesa não tinha desaparecido por completo do Barué e de Manica. O ouro e o marfim continuavam a ser lá negociados e discutia-se periodicamente o restabelecimento de uma feira em Manica. Manica e Quiteve pediram até, em 1854, a nomeação de um capitão-mor para a antiga feira de Macequece, a sudoeste de Sena, que outrora fora fortificada e ocupada; mas ela estava em Manica, já presa da guerra civil. Nestas condições, Isidoro Correia Pereira, coronel da milícia em Sena, foi realmente nomeado em 1854 ("o) mas só em 1858 viria a ocupar esse lugar honorífico, e apenas até 1863, data em que seria substituído por Manuel António de Sousa, o Gouveia, o "imperial" senhor de prazos da Gorongosa. Ao contrário do seu antecessor, este iria residir para o interior, que em seguida submeteria. Quanto aos prazos do distrito, contamos dezasseis dependentes de Quelimane, cinco dos quais invadidos, e trinta e dois dependentes de Sena. Como o compilador se não dá sequer ao trabalho de dizer quantos deles estavam abandonados no distrito de Sena, presumimos que, na sua maioria, o estivessem. De facto, supunha-se que os prazos do norte do Zambeze, para lá de um certo limiar de poderio, obedeciam ao governador de Quelimane quando não havia conflito de interesses. Os que tinham senhores ambiciosos e poderosos nem sequer se davam a esse trabalho (Ex.: Massingire), a não ser que ainda estivessem geneticamente próximos da Administração (Maganja da Costa). A sul do Zambeze, a relação de forças estava de novo a favor dos senhores de prazos, que faziam lei em Sena e compravam quem pudesse ajudá-los a enriquecer. Convém que se não esqueça que naquele tão restrito meio de senhores de prazos umas poucas dezenas de famílias eram a lei e, como a caça aos elefantes as obrigara a armar os seus chicundas, adquiriram bandos de guerreiros muito superiores às guarnições do Estado. |
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