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CONTOS: O GRANDE DIA - POR GRAZIELA VIEIRA
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De: manuelnhungue  (Mensaje original) Enviado: 02/02/2008 17:54
PARTE I

O Grande Dia


20 de Julho 1953.

Ás quatro da madrugada, quando a pálida luz d’aurora ainda mal fazia a sua aparição, já minha mãe me arrancava aos braços de “Morfeu” onde eu na véspera, prometera a pés juntos não mergulhar.

Chegara enfim o grande dia. O dia do acontecimento mais relevante dos meus franzinos dez anos. Ia, enfim, fazer o meu exame da 4짧 classe a Mirandela.

Mirandela!!!!!!!! Uma Vila que eu só conhecia em sonhos, ou de ouvir falar. A azáfama dos últimos preparativos e conselhos dos familiares orgulhosos, as últimas recomendações da senhora D. Ermelinda Rafael, minha professora e irmã do ilustre médico Dr. Mário Rafael, tinham feito com que adormecesse mais tarde e àquela hora, francamente, não me apetecia nada levantar.

- Anda filha que são horas: já tens o caldo na malga. Põe-te a dormir e depois come do sono. Olha que o exame não espera por ti e temos muito que palmilhar. Se tínhamos! É que dos Avidagos, minha terra, até Mirandela são cerca de 24 km os quais tínhamos que fazer a pé:

-Porqu챗? Pela simples raz찾o de n찾o haver dinheiro para a Camioneta, ida e volta, para a chita do vestido novo que a minha tia Mariana me fez, para os sapatos comprados para a ocasi찾o, para pagar a Pens찾o onde teria que ficar, etc. Os meus pais para suprir as despesas mais prementes, tiveram que segar manual e prematuramente duas jeiras de trigo e vender o gr찾o ao senhor Regedor.

O sacrifício foi enorme, mas o orgulho de ter uma filha que ia fazer o exame da 4짧 classe quando ainda n찾o era obrigatório, compensava-os plenamente.

Engoli o caldo á pressa e pusemo-nos a caminho eu e minha m찾e. As nossas socas brochadas faziam barulho nas pedras do caminho quebrando o sil챗ncio matinal. De vez em quando sacudia uma ruga, imaginária, do vestido novo. Por vezes, levava a m찾o á cabe챌a a ver se a fita cor-de-rosa que a minha avó materna me oferecera para a ocasi찾o, ainda lá estava. Querida avó! Tinha vindo das Varges aos Avidagos a pé só para me presentear com a fita. Ela queria que a sua neta, fosse a mais bonita de todas. N찾o estou bem certa, mas penso que a distancia por ela percorrida por caminhos tortuosos, devia rondar os nove ou dez quilómetros, sen찾o mais.

Comecei a tomar no챌찾o da responsabilidade em n찾o defraudar, com um chumbo, as expectativas e esperan챌as que os familiares em mim depositavam.

-Ó mãe ainda falta muito?

-N찾o, é já ali.

Relógio? Que é dele. Isso era um luxo dos ricos, mas pelas minhas contas, havia mais de duas horas que a minha m찾e dizia, é já ali. Eu nunca antes tinha feito uma caminhada daquela envergadura. As minhas fracas pernas, come챌avam já a acusar o cansa챌o. Sem querer, invejava os meus cinco irm찾os mais novos que haviam ficado no aconchego da cama. O sol come챌ava a despontar no horizonte cobrindo as já louras searas de trigo e centeio que ondulavam com a fresca brisa matinal como se fosse um mar gigantesco de ouro salpicado de papoilas vermelhas mais fulgurantes que rubis. As cotovias, melros, rolas e pican챌os, saudavam o astro-rei com os seus melodiosos gorjeios, num agradecimento á m찾e natureza o fausto banquete que esta pusera á sua disposi챌찾o e das respectivas proles. De vez em quando, uma lagartixa espreitava por entre as pedras do caminho, curiosa com o sincronizado das nossas socas, trepa que trepa. Ao longe, um ou outro rancho de segadores come챌ava o seu árduo trabalho com os rins dobrados sobre as searas que as seitouras iam dizimando. De repente um frémito de alegria percorreu o meu já cansado corpito ao avistar uma povoa챌찾o. Aligeirei o passo e pergunte

-Ó mãe, ali já é Mirandela?

