Moçambique – 30 anos de Independência
por Mia Couto
NO PASSADO, O FUTURO ERA MELHOR?
Nasci e cresci numa pequena cidade colonial, num mundo que já morreu. Desde cedo, aprendi que devia viver contra o meu próprio tempo. A realidade colonial estava ali, no quotidiano, arrumando os homens pela raça, empurrando os africanos para além dos subúrbios. Eu mesmo, privilegiado pela minha cor da pele, era tido como um “branco de segunda categoria”. Todos os dias me confrontava com a humilhação dos negros descalços e obrigados a sentarem-se no banco de trás dos autocarros, no banco de trás da Vida. Na minha casa vivíamos paredes-meias com o medo, perante a ameaça de prisão que pesava sobre o meu pai que era jornalista e nos ensinava a não baixar os olhos perante a injustiça. A independência nacional era para mim o final desse universo de injustiças. Foi por isso que abracei a causa revolucionária como se fosse uma predestinação. Cedo me tornei um membro da Frente de Libertação de Moçambique e a minha vida foi, durante um tempo, guiada por um sentimento épico de estarmos criando uma sociedade nova.
No dia da Independ챗ncia de Mo챌ambique eu tinha 19 anos. Alimentava, ent찾o, a expectativa de ver subir num mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que o sonho de um povo se poderia traduzir numa simples bandeira. Em 1975, eu era jornalista, o mundo era a minha igreja, os homens a minha religi찾o. E tudo era ainda possível.
Na noite de 24 de Junho, juntei-me a milhares de outros moçambicanos no Estádio da Machava para assistir à proclamação da Independência Nacional, que seria anunciada na voz rouca de Samora Moisés Machel. O anúncio estava previsto para a meia-noite em ponto. Nascia o dia, alvorecia um país. Passavam 20 minutos da meia-noite e ainda Samora não emergira no pódio. De repente, a farda guerrilheira de Samora emergiu entre os convidados. Sem dar confiança ao rigor do horário, o Presidente proclamou: “às zero horas de hoje, 25 de Junho...“. Um golpe de magia fez os ponteiros recuarem. A hora ficou certa, o tempo ficou nosso.
N찾o esque챌o nunca os rostos iluminados por um irrepetível encantamento, n찾o esque챌o os gritos de euforia, os tiros dos guerrilheiros anunciando o fim de todas as guerras. Havia festa, a celebra챌찾o de sermos gente, termos ch찾o e merecermos céu. Mais que um país celebrávamos um outro destino para nossas vidas. Quem tinha esperado séculos n찾o dava conta de vinte minutos a mais.
Trinta anos depois poderíamos ainda fazer recuar os ponteiros do tempo? A mesma cren챌a mora ainda no cidad찾o mo챌ambicano? N찾o, n찾o mora. Nem podia morar. Em 1975, nós mantínhamos a convic챌찾o legítima mas ingénua de que era possível, no tempo de uma gera챌찾o, mudarmos o mundo e redistribuirmos felicidade. N찾o sabíamos quanto o mundo é uma pegajosa teia onde uns s찾o presas e outros predadores.
Trinta anos é quase nada na história de um país. Estamos já distantes da injusti챌a colonial. Mas estamos ainda longe de cumprir o sonho que nos fez cantar e dan챌ar na noite de 25 de Junho. Uma parte dessa expectativa ficou por realizar. Hoje já n찾o acorreríamos com a mesma fé para celebrar uma nova anuncia챌찾o. Mas isso n찾o quer dizer que estamos menos disponíveis para a cren챌a. Estaremos, sim, mais conscientes que tudo pede um caminho e um tempo.
Poderemos recorrer a explica챌천es, apontar dedos acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. N찾o se pode esperar que um país saído do atraso da domina챌찾o colonial possa realizar aquilo que velhas na챌천es independentes est찾o ainda construindo. Mo챌ambique está aprendendo a ser soberano num mundo que aceita muito pouco a soberania dos outros. O céu que parecia infinito foi ficando estreito para as chamadas pequenas bandeiras.
