Outra Vers찾o.....
O velho rei ergue a cabe챌a e olha. Olha e pensa. Pensa e revolta-se. N찾o se conforma com estar ali, quedo e aborrecido, enquanto seu filho Sancho anda correndo aventuras e perigos no Alentejo e no Algarve. E também enquanto o seu fiel D. Fuas Roupinho se bate, decerto como o valente que sempre é, em Porto de Mós, defrontando um inimigo muito superior em número e em for챌as...
Não, não está certo! D. Afonso Henriques, o já velho monarca que lançara as raízes do novo reino de Portugal, não pode esconder a sua impaciência.
Estamos no ano de 1180. Mais ou menos a meio do ano. Ficara combinado que el-rei n찾o saísse de Coimbra sem que chegassem notícias de Porto de Mós, ou algum mensageiro dos campos do Alentejo e do Algarve, por onde D. Sancho passeava a sua 창nsia de conquista. Mas para D. Afonso Henriques essa espera é longa demais. Para entreter a sua impaci챗ncia, percorre a largos passos as c창maras da alcá챌ova de Coimbra, que já caíra em seu poder. Assoma a uma janela e exclama:
- Porém, que posso eu fazer.. sen찾o esperar? Que Deus se amerceie do meu bom Fuas Roupinho e que ele volte depressa a minha presen챌a!
O rei de Portugal retoma o seu passeio. Agitado e inquieto. N찾o é homem para estar parado. N찾o é homem para aguardar serenamente os acontecimentos.
De súbito, um clamor inesperado corre pelas ruas, espalha-se pela cidade e acaba invadindo o próprio pa챌o.
Os sentidos do velho monarca ficam alerta. Será um novo ataque dos mouros?
A resposta não tarda a chegar, com o clamor alegre do povo. Clamor que sobe pela Couraça de Coimbra e que se precipita irresistivelmente ao encontro do velho rei.
E com o clamor vem D. Fuas Roupinho, alcaide de Porto de Mós, trazendo atrás de si um rebanho de mouros, prisioneiros e taciturnos.
- Bravo D. Fuas... Cheguei a recear por vós.
As palavras de el-rei s찾o sinceras, e nelas se mistura a admira챌찾o e a amizade.
D. Fuas ajoelha respeitosamente aos pés do rei. Depois ergue-se e diz:
- Senhor, a minha carne pode ser já velha, mas a moirama ainda n찾o arranjou lan챌as capazes de me matar..
D. Afonso Henriques sorri.
- Sois sempre o mesmo, D. Fuas! Nem os anos nem as canseiras conseguem quebrantar vossa alma de lutador.
D. Fuas sorri também, ao responder:
- Aprendi convosco, Senhor! Com tal mestre, pena seria que eu saísse mau discípulo...
Foi a vez de rirem ambos. Sentando-se, e convidando D. Fuas a sentar-se, o rei de Portugal pede a D. Fuas que lhe conte tudo quanto se passara.
Em breves e simples palavras, D. Fuas Roupinho conta essa grande aventura.
Em certo momento, talvez porque ousara infiltrar-se demais no campo inimigo, vira-se cercado por forças muito superiores às suas. Reflectira um pouco. Desafiar o inimigo à luz do dia, seria imprudência. Valia mais esperar pela noite...
Assim, quando a noite chegou, arrastados por D. Fuas, os portugueses, poucos embora, num desses lances temerários em que a audácia esmaga o número, caíram de surpresa sobre os mouros, dominando-os por completo...
D. Afonso Henriques escuta-o em sil챗ncio. Mas os olhos d'el-rei exprimem o seu contentamento.
D. Fuas Roupinho manda ent찾o que ali mesmo amontoem aos pés do rei de Portugal as armas, as bandeiras e os tesouros que a sua bravura e a dos seus homens tinham sabido conquistar.
Depois, manda que tragam também, pálido e desalentado, o próprio rei mouro Gamir, comandante do exército inimigo.
- Senhor meu rei... Aqui tendes igualmente a vossos pés, Gamir, rei infiel de Mérida, o qual ousou desafiar o vosso poder.. Agora, ele é apenas vosso prisioneiro.
O rei mouro deu um passo em frente.
- Tu... Tu és esse Iben Erik de que tanto se fala?...
Faz-se mais pálido. A sua voz transforma-se num murmúrio.
- Agora compreendo!... Com um chefe como tu... com cavaleiros como os teus... nada mais poderemos fazer.. Que Alá nos proteja!... Vamos perder todas as nossas terras... todos os nossos tesouros!...
E sem for챌as para mais, Gamir cai redondo no solo, enquanto um grito aflitivo ecoa pela sala.