-Daqui lá n찾o me doa a mim a barriga, respondeu a minha m찾e já agastada de tantas vezes responder, á contínua pergunta de, ainda falta muito?

-Ali s찾o as Lamas, falta quase outro tanto para chegar a Mirandela e temos que andar mais depressa para estar lá ás nove horas sen찾o, n찾o fazes o exame.

Prossegui calada deitando um olhar de esguelha á saquita que a minha m찾e levava á cabe챌a onde a par dos livros e da merenda, iam os sapatos novos que só cal챌aria á entrada da Vila para fazer jus ao rif찾o. Menina da aldeia, á entrada da Vila cal챌a a meia A malga do caldo de cebola? Onde é que ela já ia.

Reparando nas minhas espiadelas á saquita e como caminhássemos ao longo de uma parede que circundava uma horta, a minha m찾e disse:

- Sentemo-nos só um cibinho para comer que depois já temos força para andar mais depressa. Ó que mágicas palavras para os meus ouvidos. Levantei o vestido quase até á cabeça para não o sujar ou enrugar na parede de xisto, e á fatia de pão centeio, que minha mãe cozera na véspera, e ao punhado de figos secos, foi um ar que lhe deu.

Reconfortada com a frugal refei챌찾o e com cinco minutos de descanso, pusemo-nos novamente a caminho. De súbito ouvi o trotar de uma cavalgadura atrás de nós. Voltei-me devagar e disse:

-Ó mãe, vem ali o ti João Vinhais com o filho a cavalo no macho. Na verdade, não era meu tio, mas na minha aldeia, os mais novos tratavam os mais velhos por tios e tias.

-Bom dia senhora Adelina! Madrugaram!

-Bom dia senhor Jo찾o, que remédio!

Deixei de ouvir o resto dos cumprimentos e concentrei-me no Francisco Vinhais, um rapaz da minha idade e que todo janota em cima do anafado macho também ia fazer exame. Eu bem me saracoteava para ver se o Xico olhava para o meu vestido novo e para o laço que me prendia os curtos cabelos mas o Xico não reparava e eu saltitando, quase me punha á frente do macho. Ó! Vaidade feminina, que tão precocemente te manifestas em futilidades. O ti João vendo os olhares constantes que eu deitava aos cavaleiros e atribuindo-o ao meu cansaço, apeou-se e disse:

-Monta no macho enquanto vou um bocado a pé para esticar as pernas.

-Obrigada senhor Jo찾o, disse minha m찾e: Ela só já ia a ganir que lhe doíam as pernas

-E tem raz찾o, com o estira챌o que já fizeram n찾o é para admirar.

Ele mesmo, pegou nos meus vinte e cinco quilos e p척-los em cima do macho. Nunca lhe agradeci o gesto nobre e bondoso que tomou naquela ocasi찾o. Hoje ainda me pergunto se chegaria a tempo do bendito exame sem a sua interven챌찾o. De vez em quando eu, com pouca vontade, ainda lhe dizia:

Ó ti João, quer montar que eu desço?

-Deixa-te ir que vais bem.

O Xico repontava; ó pai, ela n찾o vai quieta com os ovos daqui a pouco caímos os dois.

O que o Xico nunca soube, é que para n찾o amarrotar o vestido, eu estava sempre a puxa-lo debaixo do assento desequilibrando-me.

Por fim, chegamos á entrada da ponte. Já se avistava a Vila de onde sobressaía a ent찾o famosa Casa Verde. Depois de deixar o macho entregue a uma pessoa conhecida, o ti Jo찾o cheio de paci챗ncia, esperou que eu cal챌asse os meus sapatos novos, dois números acima do tamanho indicado para me servirem daí a muito tempo, e come챌amos a atravessar a ponte, a caminho da escola onde iam ter lugar os exames.