No mesmo ano em que se desintegrava o império colonial português, em 1975, os Estados Unidos da América eram derrotados no Vietname. O tempo parecia correr a favor dos povos “pequenos”, capazes de enfrentar a arrogância dos poderosos. Essas vitórias criaram a ilusão de que um mundo mais justo estava despontando. Mas o sistema mundial cedo se reajustou desses revezes. A Independência de Moçambique teve que enfrentar uma dualidade: representou uma ruptura com o colonialismo mas, ao mesmo tempo, funcionou como um passo para uma maior integração num sistema capitalista que se globalizava. A essa condição ambivalente não poderíamos escapar.
Meus senhores e minha senhoras,
Caros amigos
No meu romance Terra Son창mbula criei um personagem que, por nascer no dia da Independ챗ncia, a vinte e cinco de Junho, foi baptizado de Junhito. A história decorre no decurso da nossa guerra civil que se prolongou durante 16 anos.
Certa noite, o pai de Junhito é assaltado por um pressentimento: o seu filho iria morrer em breve. Era isso o que a guerra reclamava: a morte desse que nascera em Junho. Para salvar o filho, a família resolveu transferi-lo para a capoeira que ficava no quintal. Ali Junhito aprenderia a comportar-se como as galinhas, comendo as sobras e dormindo ao relento. Resignado a sobreviver sem glória, sem brilho, sem subst창ncia.
Junhito foi-se tornando numa sombra e, em casa, os familiares estavam proibidos até de mencionar o seu nome. A mãe, mesmo ela, parecia conformada. Contudo, às escondidas da noite, ela visitava a capoeira. Sentava-se no escuro e cantava uma canção de embalar, a mesma que servira para adormecer os outros irmãos. Junhito, de início, acompanhava a mãe no canto. Mas depois, o menino já nem sabia soletrar as humanas palavras. Esganiçava uns cóós e ajeitava a cabeça por baixo do braço. E assim adormecia, sonhando que, certa vez, teria sido um homem.
A metáfora no romance é simples, quase linear. Na altura, eu denunciava a nossa progressiva perda de soberania, e uma crescente domestica챌찾o do nosso espirito de ousadia. Poderíamos ser na챌찾o mas n찾o demasiado, poderíamos ser povo mas apenas se bem comportado.
Num processo difícil e conflituoso, Moçambique criou a reputação de ser um caso de excepção em África. Esse bom-nome, devo dizer, é merecido. Esse prestígio foi conquistado, não é uma prenda de nenhum paternalismo. Fomos capazes de produzir a Paz. Fomos capazes de criar democracia formal, de construir estabilidade e de garantir liberdades de expressão e de pensamento. Tenho orgulho nesse processo. Mas tenho também receio. Porque o caminho que percorremos não foi exactamente escolhido por nós, nem está sendo testado à medida da nossa vontade. O nosso êxito não pode continuar a ser medido apenas pelo sucesso da aplicação de um directório de receitas políticas e financeiras. Ao contrário, deveríamos ser valorizados pelo modo como repensamos criativamente o nosso lugar no mundo.
Nos gloriosos anos da luta de libertação nós gritávamos “Independência ou Morte, Venceremos”. Hoje sabemos: a independência não é mais do que a possibilidade de escolhermos as nossas dependências. Na década de 70, o mundo oferecia a possibilidade de diferentes opções e alianças estratégicas. Hoje as economias nacionais perfilam-se perante um modelo sem alternativa. Escolhemos o que outros escolheram por nós. Uma parte da nossa alma foi já, mesmo sem o sabermos, conduzida para a capoeira e ali esquece a irreverência, a originalidade e o desejo de ser único.
A redução da soberania não é um processo que esteja atingindo especificamente Moçambique. É um processo generalizado. Todas nações são hoje menos nacionais, todo o cidadão é menos dono do se mesmo. Uns dizem que, agora, somos todos mundo. Mas ninguém pode ser do mundo se não tiver a sua pequena aldeia.
