PARTE I O Grande Dia
20 de Julho 1953.
Ás quatro da madrugada, quando a pálida luz d’aurora ainda mal fazia a sua aparição, já minha mãe me arrancava aos braços de “Morfeu” onde eu na véspera, prometera a pés juntos não mergulhar.
Chegara enfim o grande dia. O dia do acontecimento mais relevante dos meus franzinos dez anos. Ia, enfim, fazer o meu exame da 4짧 classe a Mirandela.
Mirandela!!!!!!!! Uma Vila que eu só conhecia em sonhos, ou de ouvir falar. A azáfama dos últimos preparativos e conselhos dos familiares orgulhosos, as últimas recomendações da senhora D. Ermelinda Rafael, minha professora e irmã do ilustre médico Dr. Mário Rafael, tinham feito com que adormecesse mais tarde e àquela hora, francamente, não me apetecia nada levantar.
- Anda filha que são horas: já tens o caldo na malga. Põe-te a dormir e depois come do sono. Olha que o exame não espera por ti e temos muito que palmilhar. Se tínhamos! É que dos Avidagos, minha terra, até Mirandela são cerca de 24 km os quais tínhamos que fazer a pé:
-Porqu챗? Pela simples raz찾o de n찾o haver dinheiro para a Camioneta, ida e volta, para a chita do vestido novo que a minha tia Mariana me fez, para os sapatos comprados para a ocasi찾o, para pagar a Pens찾o onde teria que ficar, etc. Os meus pais para suprir as despesas mais prementes, tiveram que segar manual e prematuramente duas jeiras de trigo e vender o gr찾o ao senhor Regedor.
O sacrifício foi enorme, mas o orgulho de ter uma filha que ia fazer o exame da 4짧 classe quando ainda n찾o era obrigatório, compensava-os plenamente.
Engoli o caldo á pressa e pusemo-nos a caminho eu e minha m찾e. As nossas socas brochadas faziam barulho nas pedras do caminho quebrando o sil챗ncio matinal. De vez em quando sacudia uma ruga, imaginária, do vestido novo. Por vezes, levava a m찾o á cabe챌a a ver se a fita cor-de-rosa que a minha avó materna me oferecera para a ocasi찾o, ainda lá estava. Querida avó! Tinha vindo das Varges aos Avidagos a pé só para me presentear com a fita. Ela queria que a sua neta, fosse a mais bonita de todas. N찾o estou bem certa, mas penso que a distancia por ela percorrida por caminhos tortuosos, devia rondar os nove ou dez quilómetros, sen찾o mais.
Comecei a tomar no챌찾o da responsabilidade em n찾o defraudar, com um chumbo, as expectativas e esperan챌as que os familiares em mim depositavam.
-Ó mãe ainda falta muito?
-N찾o, é já ali.
Relógio? Que é dele. Isso era um luxo dos ricos, mas pelas minhas contas, havia mais de duas horas que a minha m찾e dizia, é já ali. Eu nunca antes tinha feito uma caminhada daquela envergadura. As minhas fracas pernas, come챌avam já a acusar o cansa챌o. Sem querer, invejava os meus cinco irm찾os mais novos que haviam ficado no aconchego da cama. O sol come챌ava a despontar no horizonte cobrindo as já louras searas de trigo e centeio que ondulavam com a fresca brisa matinal como se fosse um mar gigantesco de ouro salpicado de papoilas vermelhas mais fulgurantes que rubis. As cotovias, melros, rolas e pican챌os, saudavam o astro-rei com os seus melodiosos gorjeios, num agradecimento á m찾e natureza o fausto banquete que esta pusera á sua disposi챌찾o e das respectivas proles. De vez em quando, uma lagartixa espreitava por entre as pedras do caminho, curiosa com o sincronizado das nossas socas, trepa que trepa. Ao longe, um ou outro rancho de segadores come챌ava o seu árduo trabalho com os rins dobrados sobre as searas que as seitouras iam dizimando. De repente um frémito de alegria percorreu o meu já cansado corpito ao avistar uma povoa챌찾o. Aligeirei o passo e pergunte
-Ó mãe, ali já é Mirandela?
-Daqui lá n찾o me doa a mim a barriga, respondeu a minha m찾e já agastada de tantas vezes responder, á contínua pergunta de, ainda falta muito?
-Ali s찾o as Lamas, falta quase outro tanto para chegar a Mirandela e temos que andar mais depressa para estar lá ás nove horas sen찾o, n찾o fazes o exame.
Prossegui calada deitando um olhar de esguelha á saquita que a minha m찾e levava á cabe챌a onde a par dos livros e da merenda, iam os sapatos novos que só cal챌aria á entrada da Vila para fazer jus ao rif찾o. Menina da aldeia, á entrada da Vila cal챌a a meia A malga do caldo de cebola? Onde é que ela já ia.