-Ó mãe, deixe-me ir ali a Senhora do Amparo fazer uma promessa para eu ficar bem no exame

-A promessa, dou-ta eu. Se ficares mal, á vinda para cá atiro-te da Ponte abaixo.

-Ó senhora Adelina!.......Disse o ti João apaziguador: Não diga isso á rapariga, que ela pode-se enervar e fazer mal a prova.

-Eu cá sei as linhas com que me coso, isto é falar por falar.

Só alguns anos depois é que me apercebi que a minha pobre e querida mãe ia mais nervosa que eu, e que os meus pais, tinham sido criticados por fazer tantos sacrifícios para que eu pudesse fazer a 4ª classe. Se ainda fosse um rapaz, vá lá, que sempre fazia falta para arranjar um emprego! Agora uma rapariga pobre para que é que queria o exame? Melhor me mandassem ir servir para aprender a ser uma mulher como devia de ser. Isto, diziam aquelas senhorecas de meia tigela que mal sabiam assinar os próprios nomes, e que queriam quem as servisse a troco dos restos da comida que deixavam nos pratos. As “comadres” que as há em todas as aldeias e não só, essas diziam que parecia mal uma rapariga sozinha no meio de quatro rapazes propostos a exame, e outras coisas no género próprias dos meios rurais. Mas a minha ânsia de aprender aliada à boa compreensão de meus pais tudo superaram; o compreensível receio da minha mãe, era que eu ficasse reprovada e depois ter de ouvir as línguas viperinas a rirem-se de nós depois de tantos sacrifícios.

Por meu lado, estava consciente que a oportunidade se não repetiria mas tinha a certeza de estar bem preparada. Graças á minha boa Professora que sem esperar qualquer recompensa além da gratidão, depois das horas de aula oficiais, dava-nos em casa dela mais umas horas de explicações todos os dias. Nunca até essa altura, ela tivera um aluno seu reprovado; e essa era a sua gratificação interior. A meu ver, bem mais valiosa do que se recebesse algumas “luvas” coisa de que nunca houve conhecimento. Nos tempos que correm pode dizer-se que era um exemplo raro de dedicação ao ensino.

Chegamos á Escola dos exames um pouco cedo, mesmo assim já lá estavam algumas dezenas de alunos. Com olhar de lince vislumbrei a nossa Professora e dirigimo-nos para junto dela. Depois dos cumprimentos devidos, perguntei se os restantes rapazes já tinham chegado.

-Ainda os não vi e já estou a ficar preocupada. É que depois da sala de aula fechada para a prova escrita, não entra mais ninguém. De repente, o Francisco Vinhais, aqui já não era Xico, porque a Professora exigia que todos nos tratássemos pelos nomes próprios em vez das usuais alcunhas disse:

-Ali v챗m eles.

De facto, o Casimiro, O Viriato, e o Luís Filipe, parecendo os três da vida airada, depressa chegaram junto de nós. Depois das últimas recomendações, e com uma disposição parecida à de quem vai para a guilhotina, entramos para dar início á Prova Escrita. Na Sala repleta de alunos de todas as Aldeias do Concelho, o silêncio era sepulcral. Só se ouvia o raspar dos aparos das canetas de pau, molhadas nos tinteiros brancos, no papel.

