Uma guerra esquecida
Quando passam 90 anos sobre o Tratado de Versalhes, que traçou as fronteiras e definiu as relações internacionais depois da Primeira Guerra Mundial, este quarto número da VISÃO História é dedicado àquele que terá sido o mais dramaticamente absurdo de todos os conflitos bélicos, com especial incidência na participação que Portugal teve nele.
Com efeito, as rivalidades entre as grandes potências de 1914 prendiam-se exclusivamente com o choque dos interesses económicos (onde a componente colonial desempenhava um importante papel), nada tendo que ver com diferenças ideológicas insanáveis semelhantes às que oporiam mais tarde as democracias e as ditaduras, o capitalismo e o comunismo ou o liberalismo e o fundamentalismo. Em 1914, ano terminal da Belle Époque e do poderio europeu sobre o planeta, havia apenas a vontade de um bloco de países afirmar a sua supremacia sobre outro bloco de sistema sociopolítico semelhante, e vice-versa.
Portugal, onde a jovem República triunfara menos de quatro anos antes sobre uma monarquia quase oito vezes secular, não era obviamente uma potência com ambições de domínio mundial, mas nem por isso deixava de desempenhar papel de relevo no acesso às riquezas africanas. O receio de ficar excluído do banquete dos vencedores, a cuja sobremesa seriam partilhadas as colónias, impulsionava para a guerra, ao lado da "velha aliada" Inglaterra, este nosso país já então claramente periférico. O desejo de afirmação internacional do novo regime republicano, aliado a interesses político-partidários do momento, faria o resto.
A nossa participação na hecatombe mundial seria uma vitória de Pirro: as colónias foram mantidas, mas à custa de 7 mil mortos (carne para canhão maioritariamente analfabeta que desconhecia a razão por que lutava) e de uma crise económico-financeira de amplitude sem precedentes, que haveria de abrir a porta a uma ditadura de 48 anos.
Permaneceu, por isso, durante muitas décadas, na memória colectiva portuguesa, a lembrança simultaneamente doce e amarga da Grande Guerra - assim chamada antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, e ainda depois disso, por hábito de duas décadas. Raras eram as famílias que não tinham sido directamente visitadas pela morte, num País onde pululavam os monumentos e as avenidas e praças dedicadas aos "Combatentes da Grande Guerra" e onde passou a ser venerado o "Soldado Desconhecido" sepultado no Mosteiro da Batalha. A participação portuguesa no conflito era diariamente lembrada em todo o tipo de situações pelo menos ate à década de 50, antes de Salazar ter enviado tropas para Angola "rapidamente e em força", inaugurando a segunda aventura guerreira portuguesa do século XX - esta, em contraste com a anterior, isolada e fora de época.
Hoje, a Primeira Guerra Mundial está praticamente esquecida entre nós, ao ponto de muitos jovens a confundirem com a Segunda ou, quando não é esse o caso, desconhecerem que Portugal participou nela.
Foi essa lacuna que pretendemos colmatar, em parceria com o Museu da Presidência da República, que está a organizar uma exposição sobre o tema. Alguns dos textos explicativos e interpretativos que publicamos são da autoria de redactores da VISÃO, e outros de especialistas. Estes últimos são Isabel Pestana Marques, mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, membro do Conselho Científico da Comissão Portuguesa de História Militar e autora do livro Das Trincheiras com Saudade (A Esfera dos Livros); Elzira Machado Rosa, licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em História Social Contemporânea pela Secção Autónoma de História do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, co-fundadora do Museu Bernardino Machado e da Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres; Elsa Santos Alípio, licenciada em História e mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, autora de diversos trabalhos de investigação e membro da equipa do Museu da Presidência da República, onde actualmente coordena o projecto da exposição Portugal nas Trincheiras; João Paulo Oliveira, licenciado em História da Arte e pós-graduado em Museologia, colaborador do Museu da Presidência da República onde integra a comissão executiva da exposição Portugal nas Trincheiras e de outra dedicada aos artistas nacionais que pintaram os retratos oficiais dos Presidentes da República; Francisco Carrilho, licenciado em História pela Universidade Nova de Lisboa com especialização em Ciências Documentais, ramo de Arquivo, ex-comissário da exposição 50 Anos da Visita de Estado da Rainha Isabel II a Portugal, no Museu da Presidência da República em 2007 e actualmente a preparar uma exposição sobre Sidónio Pais a inaugurar em Caminha; e Pedro Caldeira Rodrigues, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e autor de uma tese de mestrado sobre o teatro de revista na I República, também jornalista.
Todos os textos são ilustrados com muitas fotos da época, assinadas nomeadamente pelo grande fotógrafo Joshua Benoliel (1873-1932), pioneiro da reportagem fotográfica em Portugal e considerado por muitos o maior fotor-repórter português do século XX, e por Arnaldo Garcez (1885-1964), o único fotógrafo autorizado a acompanhar os soldados portugueses na frente de combate do Norte de França. Alguns destes documentos iconográficos são praticamente inéditos, já que não eram publicados há muitas décadas.
Mapas e infografias esclarecedores integram ainda esta edição que esperamos seja do agrado dos leitores, tanto os que conhecem como os que desconhecem os segredos de uma guerra esquecida