COMO A EUROPA VÊ ÁFRICA
Os continentes são, sobretudo, representações feitas e refeitas de acordo com os tempos. A África de hoje é uma coprodução euro-afro-americana. A versão mais recente dessa coprodução é marcada pela morte e decadência. Cadeias de TV estão confirmando essa agonia, entre doenças e guerras. O excesso de imagens dos dramas de África teve um efeito perverso: o continente deixou de ser visível. Perdeu visibilidade porque tudo parece estar já visto. Aos olhos do resto do mundo, África (ou uma parte dela) deixou de existir. Do mapa cor-de-rosa se passou ao monocromático mapa do desespero.
O apocalipse africano esteve demasiado tempo na montra, foi excessivamente filmado, fotografado, torcido e retorcido para uso da compaixão. Deixou de existir disponibilidade para entender o que está por detrás dessas imagens. Afinal, a fome a guerra são apenas os sinais de uma tragédia mais funda e mais antiga. Essa tragédia assenta em razões internas mas assenta também no lugar periférico de África e nas trocas desiguais do comércio internacional.
Uma certa esquerda europeia transitou da simpatia para um pessimismo militante. A lágrima solidária foi substituída pela indiferença e pelo descrédito. Os africanos, por seu turno, foram eternizando um sentimento de culpabilização dos outros, acreditando tratar-se da continuação de um “complot” antigo para os dizimar.
De um e outro lado, se acumularam desilus천es e impaci챗ncias. Uma mesma ignor창ncia do Outro foi transitando ao longo da História. Aos profetas do socialismo seguiram-se os profetas do neoliberalismo agitando apressadas receitas financeiras para salvar os pobres. Mas a pobreza insiste, teimosa como uma incurável doen챌a que nos devora do outro lado do Mediterr창neo.
A op챌찾o para os países doadores parece simples: dar mais ou deixar de dar. As recentes notícias mostram que, nos próximos tempos, se irá dar um pouco mais. Pelo menos em algumas na챌천es terá vencido a alternativa mais humanitária. Contudo, poucos se interrogar찾o sobre a necessidade de mudar a qualidade da rela챌찾o entre o Norte e o Sul.
COMO NÓS VEMOS A SUÍÇA
A Suíça já foi para muitos moçambicanos não um país mas o nome de uma missão religiosa. A Missão Suíça implantou-se no Sul de Moçambique, enfrentando terríveis suspeitas do regime colonial português. Henri Junod foi expulso de Moçambique em 1895 porque ensinava as chamadas “línguas dos nativos”. O missionário ajudava moçambicanos como Eduardo Mondlane a moçambicanizarem-se enquanto, nesse processo, ele mesmo se africanizava, acabando por solicitar que fosse enterrado em terras de Moçambique.
Setenta anos mais tarde, um outro suí챌o converteu-se numa figura de dimens찾o quase mitológica. Tratava-se do médico René Gagnaux, uma espécie de filantropo da nova vaga, um homem que dedicou a sua vida a atender os mais pobres. A Suí챌a, para muitos, era a terra do Gagnaux. Um dos seus filhos, agora mo챌ambicano, lidera uma das principais for챌as políticas a nível da cidade de Maputo.
Hoje temos da Suíça uma percepção mais moderna e designamo-la por via de um nome curioso: “país doador”. O mundo está hoje dividido entre os que dão e os que recebem. Como se fosse uma condição natural, genética, perpétua. Nós, os receptores daquilo que se chama “ajuda” já tivemos outros nomes: fomos Terceiro Mundo, países em vias desenvolvimento, territórios do Sul, países subdesenvolvidos, nações da periferia.
A dança dos nomes não terminou. Agora, no quadro do politicamente corrigido, nós temos, pela primeira vez, o direito de partilhar de um mesmo nome: somos ambos, ricos e pobres, chamados de “parceiros”. Este novo nome é mais simpático mas ele colide com uma questão de princípio: não se resolve nas palavras aquilo que não está resolvido na substância.