Ditado, Problemas, Contas, Redac챌찾o, etc., tudo seguia os seus tr창mites sincronizados. Os pais ou acompanhantes, esperavam do lado de fora, quem sabe, pedindo a Deus para que nenhum dos seus fosse reprovado. Após tr챗s longas horas, abriram-se finalmente as portas e em sil챗ncio, todos esperavam sofregamente os resultados. Ninguém arredava pé. Mais algum tempo e eis que os almejados resultados eram afixados. Come챌aram os empurr천es, o esticar de pesco챌os, o por em bicos de pés a ver quem primeiro chegava junto dos resultados. A minha m찾e teve que pegar-me ao colo para eu ver o meu resultado uma vez que ela n찾o sabia ler e sendo eu t찾o pequenina, corria o risco de ser esmagada pelos mais matul천es ou pelos adultos. Depois de muitos encontr천es e pedidos de desculpas, lá chegamos aos famigerados resultados. Olhei atentamente e ao descortinar o meu nome, gritei:

-M찾e!... Fiquei bem! Ela ergueu-me bem nos bra챌os e disse:

-V챗 bem filha, n찾o te enganes.


Tornei a olhar e confirmei. Fiquei bem, m찾e, é verdade.

Quando me poisou no ch찾o, fiquei como que petrificada ao ver rolar as lágrimas pela face de minha m찾e. Intrigada, perguntei:

-Ent찾o a m찾e está a chorar porque eu fiquei bem?

-Ó filha, não. Tu não sabes que também se chora de alegria? Pois o que eu sinto agora, é uma alegria enorme como há muito tempo eu não sentia. Deus te abençoe.

Entretanto os quatro rapazes, com um sorriso de orelha a orelha, davam também a boa nova. A nossa Professora que se associava á nossa alegria, lembrou.

-Agora toca a ir comer e descansar para estarem fresquinhos para a Prova Oral que é amanh찾 á tarde.

N찾o sei onde os outros se hospedaram, quanto a mim, a minha m찾e levou-me a uma Pens찾o pequena, tipo familiar, que embora retenha o seu interior na memória, n찾o fixei o nome da rua onde a mesma se situava. Levava vinte escudos por dia, com direito a tr챗s refei챌천es e dormida. A minha m찾e pagou o estipulado e preparou-se para o regresso a casa pelo mesmo caminho.

-Ent찾o a m찾e n찾o come aqui?

-Não, come tu que eu como o resto da merenda pelo caminho. Tenho que ir fazer o caldo para o teu pai e para os teus irmãos mas amanhã cá estarei para assistir á Prova Oral. Entretanto a senhora da Pensão já trazia para a mesa, uma fumegante travessa de batatas cozidas com congro. Lembro-me como se fosse ontem. Comi que me fartei. Á noite, fui para um grande quarto onde estavam duas camas e dois colchões no chão. A mim, calhou-me um dos últimos. Entraram depois uma senhora e duas meninas que rondavam a minha idade pelo que o motivo devia ser o mesmo. Aldeãs para exame. Apoderando-se cada qual do respectivo lugar. Em menos de um credo, já eu dormia o sono dos justos sem sentir as dores das bolhas que os sapatos me haviam feito nos calcanhares. Quando acordei na manhã seguinte, o quarto estava já vazio e arrumado. Ao dirigir-me á casa de banho, vi num relógio de parede que já eram onze horas. Depois do almoço, furtei um guardanapo da mesa, e fui para o quarto puxar o lustro aos sapatos com ele atirando-o depois para debaixo de uma cama. Pedi para me arranjarem o laço do cabelo e toda prosmeira, fui ter com a senhora dona Ermelinda que já me esperava á porta para me acompanhar ao local das Provas Orais. Reparou a Professora que eu andava devagar e com passo inseguro, como quem pisa ovos.



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De: manuelnhungue Enviado: 02/02/2008 17:56

PARTE II

-Que é que tens rapariga? Vais com medo ou fizeste xixi na cama?

-N찾o minha Senhora, foram os sapatos que ontem me fizeram bolhas. Se calhar, vou-me descal챌ar.

-Nem penses, quero lá agora uma aluna minha descal챌a no exame. Cal챌a as socas.

-N찾o as tenho cá, a minha m찾e levou-as.