Reparando nas minhas espiadelas á saquita e como caminhássemos ao longo de uma parede que circundava uma horta, a minha m찾e disse:
- Sentemo-nos só um cibinho para comer que depois já temos força para andar mais depressa. Ó que mágicas palavras para os meus ouvidos. Levantei o vestido quase até á cabeça para não o sujar ou enrugar na parede de xisto, e á fatia de pão centeio, que minha mãe cozera na véspera, e ao punhado de figos secos, foi um ar que lhe deu.
Reconfortada com a frugal refei챌찾o e com cinco minutos de descanso, pusemo-nos novamente a caminho. De súbito ouvi o trotar de uma cavalgadura atrás de nós. Voltei-me devagar e disse:
-Ó mãe, vem ali o ti João Vinhais com o filho a cavalo no macho. Na verdade, não era meu tio, mas na minha aldeia, os mais novos tratavam os mais velhos por tios e tias.
-Bom dia senhora Adelina! Madrugaram!
-Bom dia senhor Jo찾o, que remédio!
Deixei de ouvir o resto dos cumprimentos e concentrei-me no Francisco Vinhais, um rapaz da minha idade e que todo janota em cima do anafado macho também ia fazer exame. Eu bem me saracoteava para ver se o Xico olhava para o meu vestido novo e para o laço que me prendia os curtos cabelos mas o Xico não reparava e eu saltitando, quase me punha á frente do macho. Ó! Vaidade feminina, que tão precocemente te manifestas em futilidades. O ti João vendo os olhares constantes que eu deitava aos cavaleiros e atribuindo-o ao meu cansaço, apeou-se e disse:
-Monta no macho enquanto vou um bocado a pé para esticar as pernas.
-Obrigada senhor Jo찾o, disse minha m찾e: Ela só já ia a ganir que lhe doíam as pernas
-E tem raz찾o, com o estira챌o que já fizeram n찾o é para admirar.
Ele mesmo, pegou nos meus vinte e cinco quilos e p척-los em cima do macho. Nunca lhe agradeci o gesto nobre e bondoso que tomou naquela ocasi찾o. Hoje ainda me pergunto se chegaria a tempo do bendito exame sem a sua interven챌찾o. De vez em quando eu, com pouca vontade, ainda lhe dizia:
Ó ti João, quer montar que eu desço?
-Deixa-te ir que vais bem.
O Xico repontava; ó pai, ela n찾o vai quieta com os ovos daqui a pouco caímos os dois.
O que o Xico nunca soube, é que para n찾o amarrotar o vestido, eu estava sempre a puxa-lo debaixo do assento desequilibrando-me.
Por fim, chegamos á entrada da ponte. Já se avistava a Vila de onde sobressaía a ent찾o famosa Casa Verde. Depois de deixar o macho entregue a uma pessoa conhecida, o ti Jo찾o cheio de paci챗ncia, esperou que eu cal챌asse os meus sapatos novos, dois números acima do tamanho indicado para me servirem daí a muito tempo, e come챌amos a atravessar a ponte, a caminho da escola onde iam ter lugar os exames.
-Ó mãe, deixe-me ir ali a Senhora do Amparo fazer uma promessa para eu ficar bem no exame
-A promessa, dou-ta eu. Se ficares mal, á vinda para cá atiro-te da Ponte abaixo.
-Ó senhora Adelina!.......Disse o ti João apaziguador: Não diga isso á rapariga, que ela pode-se enervar e fazer mal a prova.
-Eu cá sei as linhas com que me coso, isto é falar por falar.
Só alguns anos depois é que me apercebi que a minha pobre e querida mãe ia mais nervosa que eu, e que os meus pais, tinham sido criticados por fazer tantos sacrifícios para que eu pudesse fazer a 4ª classe. Se ainda fosse um rapaz, vá lá, que sempre fazia falta para arranjar um emprego! Agora uma rapariga pobre para que é que queria o exame? Melhor me mandassem ir servir para aprender a ser uma mulher como devia de ser. Isto, diziam aquelas senhorecas de meia tigela que mal sabiam assinar os próprios nomes, e que queriam quem as servisse a troco dos restos da comida que deixavam nos pratos. As “comadres” que as há em todas as aldeias e não só, essas diziam que parecia mal uma rapariga sozinha no meio de quatro rapazes propostos a exame, e outras coisas no género próprias dos meios rurais. Mas a minha ânsia de aprender aliada à boa compreensão de meus pais tudo superaram; o compreensível receio da minha mãe, era que eu ficasse reprovada e depois ter de ouvir as línguas viperinas a rirem-se de nós depois de tantos sacrifícios.
Por meu lado, estava consciente que a oportunidade se não repetiria mas tinha a certeza de estar bem preparada. Graças á minha boa Professora que sem esperar qualquer recompensa além da gratidão, depois das horas de aula oficiais, dava-nos em casa dela mais umas horas de explicações todos os dias. Nunca até essa altura, ela tivera um aluno seu reprovado; e essa era a sua gratificação interior. A meu ver, bem mais valiosa do que se recebesse algumas “luvas” coisa de que nunca houve conhecimento. Nos tempos que correm pode dizer-se que era um exemplo raro de dedicação ao ensino.
