A “coragem” dos moçambicanos – Filhos corajosos (2)
Maputo, Sábado, 16 de Fevereiro de 2008:: Notícias
EXISTE um ditado xangana segundo o qual heróis trazem ao mundo filhos cobardes – nhenha yi psvala toya. Parece esta tendência natural dos machanganas de generalizar em demasia – que eu ilustro aqui com a minha própria constatação – mas há um pano de fundo de verdade que vale a pena explorar. Suponho que este ditado seja o resultado de uma observação muito perspicaz. Na verdade, o filho de um herói costuma ser cobarde por razões que têm a ver com o facto de o seu progenitor ser mesmo herói. Não é uma questão genética. O herói consagrado que continua vivo cria outras condições para os seus filhos que retiram, digamos, todo o incentivo para que estes sigam na peugada do progenitor. O que resta aos filhos costuma ser o usufruto dos louros. Quem pode ainda ser herói nessas circunstâncias? Ou saber consentir sacrifícios?
Suponho que haja mais explicações para isto. Não me vou deter sobre elas porque aqui quero comentar uma outra questão directamente ligada à relação entre progenitor herói e filho cobarde. A Frelimo, pelo seu protagonismo histórico, sobretudo no que diz respeito à conquista da independência nacional, é coisa de heróis. Envolveu-a sempre uma áurea, cultivada pelos seus ideólogos em diferentes fases, que tornou o heroísmo em Moçambique algo quase que impossível. Para ser verdadeiramente herói no nosso país, era preciso girar o relógio do tempo para trás e voltar a tornar a luta anti-colonial possível. Isto não tem nada a ver com a discussão sobre se o pessoal da Renamo é herói ou não, mas muito a ver com os termos de legitimação do que cada um de nós pode fazer pelo país.
Acresce-se a este monopólio da heroicidade o aparente poder absoluto de que a Frelimo goza. Nestas circunstâncias, antes mesmo de fazer qualquer coisa pelo povo o que se impõe como tarefa imediata para os que querem fazer algo pelo povo é a emancipação do monopólio discursivo da Frelimo. Comprometer-se com o povo, portanto, passa a ser um acto de distanciamento em relação à (ideia de) Frelimo. Em artigos posteriores ainda vou me debruçar sobre algumas das manifestações que este distanciamento tem. Por enquanto, gostaria de aprofundar esta ideia do distanciamento com a sugestão de que ele é feito na base de falsos dilemas, o mais relevante dos quais é a ideia de que estar verdadeiramente do lado do povo – ou a favor de Moçambique, tanto faz – significa falar mal de tudo quanto a “Frelimo” faz. Esta atitude é exacerbada por alguns membros da Frelimo ela própria com a sua tendência de considerar inimigos do povo todos quanto criticam os erros do governo e as falhas individuais de alguns dos seus membros.
Portanto, a complexidade do nosso país fica reduzida ao que está mal â e é feito pelo governo â e o que poderia estar bom â e é do pelouro dos críticos. Como todo e qualquer falso dilema digno das suas credenciais, a sua plausibilidade não depende necessariamente do que está realmente a acontecer. Os verdadeiros termos de referência para a apreensão do nosso país passam a ser, na concepção âcríticaâ, a oportunidade que cada um de nós tem de se posicionar em relação aos que estão a fazer mal ao país. à assim que surgem no dicionário da nossa esfera pública palavras como âbajuladoresâ, âlambe-botasâ e âyes-menâ, entre outras que procuram caracterizar os que são tidos como renitentes em relação ao posicionamento que se impõe. Não é que não haja âbajuladoresâ. Na verdade, pelas mesmas razões, há gente que evolui na feira de vaidades que o nosso espaço público se tornou com base na ideia de que o mais seguro é dizer o que está em consonância com o que a âFrelimoâ considera correcto.
É nesta constelação de natureza profundamente sociológica que surge o fenómeno ao qual eu gostaria de dar o nome de “coragem dos moçambicanos”. A “coragem dos moçambicanos” não se define exactamente pela nossa capacidade individual de vencermos os nossos receios na prossecução do que é moralmente bom. A “coragem dos moçambicanos” consiste em prescindir voluntariamente de possíveis benefícios – materiais – que adviriam do silêncio cúmplice em relação ao que se pensa ser a destruição do país pela Frelimo. Prescinde-se desses benefícios lançando, preferencialmente, acusações infundadas contra tudo o que está no governo e se mexe, repetindo essas acusações para quem as queira ouvir e levantando a suspeita de conluio por parte de todos que exigem maior rigor analítico na observação do país. Quanto mais virulento for o ataque à “maldade” do governo mais convincentemente conseguimos transmitir a ideia de que somos “corajosos” à moçambicana. Ao invés da heroicidade, damo-nos por satisfeitos com a “coragem”. Ainda hei-de voltar a estes assuntos.