Ao cabo de uns minutos que me pareceram séculos devido ás dores, lá chegamos ao local. Já estava o que me parecia a mim, um mar de gente junto da Escola, para assistir ás Provas Orais. Naquela época, mesmo quem n찾o tinha familiares a fazer exame, gostava de assistir ás Provas Orais para ver as habilidades dos alunos conhecidos e n찾o só.

Como n찾o descortinasse a minha m찾e em parte alguma, trepei ao muro para ver melhor em todas as direc챌천es. Que grande desilus찾o! N찾o estava em parte alguma. De certo n찾o pode vir. Era t찾o longe! Ainda na véspera fizera a pé o caminho de regresso, e com certeza n찾o aguentara outra viagem.

Envolta nos meus pensamentos, nem me dera conta de que já todos tinham entrado.

A sala estava cheia até à porta. Saltei o muro e precipitei-me para a entrada onde algumas pessoas não me queriam deixar entrar.

Que queres tu daqui? N찾o v챗s que n찾o podes entrar? Vai brincar para a rua.

-Mas eu vou fazer exame, respondia em altos gritos. As pessoas olhavam para o meu corpo franzino, que n찾o aparentava mais que seis anos, e riam-se.

Ch척: - Cresce e aparece.

No meu desespero comecei a distribuir pontapés a torto e a direito, e furando por baixo da amálgama de pernas que vedavam a entrada da sala de Aulas, lá consegui chegar ao meu lugar. Mesmo a tempo… Estavam a chamar pelo meu nome.

Muito esbaforida, com os livros a monte dentro da saquita e toda despenteada, devido à entrada forçada, encaminhei-me para a mesa do Júri. Por instantes, esqueci a minha mãe, e concentrei-me na enorme responsabilidade do momento.

-Abre o livro de leitura.

Fiz o que me era mandado. O livro abriu-se na Lenda da Laranjeira de Santa Isabel. Li com gosto e com voz bem timbrada, era uma das minhas li챌천es preferidas. Até ali, tudo bem

-Vamos à História.

Mentalmente, pedia a Deus que me fizessem perguntas sobre D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil que me fascinava e do qual eu sabia tudo de cor e salteado como se costuma dizer. Calhou-me em sorte D. Dinis. Parecia de propósito, era o rei de quem eu menos gostava.

-Que cognome teve el-rei D. Dinis?

Mas porque cargas de água me haviam de fazer perguntas sobre um homem, mesmo sendo Rei, que era mau para a Rainha Santa? Na minha fértil imagina챌찾o, um homem que proibia a Rainha de dar esmolas aos pobres a ponto de ela ter de invocar a protec챌찾o divina para que o p찾o que levava no rega챌o, se transformasse em rosas, n찾o podia ser boa pessoa. Se eu mandasse, que é o que aqueles que n찾o mandam pensam, se eu mandasse, esse Rei n찾o entrava para a História.

Fez-se sil챗ncio na sala. De novo a pergunta era repetida.

-Ent찾o, n찾o sabes?

-N찾o sei o qu챗? Perguntei como se tivesse chegado de longínquas paragens.

-Que cognome tinha el-rei D. Dinis

-Sei sim minha senhora, era o Lavrador. E antes que perguntassem mais alguma coisa, comecei a desenvolver o tema ainda mais do que seria preciso. Que tinha reestruturado a agricultura, que mandara plantar o pinhal de Leiria e tudo mais que lhe dizia respeito.

-Ent찾o se sabes tudo t찾o bem, porque n찾o respondias?

-Porque n찾o gosto dele.

-E pode-se saber porqu챗?

Expliquei as minhas raz천es acima citadas. Gargalhada geral na sala.

- Sil챗ncio se fazem favor, pediu um professor que de imediato me chamou para avaliar os meus conhecimentos de Geografia.

-Ora vamos lá a apontar aqui no Mapa, o rio Douro e seus afluentes.

Depois de satisfeito com as minhas respostas, levou-me ao Mapa cor-de- rosa.

-Agora diz-me: estamos em Mirandela, queremos ir para Luanda, como fazemos?

