João Monge, um escritor de três minutos
Um escritor de tr챗s minutos
Jo찾o Monge escreve letras para os Ala dos Namorados. Estreou-se com os Trovante, ganhou fama e proveito com o Rio Grande e hoje é disputado pelos melhores intérpretes de can챌천es, mas quer continuar a viver clandestino.
Autores - Ainda tem ecos dos Loucos de Lisboa?
João Monge - Nem por isso, é uma letra que já não aprecio muito. À medida que o tempo passa, conseguimos distanciar-nos do nosso trabalho e somos capazes de apreciá-lo como se não fosse nosso. Mas ainda gosto da "Lua de Todos".
A - E das outras letras?
JM - Tenho fases. Há um momento em que damos a letra por acabada, colocamos o ponto final, assumimos que n찾o podemos dar mais um átomo para aquilo. Dentro das possibilidades de cada um, está feito e está bom. Depois passamos a uma fase de enamoramento, lambemos a cria, ficamos a contemplar a obra, confirmamos se está tudo no lugar.
A - E quando é que se pode deixar de gostar do trabalho que uma vez acabado é bom?
JM - Com o decorrer do tempo. Quando guardamos um certo distanciamento, podemos dizer que desta letra ainda gosto e daquela gosto menos, ou nada, ou podia ter feito algo diferente.
A - Renega alguma letra?
JM - Isso nunca, tudo o que fiz, foi o melhor que podia fazer naquele momento. Desse ponto de vista, vivo tranquilo.
A - Para escrever letras é preciso saber música?
JM - Eu não sei se escrever canções implica ter conhecimentos de música, mas os letristas que eu conheço, aprecio e admiro têm uma forte ligação à música Eu próprio tenho formação musical. Comecei com oito anos nas aulas de guitarra clássica e depois frequentei a Escola de Música do Hot Club de Portugal. Toco guitarra há muitos anos.
A - Queria ser músico?
JM - Os meus estudos musicais foi só por fartura de casa. Mas curiosamente comecei a fazer letras sem música.
A - Poemas?
JM - N찾o, n찾o. Nessa época descobri que para além da música das palavras há a possibilidade de as palavras sobreviverem em tempos e compassos. Um poema sobrevive no papel branco, sem mais nada, é lá o sítio dele.
A - Ent찾o o que é a letra?
JM - A letra da canção é diferente. O Carlos T. escreveu uma letra para o Rui Veloso onde diz que a canção é um poema ajudado. Eu penso que a letra da canção não sobrevive em papel branco e é passível de servir à voz humana. Por isso eu acho que ter conhecimentos de música é importante para um letrista. Mas há poemas que foram escritos como tal e são excelentes letras.
A - O poema é para ler?
JM - Exactamente. Um poema pode ser lido durante meia hora que não cansa, mas uma letra se tiver mais que três minutos é um peixe espada. Não passa pela cabeça de ninguém recitar uma letra minha. Nós à partida, quando escrevemos uma canção, temos o espartilho do tempo. Se uma canção é longa, a malta muda de posto. Como só escrevo letras para canções, sou um escritor de três minutos. É só rapidinhas.
A - Já pensou escrever mais do que can챌천es?
JM - Nunca fui desafiado para outros projectos das artes do espectáculo, para além das can챌천es. Mas estou aberto a tudo. Desde que me d챗 pica, porque n찾o?
A - E as palavras das letras, tem preocupa챌천es especiais?
JM - Só tenho a preocupa챌찾o de deixar na letra um pouco de mim, da minha forma de pensar, da minha maneira de lidar com os afectos, com os outros e com o mundo. Isto independentemente do género da can챌찾o ou do meu cantor. Isto deriva da minha forma챌찾o: quando escrevo, gosto de estar dentro dos meus sapatos.
A - E quais s찾o os seus sapatos?
JM - Sou um tipo que viveu o 25 de Abril com 17 anos, aquela alegria, a grande festa e apesar do desencanto, ainda acredito que só com um azar muito grande é que voltamos às cavernas. Estou certo que depois da maré vasa há-de vir a maré cheia.
A - A maré está vazia ?
JM - Está, pois. Mas isto não é o fim, há coisas hoje adquiridas que há 40 anos eram impensáveis. Por exemplo, estarmos aqui a falar sem medo do lápis da censura. Olhe, se não fosse o 25 de Abril hoje não seria letrista, à primeira ia logo preso. Sei lá o que seria de mim! Se calhar borrava-me de medo e nem destapava a caneta.
A - O projecto Rio Grande deu-lhe mais notoriedade?