Chegamos á Escola dos exames um pouco cedo, mesmo assim já lá estavam algumas dezenas de alunos. Com olhar de lince vislumbrei a nossa Professora e dirigimo-nos para junto dela. Depois dos cumprimentos devidos, perguntei se os restantes rapazes já tinham chegado.
-Ainda os não vi e já estou a ficar preocupada. É que depois da sala de aula fechada para a prova escrita, não entra mais ninguém. De repente, o Francisco Vinhais, aqui já não era Xico, porque a Professora exigia que todos nos tratássemos pelos nomes próprios em vez das usuais alcunhas disse:
-Ali v챗m eles.
De facto, o Casimiro, O Viriato, e o Luís Filipe, parecendo os três da vida airada, depressa chegaram junto de nós. Depois das últimas recomendações, e com uma disposição parecida à de quem vai para a guilhotina, entramos para dar início á Prova Escrita. Na Sala repleta de alunos de todas as Aldeias do Concelho, o silêncio era sepulcral. Só se ouvia o raspar dos aparos das canetas de pau, molhadas nos tinteiros brancos, no papel.
Ditado, Problemas, Contas, Redac챌찾o, etc., tudo seguia os seus tr창mites sincronizados. Os pais ou acompanhantes, esperavam do lado de fora, quem sabe, pedindo a Deus para que nenhum dos seus fosse reprovado. Após tr챗s longas horas, abriram-se finalmente as portas e em sil챗ncio, todos esperavam sofregamente os resultados. Ninguém arredava pé. Mais algum tempo e eis que os almejados resultados eram afixados. Come챌aram os empurr천es, o esticar de pesco챌os, o por em bicos de pés a ver quem primeiro chegava junto dos resultados. A minha m찾e teve que pegar-me ao colo para eu ver o meu resultado uma vez que ela n찾o sabia ler e sendo eu t찾o pequenina, corria o risco de ser esmagada pelos mais matul천es ou pelos adultos. Depois de muitos encontr천es e pedidos de desculpas, lá chegamos aos famigerados resultados. Olhei atentamente e ao descortinar o meu nome, gritei:
-M찾e!... Fiquei bem! Ela ergueu-me bem nos bra챌os e disse:
-V챗 bem filha, n찾o te enganes.
Tornei a olhar e confirmei. Fiquei bem, m찾e, é verdade.
Quando me poisou no ch찾o, fiquei como que petrificada ao ver rolar as lágrimas pela face de minha m찾e. Intrigada, perguntei:
-Ent찾o a m찾e está a chorar porque eu fiquei bem?
-Ó filha, não. Tu não sabes que também se chora de alegria? Pois o que eu sinto agora, é uma alegria enorme como há muito tempo eu não sentia. Deus te abençoe.
Entretanto os quatro rapazes, com um sorriso de orelha a orelha, davam também a boa nova. A nossa Professora que se associava á nossa alegria, lembrou.
-Agora toca a ir comer e descansar para estarem fresquinhos para a Prova Oral que é amanh찾 á tarde.
N찾o sei onde os outros se hospedaram, quanto a mim, a minha m찾e levou-me a uma Pens찾o pequena, tipo familiar, que embora retenha o seu interior na memória, n찾o fixei o nome da rua onde a mesma se situava. Levava vinte escudos por dia, com direito a tr챗s refei챌천es e dormida. A minha m찾e pagou o estipulado e preparou-se para o regresso a casa pelo mesmo caminho.
-Ent찾o a m찾e n찾o come aqui?
-Não, come tu que eu como o resto da merenda pelo caminho. Tenho que ir fazer o caldo para o teu pai e para os teus irmãos mas amanhã cá estarei para assistir á Prova Oral. Entretanto a senhora da Pensão já trazia para a mesa, uma fumegante travessa de batatas cozidas com congro. Lembro-me como se fosse ontem. Comi que me fartei. Á noite, fui para um grande quarto onde estavam duas camas e dois colchões no chão. A mim, calhou-me um dos últimos. Entraram depois uma senhora e duas meninas que rondavam a minha idade pelo que o motivo devia ser o mesmo. Aldeãs para exame. Apoderando-se cada qual do respectivo lugar. Em menos de um credo, já eu dormia o sono dos justos sem sentir as dores das bolhas que os sapatos me haviam feito nos calcanhares. Quando acordei na manhã seguinte, o quarto estava já vazio e arrumado. Ao dirigir-me á casa de banho, vi num relógio de parede que já eram onze horas. Depois do almoço, furtei um guardanapo da mesa, e fui para o quarto puxar o lustro aos sapatos com ele atirando-o depois para debaixo de uma cama. Pedi para me arranjarem o laço do cabelo e toda prosmeira, fui ter com a senhora dona Ermelinda que já me esperava á porta para me acompanhar ao local das Provas Orais. Reparou a Professora que eu andava devagar e com passo inseguro, como quem pisa ovos.