-Resposta pronta, n찾o podemos.

-N찾o podemos porqu챗?

Porque aqui n찾o há mar e tínhamos que ir primeiro para o Porto ou Lisboa.

Novas gargalhadas na sala.

-Sil챗ncio por favor, sen찾o mando evacuar a sala.

-Ent찾o explica-me como poderemos ir para Lisboa.

- Com o dedo, lá apontei no Mapa o percurso dos Caminhos – de - Ferro que nos levaria ao cais da Capital para apanhar o barco que nos levaria a Luanda.

-No Mapa cor-de-rosa, também n찾o me saí mal bem como em Ci챗ncias Naturais.

-Podes ir para o teu lugar, e fazer o teu trabalho manual.


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De: manuelnhungue Enviado: 02/02/2008 17:57

PARTE III

Ao voltar-me, vi minha m찾e ao fundo da sala, sentada numa cadeira. As m찾os postas, como se estivesse rezando e com lágrimas que se assemelhavam a pérolas, deslizando pela face, precocemente enrugada devido ás agruras da vida, mais se assemelhava a uma santa de altar. Afinal, ela estivera ali desde o início, enquanto eu cá fora tentava localizá-la.

Como tivesse chegado muito cansada de tanto andar a pé, pedira para a deixarem entrar mais cedo a fim de arranjar lugar sentada. Fiquei feliz por v챗-la.

Fui para o meu lugar e peguei na meia de renda de cinco agulhas. Era o meu trabalho manual. A m찾e da minha professora é que me ensinara a fazer aqueles arabescos complicados, mas de um efeito espectacular.

Muito embrenhada na minha tarefa sobressaltei-me ao ouvir a voz da Professora encarregada da avalia챌찾o dos Trabalhos Manuais.

-Muito bem, mas que meias t찾o bonitas que estás a fazer.

-A senhora gosta?

-Gosto sim.

-Ent찾o quando as acabar, eu mando-lhas.

-Ficaria muito contente.

Nunca cumpri a promessa. Primeiro, porque n찾o sabia a direc챌찾o da simpática Professora. Depois, parece-me que nunca cheguei a acabar as meias.

-Acabaram os exames, podem sair:

Um suspiro de alívio percorreu toda a sala. Já no recinto da Escola, encontrei minha m찾e que conversava com um senhor, que ao ver-me fez sinal para me aproximar, o que fiz de imediato, embora um pouco intimidada com a eleg창ncia e a respeitabilidade que emanava daquela figura, que me parecia austera. Interroguei-o com o olhar.

-Parabéns pelo seu excelente desempenho disse: Acto contínuo, meteu-me na m찾o cinco escudos que desapareceram para dentro da saquita dos livros em menos tempo que o diabo esfrega um olho.

-Estava aqui a dizer á senhora sua m찾e que se fosse um rapaz, eu encarregar-me-ia de lhe custear os estudos. Sendo uma menina, n찾o poderei faz챗-lo porque a responsabilidade a longo prazo, seria enorme.

-Obrigada pelo grande favor, disse mordaz, e voltei-lhe as costas com vontade de arrancar-lhe a gravata, que devia ser de seda, e fazer-lha engolir juntamente com o que acabara de dizer.

-M찾e, vamos embora.

-N찾o sejas mal-educada, vem pedir desculpa ao senhor doutor.

-Desculpa, porqu챗? De n찾o ter nascido rapaz para lhe fazer a vontade? Sou por acaso culpada de ter nascido rapariga? Sufoquei na alma um grito de raiva e impot챗ncia, que as lágrimas n찾o deixavam de todo esconder.

Nunca tinha sido tão humilhada. Primeiro, porque me tratou por senhora e na minha idade, isso era uma ofensa para mim. Depois, parecia que me estava a acusar por eu não ter nascido rapaz. Na boca das ignorantes “comadres”, não era de admirar o dizerem que a um rapaz nada se lhe pega e que nunca aparecia prenho em casa; agora que um senhor doutor pensasse da mesma maneira, era inadmissível.