AS MÚTUAS ATRIBUIÇÕES DE CULPAS
O embaixador da Suí챌a em Mo챌ambique, o meu amigo Dr. Adrian Hadorn, é testemunha da minha insistente interven챌찾o em Mo챌ambique para combater a tend챗ncia de vitimiza챌찾o por parte dos africanos. Enquanto continuarmos culpando os europeus pelos nossos próprios falhan챌os n찾o seremos capazes de nos olharmos para nós próprios como principal motor da mudan챌a. Assumir a condi챌찾o de sujeito histórico: esse era o maior e mais instigante desafio da Independ챗ncia Nacional.
É infindável a soma de argumentos para justificar a cleptocracia e a corrupção dentro de continente africano. Alguns intelectuais africanos vêm na importação de modelos externos a origem de todos os males. Esta justificação encontra espaço em alguns doadores. Na linguagem moderna dos relatórios dos consultores este problema seria assim reportado: “falta de ownership das reformas estruturais”. Impostas de fora, essas reformas não poderiam ser implementadas. Mas tudo indica que, ao contrário, parte dessas reformas foram rápida e profundamente apropriadas por elites nacionais que as usaram a favor do seu próprio enriquecimento. O problema não parece estar na origem dos modelos mas na sua natureza política. Os africanos africanizaram a mandioca. As elites fizeram o mesmo com as reformas estruturais.
Se alguns africanos acham que a culpa é apenas dos europeus, no sentido inverso, europeus há que acreditam que a culta cabe apenas aos africanos. Uma rela챌찾o mais saudável entre uns e outros obrigaria a rupturas profundas, implicava poder come챌ar de novo. Mas esse retorno ao grau zero n찾o existe na História. Compete-nos questionar os pressupostos do nosso relacionamento recíproco.
Elegi para este pequeno texto alguns tópicos soltos. N찾o sou economista, sou um escritor cuja paix찾o reside num mundo que n찾o existe. Mas n찾o posso focar indiferente perante alguns assuntos que determinam o nosso destino comum. Eis algumas das interroga챌천es que gostaria de partilhar convosco.
O FALSO SENTIMENTO DE DESPERDÍCIO
A opinião pública na Europa e nos EUA mantém a ideia de que África pode sair da situação de crise se gerir bem os fundos doados. A ajuda apenas é insuficiente porque é mal usada.
É certo que parte das doações tem sido desviada em benefício de elites minoritárias. Algumas dessas fortunas roubadas estão aqui, bem no coração da Europa, na forma de criminosas contas bancárias. Mas a grande verdade é que, mesmo bem usada, a actual ajuda não resolveria os problemas vitais das nações empobrecidas. Pelo contrário, o actual quadro da ajuda poderá estar agravando a condição de miséria do Terceiro Mundo.
Regressemos à ideia dominante de que os valores da ajuda são astronómicos. Na verdade, é necessário colocar essas quantias no devido contexto. Os cidadãos americanos acreditam, por exemplo, que o seu país destina 15 a 20 por cento do seu Orçamento para a ajuda externa. Estão errados. Os EUA gastam menos de 1 por cento nessa ajuda, uma ninharia comparada com os milhões que o governo paga por ano aos fornecedores de armamento.
Um escritor sabe contar, n찾o sabe fazer contas. Mas um economista amigo ajudou-me a fazer umas somas e gostaria de partilhar os resultados convosco. Com os 175 mil milh천es de dólares que os EUA já gastaram na guerra do Iraque desde Marco de 2003 seria possível fazer o seguinte:
1) Instalar 40 mil pequenas e médias empresas produtivas relativamente modernas e competitivas na África Subsahariana, gerando directamente 12 milhões de novos postos de trabalho com salários e condições de trabalho acima da actual média. Deste modo se arrancaria de forma permanente cerca de 60 milhões de Africanos das malhas da pobreza. Além disto, este investimento tornaria possível às economias africanas tirarem proveito efectivo das oportunidades comerciais que hoje já existem, como sejam o caso do AGOA (comércio preferencial com os EUA) e o EBA ( everything-but-arms, comércio preferencial com a União Europeia). Isto significa que num espaço de tempo relativamente curto, o Produto Interno Bruto per capita da África Subsahariana poderia ser triplicado, não à custa de ajuda mas com base em desenvolvimento e crescimento real da economia e uma melhor distribuição do rendimento gerado.