- Pai!... Meu querido pai!... Soldados adiantam-se para separar a jovem que se abraçou ao velho rei mouro, chorando convulsivamente. Mas D. Afonso Henrique suspende-os com um gesto. E logo ali ordena que sejam retiradas as correntes que manietam os dois vencidos, e que passem a ser tratados como verdadeiros cristãos, entregues à guarda de D. Fuas Roupinho.
Entretanto o tempo vai passando, e D. Fuas Roupinho recebe novos encargos do seu rei e senhor. Assim, por incumb챗ncia dele, dirige-se a Lisboa, onde apronta uma frota destinada a perseguir as galés sarracenas que infestam o mar.
Pela primeira vez na História, os Portugueses saem a lutar sobre as ondas do oceano. E embora ainda sem grande experiência, conseguem vencer declaradamente os Mouros, sem dúvida muito mais experimenta-dos em batalhas marítimas, travadas ao longo da costa africana.
Foi esta a primeira grande vitória naval dos Portugueses. Animados pelo próprio triunfo, atrevem-se a ir mais longe. Sempre sob o comando do intrépido D. Fuas Roupinho, primeiro almirante de Portugal, avan챌am até ás águas de Ceuta, depois de terem percorrido triunfalmente toda a costa do Sul. E de Ceuta voltam, trazendo apresadas inúmeras embar챌천es mouras.
A corte portuguesa veste galas para acolher D. Fuas Roupinho e os seus homens. O rei Afonso abra챌a o almirante vitorioso e diz-lhe:
- Ide para Porto de Mós, D. Fuas. Ca챌ai e folgai a vosso gosto, que bem ganhastes o direito a descansar dos trabalhos da guerra.
Sem mostrar alegria nem tristeza, D. Fuas limita-se a dizer:
- Cumpro sempre as vossas ordens, sejam elas quais forem, Senhor!
Reza a tradi챌찾o que, no dia seguinte, D. Fuas se encaminhou para Porto de Mós. E que ali encontrou a jovem princesa moura chorando a morte de seu pai.
Mal v챗 o alcaide, corre para ele.
- Senhor, senhor, nem sei como agradecer-vos... Mas o senhor meu pai pediu-me que o fizesse, mal vos visse... Fostes t찾o bom para ele e para mim!
D. Fuas Roupinho n찾o consegue esconder a emo챌찾o.
- Gra챌as, princesa. E conformai-vos com paci챗ncia. Foi Deus que assim o quis!
Ela ergue para ele os olhos, vermelhos de tanto chorar.
- Deus?... Dissestes Deus?...
E logo, num desabafo íntimo, acrescenta:
- Gostaria de conhecer o vosso Deus... E muito em especial a M찾e desse Deus, que dizem ser t찾o bom e t찾o generoso...
De novo, a emo챌찾o passa pelos olhos de D. Fuas Roupinho. As suas m찾os acariciam os longos e negros cabelos da jovem princesa moura. E promete:
- Amanh찾 mesmo te levarei a ver a Sua Imagem... uma imagem que eu venero!
Cumprindo o prometido, manh찾 cedo, D. Fuas Roupinho leva consi-go a jovem princesa moura e vai mostrar-lhe a imagem de Nossa Senhora, entre duas rochas, na Nazaré.
Pela primeira vez na sua vida, a filha do rei Gamir cai de joelhos diante de uma imagem crist찾.
- É linda a Vossa Senhora... Muito linda! E D. Fuas Roupinho conta-lhe então, docemente, a história maravilhosa daquela imagem.
Um monge grego fugira com ela para Belém de Judá, dando-a a São Jerónimo. Este, por sua vez, mandara-a a Santo Agostinho. E Santo Agostinho entregara-a ao Mosteiro de Cauliniana, a uns doze quilómetros de Mérida. Aí puseram à imagem o nome de Nossa Senhora da Nazaré, por ela ter vindo da própria terra natal da Virgem Maria.
Quando os mouros derrotaram os crist찾os, obrigando o rei Rodrigo a fugir para Mérida, Rodrigo levou consigo a preciosa imagem. Mas nem mesmo assim se sentiu absolutamente seguro. E resolveu fugir de novo, agora na companhia do abade Frei Romano, possuidor duma preciosa caixa de relíquias que pertencera a Santo Agostinho.
Após uma aventura dramática, quase mortos, os dois homens chegaram ao sítio da Pederneira, na costa do Atl창ntico. Ent찾o, resolveram separar-se.
Rodrigo ficou no monte que se chama de S찾o Bartolomeu e Frei Romano foi viver para o monte fronteiro.
Combinaram, porém, corresponder-se por meio de fogueiras, que acendiam à noite.