Posteriormente, vim a saber que o senhor em quest찾o, sendo rico e sua mulher n찾o lhe podendo dar filhos, já havia custeado os estudos a tr챗s rapazes de poucos recursos; mas a sua filantropia e altruísmo n찾o se estendia ao sexo feminino.

-M찾e! Vamos embora que se faz tarde e chegamos a casa já de noite.

-Trouxe as minhas socas?

-Eu n찾o! Ent찾o n찾o queres os sapatos? Andavas toda encha com eles!

-Pois, mas fizeram-me bolhas e n찾o os aguento. Vou descal챌a.

-Tu hoje ainda ficas na Pens찾o que já está paga e amanh찾, vais na Camioneta da Carreira até ao entroncamento, que de lá até casa s찾o só tr챗s km e o teu irm찾o estará lá á tua espera. Eu é que me vou já embora a ver se ainda chego a casa antes do anoitecer. Toma lá o dinheiro para a Camioneta; agora perde-o.

Deu-me o dinheiro certo, sem fazer alus찾o aos cinco escudos que o tal senhor doutor me dera. Se calhar nem os viu, pensei eu.

Ainda ela mal tinha voltado as costas, já os sapatos estavam na saquita misturados com os livros. Descal챌a, percorri grande parte da Vila embasbacando-me diante das montras. Nunca vira coisas t찾o bonitas! E depois, a alegria de saber que no dia seguinte ia andar da Camioneta, era o culminar da suprema magia. Eu, como a maior parte das minhas amigas, nunca tinha-mos posto os pés dentro de um carro; quando eu lhes contasse a aventura, iam-se roer de inveja. De repente, ali perto do Mercado, estava na montra de um estabelecimento uma boneca com um vestido quase igual ao meu. N찾o é que ela parecia que se estava a rir para mim? Os cinco escudos dentro da saquita come챌aram a pesar como chumbo. Muito hesitante, e olhando para todos os lados, entrei e perguntei o pre챌o.

-Quatro e quinhentos, respondeu a senhora atrás do balc찾o.

Nem me dei ao trabalho de regatear, depositei o dinheiro no balc찾o e esperei que a boneca viesse aos meus bra챌os.

-Queres que embrulhe?

-N찾o é preciso, obrigada. Ia a sair disparada quando a senhora me chamou.

-Toma lá o troco rapariga, olha que a boneca n찾o foge.

Saí dali direita á Pens찾o que parecia um foguete. Era a minha primeira boneca a sério. Sá as havia tido de trapos, confeccionadas por mim. N찾o mais a larguei e será escusado acrescentar que dormiu comigo.

Na Camioneta de regresso a casa, mil sensa챌천es estranhas me assaltavam. A paisagem vista de cima, parecia irreal. Era a Camioneta que estava sempre parada, ou eram as serras, árvores e casas tudo a andar para trás? Passados os primeiros minutos de novidade embriagadora, voltei a pensar no que a viagem e a boneca me fizera esquecer.

Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...Malditas palavras; haviam-se cravado na minha alma como uma ventosa de onde n찾o conseguia arrancá-las. E eu que ainda fora comprar a boneca com o dinheiro de quem se me estava a tornar odioso. Se a janela estivesse aberta, atirava a boneca por ela fora. Se fosse rapaz!...Se fosse rapaz!...

Comecei a chorar. Ia sentada a meu lado uma Freira que se dirigia ao ent찾o asilo para meninas pobres de Pereira, que ficava a um km mais ou menos dos Avidagos que ao ver-me chorar perguntou:

-Tu que tens minha filha? Reprovas-te no exame?

N찾o Irm찾.

-Ent찾o, se ficas-te bem e ganhas-te essa boneca t찾o bonita, porqu챗 essas lágrimas?

