Dentro do campo, não havia papelinhos. Devidamente autorizado pelos treinadores, roubava-lhes a braçadeira para os noventa minutos. A de treinador, claro está – a de capitão, só a obteve depois da retirada de José Águas. Figura serena e paternal, Coluna confere a humildade e compostura que caracterizam o período áureo das Águias durante toda a década de 60. O “Monstro Sagrado” foi um dos maiores de sempre do futebol português.
O início em Lisboa, com Otto Glória
Em Agosto de 1954, juntou-se ao Benfica, deixando o Grupo Desportivo de Lourenço Marques (GDLM), clube-filial das Águias que impediu que assinasse pelo Sporting. Na verdade, foram os leões os primeiros a demonstrar interesse na contratação de Coluna, mas a vontade do pai era que a de que Mário vestisse a camisola vermelha. O Benfica ficou com o negócio facilitado.
Coluna não foi a única cara nova do Benfica em 1954/5, pois ao moçambicano também se juntou Otto Glória, o primeiro brasileiro a treinar em Portugal. Preconizando métodos inovadores no trabalho táctico (antevia-se uma transição gradual do WM para o 4-2-4), Otto Glória foi o principal responsável pelo fim da hegemonia do Sporting no futebol português – os Leões eram o clube dominador entre 1946 e 1954.
Com ngelo a garantir estabilidade na defesa, juntando os golos do grande artilheiro José Águas e o sangue novo de Mário Coluna - na posição de interior da linha de cinco avançados - o Benfica começou a construir as fundações do fabuloso conjunto que animou a Europa. Logo nessa primeira época, o jovem Coluna foi campeão nacional, apontando 14 dos 61 golos do Benfica.
Com meia volta se vence o Barcelona
O cenário era Wankdorf, em Berna, palco da final da Ta챌a dos Campe천es Europeus (TCE) entre Benfica e o fortíssimo Barcelona de Suarez, Kocsis, Kubala e Csibor. Perante milhares de emigrantes lusos presentes no estádio suí챌o, Coluna apontou um dos melhores golos de sempre em finais europeias.
À entrada da grande área e sem deixar cair a bola no chão, Coluna desferiu um violento remate à meia volta, tendo a bola entrado bem chegada ao poste direito de Ramallets. Depois de aguentar estoicamente o 3-2, o Benfica conquistava a sua primeira edição da competição máxima de clubes europeus, destronando o penta-campeão Real Madrid dos já veteranos Di Stéfano e Puskas.
Aliás, os merengues foram as vítimas seguintes da insaciável formação orientada pelo húngaro Bélla Guttmann. Coluna marcou novamente na final – agora disputada em Amesterdão – e pôde assistir a uma exibição memorável de um rapazinho, igualmente oriundo de Lourenço Marques, que simplesmente trucidou o conceituadíssimo grémio de Chamartín. Ele mesmo, Eusébio.
O ingénuo Eusébio que no fim do jogo (vitória por 5-3) parecia mais preocupado em não perder a camisola do seu ídolo Di Stéfano – recordação guardada dentro dos calções - do que celebrar a conquista do seu primeiro grande troféu europeu. O resto já sabem, o capitão José Águas levantou a TCE pelo segundo ano consecutivo.
“Não perdoo Trapattoni”
O italiano Giovanni Trapattoni é sinónimo de glória para os lados do Estádio da Luz. Sim, porque foi “A Velha Raposa” que orientou o Benfica no ano em que os encarnados foram campeões nacionais pela última vez (2004/5). No entanto, segundo Coluna, foi o próprio Trapattoni, duro marcador, que lesionou o médio português na final de Wembley entre Benfica e Milan (1962/3).
“Nesse jogo, o Trapattoni rachou-me o peito do pé. Infelizmente, pelos regulamentos, não se podia fazer substituições e ficámos logo diminuídos [também o angolano Santana se lesionou no decorrer desse jogo, fragilizando ainda mais a equipa do Benfica, na altura orientada pelo chileno Fernando Riera]. Uma pena, porque tínhamos equipa e aquela era uma final para ganhar.
Aguentei em campo, mas só lá estive a fazer número”, contou Mário Coluna no livro “Pela mística dentro”, do jornalista José Marinho.
Mas o “pesadelo Trap” não ficou por aqui. “Quando o Trapattoni foi treinador do Benfica, estive ao pé dele e não lhe queria falar. Depois, um jornal português insistiu na história de que não tinha sido ele a lesionar-me, mas eu não me deixei levar pelo conto de fada. Foi ele, lembro-me bem e ainda hoje não lhe consigo perdoar. A televisão italiana, depois do jogo, chegou a convidar-nos para uma entrevista em directo em Milão. Fui ao local combinado e assim que entrei no estúdio percebi o logro da situação. O Trapattoni não apareceu, não teve coragem de me enfrentar.
Como benfiquista, estou-lhe agradecido pela conquista do campeonato (2004/5), mas como jogador não consigo esquecer o que ele me fez”, confidenciou.
Esta foi a primeira das tr챗s finais da TCE que Coluna perdeu. As outras duas aconteceram em 1965 (Inter) e 1968 (Man. Utd). Em dezasseis anos de Benfica, Coluna disputou cinco finais da TCE.
“Monstro Sagrado”, o protector
O que torna este “Monstro Sagrado” assim tão carismático? Os dez campeonatos nacionais conquistados? Os 126 golos em 525 jogos oficiais com a camisola do Benfica? O facto de ser o jogador com mais partidas realizadas com a braçadeira de capitão do Benfica (desde 1963 a 1970)? Tudo isso, claro. Mas também há o resto.
Mário Coluna é daqueles jogadores que já não se fabrica. É irrepetível. Firme como um contrabaixo. De um olhar sereno, sábio e que ao mesmo ostentava uma tamanha aura guerreira que nenhum adversário conseguia dormir tranquilamente na noite anterior a uma batalha com o “Monstro Sagrado”.
Coluna era um protector, que não admitia que ninguém crescesse para um colega. “Eles (colegas) sentiam-se protegidos. Perguntem ao Simões, coitado. Ele era muito castigado e nessas alturas tinha de impor a minha presença. A frase que mais intimidava os adversários era ‘Se tocas mais no miúdo, sais daqui com uma perna a lamber a outra.
Depois, agarrava-os pelas articulações dos ombros e ia apertando, cada vez com mais força. Eles gritavam e eu dizia: ‘Estás com vontade de rir?”. É possível que aquele que cometesse uma falta sobre Simões ou Eusébio desconhecesse o facto de que Mário Coluna praticava pugilismo na adolescência em Lourenço Marques.
O Mundial de 66
Principalmente devido à chegada de Eusébio (Dezembro de 1960), Coluna foi descendo com mais frequência a sua posição-base de avançado-interior para a de médio-centro, conseguindo, assim, garantir mais equilíbrio e influência na mecânica colectiva. Jogador de enorme pulmão, espírito de entrega e liderança, Coluna era também um dos mais rematadores. Tanto no Benfica, como na Selecção Portuguesa.
Uma dos principais marcos na carreira do sagaz Coluna foi a participação no Mundial de 1966 – Coluna estreou-se pela Selecção em Janeiro de 1957. “Os Magriços”, capitaneados pelo “Monstro Sagrado” e treinados por Otto Glória com a supervisão do seleccionador Manuel de Luz Afonso, realizaram uma campanha inexcedível em Inglaterra, sendo Eusébio a estrela principal - melhor marcador do torneio.
O camisa 10 Coluna era um dos dois médios-centro do 4-2-4, ao lado de Jaime Graça, o setubalense que viria a assinar pelo Benfica depois do Mundial e que ganhou o lugar nos “Magriços” devido à lesão do sportinguista Fernando Mendes. A frente de ataque era totalmente benfiquista: o “Rato Mickey” Simões na esquerda, Eusébio e Torres no meio e José Augusto na direita.
Se trocarem Torres por José Águas até ficam com o desenho atacante do Benfica que se sagrou bi-campeão em Amesterdão quatro anos antes. Portugal foi terceiro classificado no Inglaterra 66 com a espinha-dorsal do Benfica.
Lyon e o fim de carreira
Já sem condições para jogar ao seu melhor nível, decidiu pôr um ponto final na longuíssima etapa “Benfica”. Fiel ao clube que o projectou, rejeitou propostas do Porto e do Belenenses. Coluna viajou para Lyon e, no clube francês, os 35 anos do “Monstro Sagrado” contrastavam com os 18 de futuras referências do futebol francês: Bernard Lacombe e Raymond Domenech (actual seleccionador francês).
O OL ficou em 7.º lugar no campeonato e foi finalista vencido na ta챌a. Na temporada seguinte, Coluna juntou-se aos alentejanos do Estrela de Portalegre, assumindo as fun챌천es de jogador-treinador. Regressou a Mo챌ambique após o 25 de Abril de 1974 e é actualmente presidente da federa챌찾o mo챌ambicana de futebol.
Fonte: www.primeirotoque.pt