Mas, certa noite, a fogueira de Frei Romano n찾o se acendeu. N찾o mais se acenderia!
Rodrigo acudiu inquieto, e foi encontrá-lo morto. Apavorado, escondeu a imagem e a caixa de relíquias numa lapa, e abalou dali, correndo como um doido.
Segundo conta ainda a tradi챌찾o, veio a morrer perto de Viseu, num sítio denominado Fetal...
Concluindo a sua história, D. Fuas Roupinho acrescenta, olhando a imagem:
- Só há bem pouco tempo alguns pastores a descobriram, e eu logo me tornei num dos seus maiores devotos. Venero-a com todas as for챌as da minha alma.
A jovem princesa parece alheada e distante. Olhos fitos na imagem, repete como em ora챌찾o:
- É linda, a Senhora!... É linda, a Senhora!...
D. Fuas afaga-lhe a cabe챌a e diz-lhe meigamente:
- Olha, minha filha... Podes ficar aqui a adorá-la o tempo que quiseres. Eu vou ca챌ar. Depois, voltarei a buscar-te.
E é então que se passa algo de extraordinário. D. Fuas Roupinho monta e galopa pelo campo, quando vê de repente passar junto de si um vulto negro e estranho... É um veado! - pensa ele... Um veado, com certeza!
Sente-se feliz. Não poderia começar melhor a sua caçada. Para mais, um veado como nunca vira em toda a sua vida. Esporeia mais o cavalo. Não pode perder presa de tanto valor.. Como num desafio, o veado torna a passar junto dele. Uma vez. Duas vezes. D. Fuas Roupinho sente irromper todo o seu brio. Pois um herói como ele, um homem habituado aos combates mais árduos, vai perder uma tão formidável peça de caça? Nunca! Há-de apanhar o veado, custe o que custar. Esporeia o cavalo até fazer sangue e aproxima-se da presa. Já falta pouco. Está quase a alcançá- -lo... De lança em riste, já canta vitória... Mas, de repente, vê a terra desaparecer sob as patas do cavalo... Está à beira dum precipício, a pique sobre o mar!... Um brado aflitivo sai-lhe da garganta, enquanto o cavalo se empina, relinchando desesperadamente, e o veado se some no espaço, desfazendo-se como fumo:
- Virgem Santíssima, valei-me Valei-me, minha Nossa Senhora da Nazaré!
Por um instante (parece uma eternidade) cavalo e cavaleiro lutam sobre o abismo. Mas a Virgem ouvira decerto o apelo angustiado de D. Fuas Roupinho. E ele salva-se. Por milagre. Por aut챗ntico milagre!
Nas rochas, ficam marcadas as patas traseiras do cavalo, sinais que ainda hoje ali se podem ver.
D. Fuas corre ao local onde deixara a jovem princesa junto da imagem de Nossa Senhora. Encolhida a um canto, trémula, o rosto banhado em lágrimas, ela mostra-se aliviada ao v챗-lo regressar.
- Oh, senhor, tive tanto medo!... Ainda bem que voltasses!... Passou por aqui um animal medonho... Parecia o Génio do Mal!
- Bem sei... Bem o vi...
E sem mais palavras de momento, o cavaleiro desmonta e ajoelha, rezando fervorosamente, a agradecer à Virgem o auxilio que lhe prestara. De que lhe serviria, afinal, ser um herói como era, se não tivesse a seu lado a protegê-lo a presença milagrosa de Nossa Senhora da Nazare? Esse, sim, era maior de todos os prodígios!
E enquanto se ergue, respirando fundo, como que a afastar os últános temores, D. Fuas Roupinho confessa serenamente:
- Sim, jovem princesa... O monstro que passou por aqui, transformado em veado, era o próprio Dem척nio... Estive prestes a morrer, tentado por ele, mas Nossa Senhora salvou-me!
E, com súbito entusiasmo, acrescenta: - Hei-de levar esta imagem para o local do milagre, para o sítio onde tudo aconteceu... Lá ficará, pelos séculos fora, como sánbolo do misericordioso poder da Virgem!
E logo dali sai a cumprir a promessa. As ordens de D. Fuas Roupinho - e, segundo se diz, ajudando-os por suas próprias m찾os - pedreiros de Leiria e de Porto de Mós constroem a Capela da Virgem num sítio chamado da Memória, em memória de t찾o extraordinário milagre que salvara o almirante portugu챗s de morte certa e brutal.
E a imagem da Virgem Nossa Senhora da Nazaré lá continua a invocar a lenda, atraindo todos os anos milhares e milhares de fiéis, por ocasi찾o das afamadas e tradicionais festas da vila.
IN LENDAS DE PORTUGAL - GENTIL MARQUES