"N찾o é dos olhos que se trata. O mistério é o olhar. Um dia ter찾o perguntado a Hegel o que se manifesta e v챗 num olhar. E ele: "O abismo do mundo."
Num olhar, o que há é alguém que vem à janela de si e nos visita. Também por isso, para tornar alguém anónimo, venda-se-lhe os olhos. Faz-se o mesmo a um condenado à morte, porque é intolerável o seu olhar.
Até para nós próprios somos por vezes terrivelmente estranhos. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? "Quem é esse ou isso que me v챗, desde o abismo?"
Essa estranheza assalta-nos até no olhar de um animal: um c찾o velho e abandonado que nos olha n찾o nos deixa indiferentes. Mas é sobretudo o olhar de alguém que é perturbador. Ele há o olhar triste. O olhar meigo. O olhar arrogante. O olhar do terror. O olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceita챌찾o. O olhar do desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. Ah!, o olhar da despedida final para sempre! O olhar morto, que já n찾o é olhar!
O olhar é a presen챌a misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela. Já ao nível do tal c찾o velho e abandonado pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser c찾o? Mas é uma sensa챌찾o de abismo, um belo dia, precisamente perante o olhar de alguém, ficarmos paralisados com a interroga챌찾o: o que é ser alguém outro? Porque a outra pessoa - o outro homem ou a outra mulher - n찾o é simplesmente outro eu, mas um eu outro. Explicitando: o que é e como é ser o Juan ou a Eunice, viver-se a si mesmo por dentro como o Juan ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me v챗em? O qu챗 e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar?
E como é que eu sei que há o outro, n찾o enquanto outro eu - ainda no prolongamento de mim -, mas precisamente como um eu outro, sujeito inapreensível? Sartre teorizou que esse saber é dado de modo indubitável no sentimento da vergonha. E dá o exemplo de alguém que, num hotel, está, concentrado, a espreitar pelo buraco da fechadura. Ouve passos no corredor. Ent찾o, no sentimento paralisante da vergonha, ao ficar objectivado pelo olhar do outro a quem os passos pertencem, sabe que há um sujeito que n찾o é ele. Ele é objecto para esse sujeito que o v챗: é visto.
Se a única ou a principal rela챌찾o com o outro fosse a da vergonha, n찾o se aguentava viver, porque "o inferno" seriam "os outros".
Seria insuportável estar sob a vigia de um olhar omnipresente. Por isso, para Nietzsche, o olhar de Deus é intolerável. Em A Gaia Ciência, uma miúda pergunta à mãe: "É verdade que Deus está em toda a parte?", respondendo ela própria: "Eu considero isso uma indecência." Então, em Assim Falava Zaratustra, escreve: o Deus que objectiva o Homem "tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo. A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia--se nos meus recantos mais sórdidos".
Também Sartre cortou rela챌천es com Deus por causa do seu olhar horrorosamente indiscreto. "Uma só vez tive a sensa챌찾o de que Ele existia. Brincava com fósforos e queimava um pequeno tapete; estava eu a dissimular o meu crime quando, de súbito, Deus viu-me; eu rodopiava na casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. Salvou-me a indigna챌찾o. Blasfemei, murmurei como o meu av척: 'Maldito o nome de Deus, nome de Deus, nome de Deus.' Nunca mais Ele me contemplou."
É certo que só vimos a nós pela mediação do outro. Sem outros eus enquanto tus, não há eu. Mas será que a única ou mesmo a principal relação com o outro é a da vergonha? Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente Outro."
Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia