MOÇAMBIQUE E A PAZ VIRTUOSA
Maria José Nogueira Pinto
jurista
Cheguei pela primeira vez à cidade de Maputo, então Lourenço Marques, há muitos anos atrás. Viajava num paquete e à vista de terra, como sempre acontecia, os passageiros corriam pelo deck e debruçavam-se das amuradas invadidos por sentimentos diversos: para uns o regresso, para outros a novidade. Fui dominada pela vista deslumbrante de uma cidade de traçado rigoroso e limpo, a lembrar Haussman, uma vegetação luxuriante disciplinando o espaço, casario branco e luz como poalha dourada. Voltei uma e outra vez depois da independência e olho sempre para o copo meio cheio, registando as melhorias: um espaço público mais bem cuidado, verde por todo o lado, menos buracos no asfalto do que em algumas ruas de Lisboa, uma incipiente mas visível reabilitação urbana, as fachadas dos edifícios públicos pintadas, o grande Liceu Josina Machel com todos os vidros inteiros. As avenidas largas, as enormes acácias, os restaurantes e esplanadas ajudam a um ar cosmopolita e os pequenos mercados, o artesanato, os panos de batik desfraldados na marginal, os "chapas" a abarrotar, a "Casa Elefante" contrastam com um gigantesco centro comercial (progresso "oblige") e lojas cujas montras se assemelham ao Prix Unique francês dos anos sessenta. Sinto-me bem aqui. Ao fim do dia levanta-se um vento morno, um afago levemente pegajoso, uma mistura de humidade e açúcar como um prato de nouvelle cuisine.
Na cooperação bilateral utiliza-se uma classificação ad hoc para situar países e regiões sub-desenvolvidos numa escala cujo critério é o número de vezes que comem por dia os seus habitantes: duas vezes ao dia ou uma única vez ao dia. É um critério pragmático e seco mas elucidativo. De facto, o mundo é muito mais pobre do que imaginam os cidadãos habituais das suas zonas desenvolvidas, onde a maior causa de morte ainda é comer e beber de mais. É neste quadro de relatividade que Moçambique tem que ser visto e justamente apreciados os progressos feitos, quer na normalização da convivência democrática quer no desenvolvimento do país.
Sabemos qu찾o enormes s찾o os problemas neste continente realmente esquecido, agravados pela fragilidade de tudo: da paz, das institui챌천es, dos caprichos climatéricos, das tenta챌천es ditatoriais, das novas (e velhas) doen챌as galopantes, das quest천es étnicas, das depend챗ncias para tudo, incluindo para comer. Uma desigualdade totalmente arbitrária porque meramente geográfica: diz-me em que latitude nasceste e dir-te-ei como e quando vais morrer.
Por isso pensei, nos últimos dias passados em Moçambique, na decisiva virtude da paz para qualquer processo de desenvolvimento e como isso é ainda mais vital num país sem grandes riquezas, sem petróleo (pelo menos até agora) ou diamantes, com mais de oitenta por cento de população rural, uma agricultura que foi devolvida a um estado pouco mais que artesanal, um mar riquíssimo que por falta de meios de fiscalização é devassado por uma pesca predadora. Um país que depende grandemente dos doadores internacionais e que, embora com um Orçamento muito inferior àquele que gere, em Portugal, o ministro da Saúde, conseguiu nos últimos anos meter mais um milhão de crianças no sistema escolar.
Pode que navegar já não seja preciso mas visitar, conhecer e reconhecer é preciso. A conclusão, com êxito, do processo de reversão e transferência da Hidroeléctria de Cahora Bassa de Portugal para Moçambique e a recente Cimeira UE-África realizada em Lisboa sob a presidência portuguesa da União Europeia seria já por si suficiente para uma boa recepção ao Presidente português. Que a isso se juntassem memórias e afectos pessoais só fez bem às almas. Que Moçambique se sinta encorajado neste esforço de Paz - Governo e Oposição, pois os méritos são repartidos - é essencial. Se ao proferirem os últimos discursos, Guebuza e Cavaco dispensaram os textos escritos e falaram de improviso, algo raro em visitas oficiais de Chefes de Estado, foi porque, decerto, a ligação estava estabelecida e a corrente tinha passado. |