2) Além dessas empresas, com o dinheiro gasto no Iraque seria possível também construir mais 600 escolas técnico-profissionais de alta qualidade, onde poderiam ser formados, todos os anos, cerca de 300 mil trabalhadores qualificados para impulsionarem o desenvolvimento da agricultura, agro-indústria, pesca, indústria, turismo, servi챌os, etc. Este treinamento permitiria que as empresas mencionadas acima pudessem funcionar bem com for챌a de trabalho qualificada, com repercuss천es imediatas na produtividade e do nível de vida da maioria dos Africanos.
Ou refazendo as contas: os milhares de milhões de dólares gastos no Iraque são suficientes para empregar mais 4 milhões de professores primários por um ano, ou para imunizar todas as crianças do Mundo contra diferentes doenças por 58 anos, ou para alimentar o Mundo durante os próximos 7 anos, ou ainda para terminar com o flagelo da malária em África e construir 2 milhões de novas habitações básicas.
Estes outros destinos a serem concedidos aos milhares de milh천es de dólares talvez fossem uma forma mais efectiva de combater a inseguran챌a. Porque há um terror invisível que pode estar alimentando o terrorismo internacional. Esse é o terror da fome, da pobreza, da ignor창ncia, o terrorismo do desespero perante a impossibilidade de mudar a vida.
Caros senhores,
Finalmente, quase nenhuma das na챌천es desenvolvidas cumpriu aquilo que foi estipulado há trinta anos pelas Na챌천es Unidas: destinar 0,7 por cento do seu or챌amento para a ajuda externa. Em média, esse apoio n찾o ultrapassa hoje os 0,25 por cento. Como se pode ver, n찾o s찾o apenas os países pobres que n찾o est찾o cumprindo as obriga챌천es internacionalmente assumidas.
O mais grave, porém, é que aquilo que nos é dado numa m찾o nos é retirado pela outra m찾o. Calcula-se que o proteccionismo e os subsídios retiram aos países pobres 2050 milh천es de euros. Ou seja muitíssimo mais daquilo que é o valor da ajuda. Para além disso, os subsídios agrícolas na Europa e EUA representam um contra-senso na lógica que nos é imposta em rela챌찾o aos mecanismos reguladores da economia. Numa palavra, os profetas do liberalismo de mercado n찾o fazem em casa aquilo que propalam publicamente.
Mais grave ainda: está provado que 40 por cento do valor que se acredita dar aos países pobres é destinado a pagar a consultores internacionais. Na realidade, há hoje mais expatriados em África do que havia no tempo colonial. Quer dizer: uma parte do dinheiro está sendo absorvido pelo circuito dos países ricos. Com este dado, o valor da ajuda desce de 0,25 do orçamento para menos de 0,1 por cento. Afinal, não se está dando tanto quanto os cidadãos dos países ricos acreditam.
O CICLO PERPÉTUO DA DÍVIDA
Os países africanos estão gastando e continuarão indefinidamente gastando mais a pagar o serviço da divida do que a investir na saúde ou na educação. De 1980 a 1990 a totalidade da dívida da África subsahariana mais do que duplicou. Em 1995, as exportações somadas dos países africanos não chegavam para pagar o serviço da divida. A questão para eles já não era a de pagar ou não pagar mas de sobreviver ou sucumbir.