Limpei as lágrimas ao len챌o de cinco pontas e disse:

-É precisamente por causa da boneca. Estava quase a contar-lhe a verdade, quando “tardiamente” me lembrei do meu egoísmo. Gastei o dinheiro que tinha na compra da boneca e não me lembrei de comprar nada para os meus irmãos e fiz um ar de Madalena arrependida.

-Quantos irm찾os tens?

-Cinco, e todos mais novos que eu.

A Freira, meteu a m찾o numa maleta e deu-me um bom punhado de rebu챌ados e bombons:

-Toma lá, divide p’los teus irmãos.

-Muito obrigada minha santa. Ela sorriu. Um sorriso t찾o angélico que n찾o voltei a ver outro igual.

Já a pé, a caminho de casa, parei nas duas capelinhas que ficam de um e outro lado da estrada no cruzamento que vai para Pereira, um km antes dos Avidagos, para com uma pequena ora챌찾o, agradecer o resultado do exame.

Quando cheguei a casa, estava reunida toda a parentela mais chegada, para me felicitar e participar numa refei챌찾o melhorada para a qual tinham sido sacrificadas duas das melhores galinhas.

Passados os primeiros momentos de euforia, a minha m찾e come챌ou a relatar toda orgulhosa, as peripécias do exame. Olhem que até os professores estavam admirados com ela. E como todas as m찾es, até exagerava nos elogios perante as pessoas presentes: quando acabou o exame, até um senhor Doutor, blá, blá, blá

-Era demais. Levantei-me da mesa para n찾o ouvir novamente as palavras que me estigmatizaram ao longo da vida!...Se fosse rapaz!...Se fosse; Outra vez n찾o, por amor de Deus.

Dei a boneca á minha irm찾 mais nova que delirou com o presente, impondo-lhe como condi챌찾o, de que nunca brincasse com ela á minha frente sen찾o eu queimava-lha.

N찾o sei se a minha m찾e se apercebeu do meu drama íntimo, quero querer que sim, mas nunca mais tocou no assunto.

Já se passaram muitos anos, mas se Freud ainda vivesse, de certeza que eu desmentiria uma das suas teorias da “Mente”. É que as meninas, segundo ele, não desejam secretamente ser rapazes por no subconsciente terem inveja do pénis, mas sim, por terem inveja da liberdade que os rapazes têm.

Felizmente que as mentalidades no que respeita a sexos opostos está a mudar, ainda que a passo de caracol.

As condi챌천es de vida também melhoraram. Os alunos, já n찾o t챗m que percorrer a pé vários km, sujeitos aos rigores do Inverno ou ao sol escaldante do Ver찾o para irem para a Escola como iam os do Carvalhal, Palorca etc. que por caminhos de cabras faziam diariamente esse percurso para virem para os Avidagos. Segundo as estatísticas, o número de estudantes do sexo feminino, já ultrapassa o masculino. Fico feliz por poderem usufruir de algumas oportunidades que me foram negadas. No entanto, uma pergunta se imp천e. Porqu챗 tanto insucesso escolar? O que é que está mal? De quem é a culpa?

Por mais que me esforce, n찾o consigo descortinar respostas adequadas, e julgo que a maioria dos portugueses também n찾o.

Será que fazem falta, umas tantas Donas Ermelindas Rafaéis para se orgulharem de nunca terem um aluno seu reprovado? Que incutia nos alunos o gosto pelos estudos, sacrificando tantas vezes a sua vida pessoal, para se dedicar inteiramente á nobre arte de ensinar? Pode ser uma das causas, mas de certeza que n찾o é a única. Haverá alguém que sem se escudar nos meandros políticos tenha as respostas?

Uma coisa é certa. Há que fazer algo urgentemente para mudar este estado de coisas, nem que para isso se tenham que criar prémios especiais para os mais aplicados.

Se nada for feito, corremos o risco dos homens e mulheres de amanh찾, nos acusarem da incúria de hoje.





Graziela Vieira

Abril de 2000

Trabalho premiado em Mirandela

Nos Jogos Florais da C창mara Municipal



 
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