Malas de cart찾o
Oito ou oitenta
Famílias urbanas e tribos tradicionais em ruas enlameadas ou no meio de arranha-céus são um cenário banal na África contemporânea. Imagens de marca deste continente que vagueia algures entre costumes ancestrais e caprichos modernos
Basta ver os Masai que circulam nas cidades para perceber que as tribos genuínas do ‘Out of Africa’ já não existem. Enrolados em panos coloridos, apoiados em cajados, com os lóbulos das orelhas furados até ao ombro e fazendo poses cinematográficas em cima de alpercatas cujas solas são pneus de bicicleta, os Masai modernos usam óculos escuros espelhados e falam ao telemóvel. Lá se vai a mística, a vontade de visitar a Reserva Masai Mara.
Sigo para Mombaça, primeira paragem no Quénia. Vasco da Gama chegou em 1498 a caminho da Índia, mas os portugueses, estabelecidos em Malindi, só deram atenção à cidade cem anos mais tarde, quando esta foi alvo da cobiça dos turcos. Em 1593, por ordem de Filipe de Áustria, rei de Portugal, foi iniciada a construção da Fortaleza de Jesus de Mombaça, monumento que lidera o ranking das atracções turísticas da cidade. Vigiando a entrada do porto velho, o forte desempenhou um papel de tal forma decisivo na protecção da rota comercial para a Índia e dos interesses nacionais na costa oriental africana que, ao cair nas mãos do Sultão de Omã (1698), arrastou consigo a perda das restantes possessões portuguesas na costa da Tanzânia e do Quénia.
Sentada num dos bastiões do forte a olhar o mar e as excursões de estudantes que saltitam pelas ameias, imagino os terríveis últimos dias lusitanos dentro destas muralhas. Depois de um cerco que se arrastou por dois anos e nove meses - e durante o qual um surto de peste dizimou vagas de soldados - os árabes omanitas proclamaram vitória sobre apenas dez sobreviventes, incluindo um padre, heróis de que não reza a História. Vou para Nairobi numa tarde cinzenta. Pelo caminho vejo zebras a pastarem calmamente na beira da estrada, antílopes, pássaros desconhecidos, aldeias indígenas, pessoas tribais, um comboio vagaroso, macacos sem rabo. Vejo também, por sorte, ao pararmos num restaurante, o triplo salto de Nelson Évora para a medalha de ouro. Os quenianos estão eufóricos com os Jogos Olímpicos e têm razões para isso. Ontem, a vedeta inesperada foi uma jovem polícia que ganhou nos 800 metros. Comovente a história da família pobre, com o avô desdentado à porta do casebre, garantindo à reportagem do ‘Daily Nation’ que vai matar uma galinha para celebrar o regresso da neta pródiga. A capital do Quénia é uma cidade com aspirações primeiro mundistas.
Se não, como explicar a existência de um Central Park? Ou a proibição do fumo em locais públicos, incluindo ruas? Fico a conhecer a lei ao ser abordada por um polícia que me quer multar, prender, extraditar. Após o choradinho à portuguesa (que não resulta), faço ‘olhinhos de Bambi’. Minutos depois, na ‘Smoking Zone’ mais próxima, um canto de jardim vedado onde homens calados fumam no intervalo dos empregos, penso nas muitas incongruências das sociedades modernas, em políticos que definem como prioridade numa cidade com 2,5 milhões de habitantes e trânsito caótico, o 'embelezamento' dos espaços, tentativa de transformar o ‘Monstro’ na ‘Bela’.
Enquanto espero pelo visto para a Etiópia, fecho-me no quarto a ver filmes piratas, intervalo nas deambulações por uma capital, onde o que há para visitar é o Arquivo Nacional, o Nairobi National Park (espécie de zoológico), a quinta onde Karen Blixen, autora de ‘Out of Africa’, viveu entre 1914 e 1931, e um centro de girafas.
A viagem de furgoneta até Isiolo, no norte, leva-me a manhã, mas é confortável e rápida. Daqui até Marsabit, o único transporte são os camiões que passam à noite e as pick-ups de caixa aberta.
Encolho-me como posso numa que vai partir em breve: 'São só cerca de quatro horas miss, juro-lhe.' Não volto a escrever sobre o sofrimento físico destas jornadas porque ‘quem corre por gosto não cansa’, mas que fique registado que quatro horas depois tínhamos percorrido um terço do caminho e alguns dos meus órgãos internos tinham mudado de sítio.
Enfiado entre sacos de farinha, molhos de lenha e um pneu sobresselente, Steven, aventureiro irlandês de 30 anos, luta por centímetros com uma aldeã septuagenária que o empurra discretamente, enquanto masca ‘chat’, o equivalente local à folha de coca sul--americana. Falamos de viagens com Muhamed e Yussef, dois rapazes de bigode e dente de ouro. Muhamed jura a pés juntos que foram os portugueses os responsáveis pela introdução do milho e dos omnipresentes corvos no Quénia: 'Os pássaros seguiam os navios carregados de milho de Lisboa até Mombaça'.
Patricia Brito