Quando houver uma decisão sobre o cancelamento será demasiado tarde. Alguém já chamou à divida uma “guerra por outros meios”. Essa agressão silenciosa não aparece na TV mas é responsável pela morte de meio milhão de crianças em cada ano. Esta guerra faz da filantropia do Ocidente um falhanço anunciado e acabará por desacreditar um sentimento tão nobre como a solidariedade. Os mais miseráveis do continente – a quem se supõe ser destinada a ajuda internacional – pagarão, em cada ano, mais do que aquilo que estão recebendo. A verdade é simples: a divida é impagável. Nenhum pais africano poderá exercer a sua independência sem que esse fardo tenha sido eliminado. Com este passado não pode haver futuro.
Quando o HIPC [1] se decidiu em 1995 aliviar a divida de Mo챌ambique nós festejámos. O anúncio do alívio foi feito com pompa e circunst창ncia, um prémio a celebrar o nosso comportamento ajuizado. Afinal, era maior a festa que a raz찾o de festejar. De 113 milh천es por ano passou a pagar 100 milh천es. Essa redu챌찾o era, afinal, insignificante. Para se qualificar Mo챌ambique teve que implementar medidas draconianas do Programa de Reajustamento Económico. Essas medidas tiveram impactos dramáticos no país. O t찾o propalado alívio acabou n찾o libertando fundos que poderiam marcar a diferen챌a no desenvolvimento de Mo챌ambique.
Por outro lado, o que hoje se exige a Mo챌ambique n찾o se exigiu a países da Europa. Depois da grande Guerra, o chamado London Agreement aceitou que a Alemanha pagasse a divida acumulada aos aliados a uma taxa anual equivalente a 3,5 por cento dos seus rendimentos. Mais do que esse valor era tido como um factor de estrangulamento inaceitável. Porém, mesmo com a tal redu챌찾o do HIPC, Mo챌ambique pagará 13,5 % do seu rendimento. O que quer dizer que estamos pagando 4 vezes mais que se achou aceitável a Alemanha pagar, numa situa챌찾o de crise global e em que os pre챌os das matérias-primas est찾o mais baixos do que nunca.
DAR AOS POBRES A MESMA CHANCE DE EXPERIMENTAR
Os países pobres necessitam ter espa챌o para realizar os seus próprios debates e ensaios, experimentarem solu챌천es ao seu próprio ritmo. Queremos ter a liberdade de, por exemplo, poder decidir qual o melhor momento para privatizar os servi챌os públicos. Essa liberdade foi, afinal, conferida aos europeus.
Institui챌천es financeiras internacionais testaram nos países pobres fórmulas que se revelaram desastrosas. Parecia simples: tal como na receita socialista, uma mudan챌a no sistema de propriedade mudaria toda a estrutura da economia. Produziram em embalagens de aplica챌찾o fácil os pacotes de reajustamento estrutural, formulas miraculosas que nos permitiriam evoluir queimando etapas.
A Mo챌ambique também foi aplicada a mesma receita. Todos esses programas obrigaram a elevar pre챌os pelos servi챌os públicos, a cortar subsídios e reduzir or챌amentos para servi챌os sociais: toda esta receita resultou em crescente pobreza e desemprego. Hoje, é generalizado aceitar que esses programas n찾o correram bem. Quem paga para recompensar os pobres dessa falhada experi챗ncia ?
O caso da castanha de caju de Mo챌ambique é hoje tido como uma ilustra챌찾o desses falhan챌os com efeitos catastróficos . Mo챌ambique tinha e tem na castanha de caju um dos seus pilares de exporta챌찾o. Em poucos anos o sector ficou arruinado, 80 por cento das fábricas fecharam e milhares de operários ficaram sem emprego. De um modo geral, a interven챌찾o na agricultura pautou por uma ingenuidade crassa: a ideia de que intervindo nos pre챌os se acabaria resolvendo tudo o resto.
Os actuais pacotes de redu챌찾o da pobreza absoluta poder찾o ser a simples continua챌찾o, com outro vestuário, dos Programas de Reajustamento anteriormente falhados.