JM - Bom, continuei clandestino, mas foi um projecto muito importante para mim. Sou autor de quase todas as letras.
A - E para quem escreve mais?
JJM - Escrevo para o pessoal de quem gosto. Sou um amador. A minha profissão é professor de Educação Visual e Tecnológica. Não sou obrigado a ir a todas e a fazer coisas de que não gosto ou trabalhar com quem não me interessa. Para além dos Trovante, dos Ala dos Namorados e do Rio Grande trabalhei com a Mízia, Ana Sofia Varela, Camané, Carlos do Carmo.
A- Gosta de trabalhar com fadistas?
JM - Gosto, porque também gosto muito de fado. É uma forma de cultura popular urbana com uma preocupação muito grande com as letras e os intérpretes. O fado, do ponto de vista harmónico e do arranjo, evoluiu muito. Fui ver o último espectáculo ao vivo do Camané e as linhas da guitarra, o baixo e a viola, tudo aquilo era de fechar o comércio.
A - O fado está mais aberto?
JM - Muita gente pensa que o fado é uma maçonaria musical de uns tipos que se embebedam e comem linguiças às quatro da manhã em Alfama. Não é nada disso, o fado tem uma imensa capacidade de se mover de fora para dentro e tem chamado imensa gente que nunca imaginei ver no fado.
A - Quem, por exemplo?
JM - O José Mário Branco. O trabalho que ele tem feito com o Camané é excepcional. Ser moderninho é fácil, mas ser contempor창neo e dizer sempre algo de novo só está ao alcance dos excepcionais. O José Mário Branco revelou isso no seu último disco e deu outra dimens찾o ao fado do Camané.
A - Fazer letras é compensador sob o ponto de vista económico?
JM - Não dá para viver exclusivamente das canções. Com o Rio Grande ganhei para mudar de sapatos, mas como isto é um trabalho contínuo, no próximo disco pode ser que nem os meus familiares o comprem e então não dá sequer para ir ao supermercado. E numa altura de crise, as pessoas cortam logo nos discos e nos livros. Os produtos culturais ficam em último plano. Portanto é melhor fiar-me no meu ordenado de professor e não pensar no que o próximo disco vai vender para ir à mercearia.
A - Encara a hipótese de trabalhar com novos artistas?
JM - As coisas n찾o se podem p척r assim. Eu sou amador e por isso posso dar-me ao luxo de fazer o que me dá na bolha e com quem escolho. Eu sei que o ordenado de professor também n찾o dá para viver, mas dar a mim próprio o privilégio de escrever letras para quem gosto, é uma forma de compensar os problemas do quotidiano.
PERFIL
O Professor das Cantigas
Jo찾o Monge nasceu em Lisboa a 1 de Agosto de 1957. Fez estudos musicais entre os 8 e os 30 anos, um bacharelato na Universidade Aberta e forma챌찾o profissional na Escola Superior de Educa챌찾o de Setúbal.
Entrou para o ensino há 20 anos mas não fez a via sacra dos professores até se profissionalizar: "Quando percebi que ia andar de terra em terra resolvi arranjar casa junto à escola onde fui colocado a primeira vez e bateu certo. Andei sempre pela margem sul e tornei-me um lisboeta suburbano". Hoje dá aulas de Educação Visual e Tecnológica na escola do Feijó. Os seus alunos são jovens dos 10 aos 15 anos.
Come챌ou a fazer letras para os Trovante, depois alimentou de cantigas os Ala dos Namorados e atingiu o auge no projecto Rio Grande. De ent찾o para cá tem escrito para vários autores, sobretudo fadistas.
Estudou guitarra clássica durante vários anos e frequentou a Escola do Hot Club. Não lhe falta trabalho, mas apesar disso diz não ter a veleidade de viver apenas das letras. "Isso é impossível. Mas já que não posso dedicar-me apenas à música, então só trabalho com quem quero".
A festa da sua vida foi o 25 de Abril, há 30 anos: "Foi mais que uma festa, foi a descompress찾o. Eu estava a tr챗s anos de decidir se ia ou n찾o fazer a guerra colonial. A realidade do país n찾o me passava ao lado e, embora n찾o tenha um passado glorioso, jamais aceitei o regime".
Em resumo: João Monge continua a trabalhar nas cantigas e a dar aulas mas o que gostava mesmo de fazer era enveredar pela música a tempo inteiro. Só que o meio musical do país ainda não absorve a tempo inteiro os "escritores de três minutos" e ele tem de continuar a ser um professor emprestado às cantigas
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