MORALIZAR AQUILO QUE SE PODE EXIGIR AOS OUTROS
Parte dos que nos pedem n찾o é historicamente realizável. Os países mais pobres devem liberalizar as suas economias num período mais curto do que foi alguma vez exigido aos países desenvolvidos. Algumas vezes, coloca-se como condi챌찾o de liberta챌찾o dos fundos o cumprimento de metas que s찾o impraticáveis. Espera-se que fa챌amos em 5 anos aquilo que outros levaram séculos a alcan챌ar. Algumas das na챌천es europeias que nos cobram pela descentraliza챌찾o est찾o muito longe de cumprir, elas próprias, esse processo de descentraliza챌찾o.
Alguns dos que hoje nos exigem clareza, transparência e boa governação apoiaram golpes de Estado em África, patrocinaram o assassinato de líderes e apoiaram agressões a regimes sob o único pretexto de estarem do lado errado no período da Guerra Fria. Ainda hoje a ajuda que se ergue como um “dever moral” continua sendo condicionada politicamente. Quem fala, por exemplo, da ditadura infame da Guiné Equatorial? Em 1994, a embaixada dos EUA fechou e os americanos romperam com o regime da Guiné Equatorial por acharem inaceitável o regime de Teodoro Obiang. Um ano depois, quando foram descobertas importantes jazidas de petróleo, os EUA regressaram correndo, aceitando aquilo que antes era intolerável. O petróleo é um poderoso diluente de ditaduras.
Algumas das vozes que reclamam moralidade dos regimes africanos estiveram caladas perante a injustiça do apartheid. Ao menos, o meu pequeno país foi capaz de se erguer não apenas contra o poderoso apartheid sul-africano mas contra o regime rodesiano de Ian Smith. Para defendermos essa coerência de princípios perdemos 17 mol milhões de dólares, considerando apenas os custos directos da desestabilização lançada contra o nosso país. Esse divida financeira e moral não entrará nas contas com a chamada comunidade internacional. Como não entrará nas contas a guerra de desestabilização que por quase duas décadas martirizou a nação moçambicana. Hoje fala-se de guerra civil em Moçambique como se esse conflito tivesse tido apenas contornos endógenos. É preciso não esquecer nunca: essa guerra foi gerada no ventre do apartheid, estava desde o início inscrita na chamada estratégia de agressão total contra os vizinhos da África do Sul.
No meu país o espectro do terrorismo n찾o come챌ou com o Onze de Setembro. Milhares de crian챌as est찾o desde há mais de vinte anos espreitando com medo o ch찾o que v찾o pisar. Mais de um milh찾o de minas anti-pessoais foi semeada durante a guerra. Milhares desses engenhos mortais continuam semeando o terror no seio de cidad찾os inocentes. Quantos dos países ricos que se mobilizam contra terrorismo assinaram a conven챌찾o para o banimento da produ챌찾o de minas ?
O CONVITE PARA A SIMULAÇÃO
A resposta a tudo isto, é claro, deveria vir de dentro dos países pobres. Teríamos que ter agenda, própria, uma estratégia nossa. Forçados a sobreviver no imediato vamos investindo naquilo que são chamadas as “sound policies”: o que é bom é privatizar, descentralizar, cumprir os indicadores da macro-economia. Mesmo sabendo que isso corresponde a uma encenação para agradar aos doadores. É mais importante obedecer cegamente a um valor estipulado para a taxa de inflação do que criar condições de emprego. Estamos produzindo um ambiente económico e social propício para nos qualificarmos para mais ajuda, em vez de criarmos um ambiente propício para o nosso desenvolvimento.
As palavras da moda vão-se sucedendo num léxico descartável: “comunidades locais”, desenvolvimento sustentável, assuntos de géneros, sociedade civil, povos indígenas, comunidades tribais. Nem sempre se entende a substância concreta dessas palavras. Mas elas conduzem a um jogo de sedução reciproca, a uma infindável encenação teatral. Não tarda que nos nossos países – esses a quem se ordena que emagreçam o Estado – surjam Ministérios para a Sociedade Civil, Ministérios das ONGs, Ministérios para a sustentabilidade.
Caros amigos,
Em 1984 eu estava na minha varanda quando vi chegar a tempestade. Na altura n찾o tinha nome, mas uma enorme ventania fez levantar poeiras no ch찾o e ondas no mar, misturando granizo e vento, quebrando vidros, erguendo tectos, espalhando destrui챌찾o. Depois, o fenómeno levou nome, um nome de mulher como convém a qualquer tempestade que se digne. A tempestade foi chamada de DOMOINA. A minha angústia perante os destro챌os era: como nos vamos reerguer, em plena guerra e no meio da maior miséria? Mas a solidariedade interna, ainda assim, deitou semente e colheu fruto. Os apoios vieram de dentro e o país encontrou ainda for챌a para se levantar. Em pouco tempo, as feridas estavam curadas e cicatrizadas.
Falamos aqui da cooperação de Moçambique com a Europa e com o Mundo. Mas a primeira grande questão seria como é que Moçambique está cooperando consigo mesmo? Como é que se promove o desenvolvimento a partir de dentro? Este debate tem que ser conduzido dentro de África. Ele já está nascendo com a emergência de jovens que não se satisfazem com o discurso saturado da culpabilização dos outros sempre que analisa a situação interna do continente. O maior desastre de África não é ser pobre mas ter sido empobrecida pela aliança entre a mão exploradora de fora e a mão conivente de dentro.
Trinta anos a pedir apoio cria uma depend챗ncia mental que anula o espírito do 25 de Junho. Há toda uma gera챌찾o de quadros que já raciocina em fun챌찾o do que e a quem se vai pedir. Estamos criando Junhitos, gente que se sonha doméstica e domesticada. O mais grave é que a reprodu챌찾o dos Junhitos se faz dentro de Mo챌ambique, de forma endógena e indígena.
África não é o continente dos outros, um simples dever moral, um assunto de retórica diplomática. É verdade que compete aos africanos reconquistarem a sua credibilidade como parceiros. Mas os africanos não poderão fazê-lo no quadro actual da governação mundial. A verdadeira ajuda será não dar mais mas lutarmos juntos, europeus e africanos, para mudar esta teia de relações. Precisamos de uma ajuda que nos torne menos dependentes da ajuda, temos que construir uma dependência progressivamente menos dependente.
Por enquanto, o que vamos fazendo nós, doadores e receptores, é tocar a duas m찾os uma valsa que esconde uma irresolúvel agonia. No final, o continente africano poderá ter mais algumas escolas, mais alguns hospitais. Mas n찾o terá gerado recursos próprios nem desenvolvido as for챌as produtivas.
Há 30 anos os mo챌ambicanos venceram um poderoso exército desencadeando uma luta de pequenos grupos de guerrilha. Ainda hoje as vitórias que conseguirmos ser찾o por via dessa persist챗ncia guerrilheira. N찾o há grandes solu챌천es, grandes reviravoltas que fa챌am endireitar o eixo da Terra. A nossa soberania (e também a vossa soberania) está nessa fresta, nesse intervalo. O que necessitamos é de um maior diálogo, maior comparticipa챌찾o e reciprocidade dos mecanismos de controle dos dinheiros e dos compromissos assumidos. O que necessitamos é de nos tornarmos parceiros de verdade.
Termino confessando-vos um sonho, um desejo. Os trinta anos de Independência não são apenas um momento já vivido. São um tempo vivo cujas potencialidades ainda se irão revelar por inteiro. O nosso passado, desde 1975, é um futuro. Uma semente que está dando árvore. Queremos ter direito à sombra dessa grande árvore. E queremos partilhar essa promessa de felicidade com os nossos irmãos da Suíça. Porque também eles, os suíços, nos ajudaram a semear esse futuro.
16/Junho/2005