Maputo (Canalmoz) - O presente artigo tem por objectivo partilhar um dos pontos que têm vindo a adquirir mais destaque e relevância no debate sobre política monetária e cambial. Pretende-se aqui fornecer uma breve visão sobre os níveis de acumulação de reservas cambiais (RC)1 tanto a nível mundial como em Moçambique, as causas dessa mesma acumulação, bem como as implicações para os Bancos Centrais (BCs) e para o desempenho da economia real. O principal argumento exposto é que economias em desenvolvimento não devem perpetuar a acumulação de RC por dois motivos: (1) os custos associados a tal acumulação são elevados para os BCs devido à disparidade entre as taxas de juros dos Bilhetes de Tesouro (BTs) e as taxas de juro recebidas pela manutenção de moeda externa; (2) o custo de oportunidade: em países “formalmente” declarados como estáveis, o valor excessivo de RC acumuladas deveria ser canalizada para o aumento do investimento interno e para a expansão da procura agregada. A análise foi essencialmente focada nos seguintes aspectos: as causas que se encontram por detrás da acumulação excessiva, sem precedentes, de RC a nível mundial, os instrumentos de avaliação do que é excessivo no nível de RC, as implicações do processo de esterilização do excesso de RC e a racionalidade dos BCs para a contínua acumulação de tais reservas.
Evolução das Reservas Cambiais a nível mundial e em Moçambique
As RC a nível mundial aumentaram significativamente e com uma dimensão sem precedentes. Em 2006 as RC atingiram um recorde histórico de cerca de 5 triliões de USD (China Daily, 2009). Os países da África Sub-Sahariana também se destacaram nesta onda de acumulação, quintuplicando o seu volume de RC, tendo acumulado 87 biliões de USD, de 1996 a 2007 (Economist, 2007). A nível internacional, as principais fontes de divisas são as receitas de exportação de bens e serviços, as remessas do exterior, os fluxos de investimento directo privado e os fluxos de empréstimos oficiais. Moçambique apresentou igualmente um crescimento significativo no nível de RC, acumulando até 2008, 1,644 milhões de USD (FMI, 2009), constituindo um aumento na ordem dos 294% comparativamente ao que detinha em 1998. O debate à volta das RC em Moçambique enquadra-se no âmbito da discussão sobre as “excessivas”2 RC acumuladas a nível mundial e em particular em países mais pobres, como é o caso de Uganda e Lesotho que até 2007 acumulavam RC equivalentes a 6 meses de importações. Em Moçambique, as RC cobriam, em Julho de 2009, cerca de 6.21 meses de importação (BdM, 2009), o que, segundo as regras convencionais de acumulação, encontra-se acima do nível adequado capaz de evitar quebras nos níveis de importação em caso de choques adversos externos. O comportamento das RC em Moçambique depende essencialmente dos fundos de ajuda externa, em apoio ao orçamento de Estado, dos depósitos efectuados nas contas do Estado, dos desembolsos em forma de empréstimos para o sector público, dos rendimentos provenientes de aplicações do BdM no mercado internacional, entre outros (BdM3, 2008:33).
Causas da acumulação de Reservas Cambiais
Em conformidade com o principal argumento apresentado em Amarcy (2009), assume-se, com base em evidências de estudos anteriores, como principais responsáveis pela acumulação excessiva de RC a nível mundial, os motivos transaccionais, intervencionais e mercantilistas. Na teoria sobre as RC o argumento convencionalmente mais aceite é de que as reservas deveriam servir para cobrir o financiamento imediato da procura de moeda externa para motivos transaccionais, tanto no sector público como no sector privado (Aizenman, 2005). Normalmente, a utilização de reservas para esta finalidade nos países em desenvolvimento ocorre quando o acesso a empréstimos externos é limitado e as evidências sugerem que os custos decorrentes de empréstimos, para financiamento do déficit da conta corrente, são mais elevados do que as reservas cambiais que o país detém. O intervencionismo, por sua vez, é mais destacado em países desenvolvidos, caracterizados por mercados de bens e serviços e de capital com bastante abertura. A acumulação de RC para este fim encontra-se ligado à influência que tais RC exercem sobre o mercado de câmbio (Aizenman, 2005), visto que o processo pelo qual o BC acumula reservas é comprando divisas no mercado. A intervenção dos BCs na acumulação de RC surge no âmbito da estabilização de preços relativos, sendo o principal objectivo evitar a apreciação ou depreciação elevada da moeda nacional. Desta forma, a intervenção dos BCs sobre o Mercado Cambial Interbancário (MCI) e Mercado Monetário Interbancário (MMI) tem por objectivo a estabilização a curto prazo, através da venda de moeda externa, em circunstâncias em que a disponibilidade desta moeda é limitada, por forma a evitar a depreciação da taxa de câmbio. O contrário também acontece, quando os BCs intervêm para comprar moeda externa do mercado, em casos de excesso de oferta, para evitar a acentuada apreciação da taxa de câmbio (McIntosh, 2000). No entanto, uma compra excessiva de divisas no mercado feita com base em moeda doméstica, pode originar o risco de um aumento da dívida interna. A diferença entre o intervencionismo e o mercantilismo assenta no facto que o primeiro zela pela estabilidade de preços, enquanto o objectivo final no mercantilismo é a expansão da Balança Comercial (BCom) derivada do impulso às exportações. No que concerne a acumulação de RC para fins mercantilistas, alguns autores argumentam que determinadas economias pautam por acumular elevados níveis de RC com vista a obter um maior poder de manipulação das taxas de câmbio, criando como consequência a expansão da BCom e das transacções internacionais (Gupta e Agarwal, 2004; Wijnholds e Sondergaard, 2007). Desta forma, a expansão da BCom encontra-se dependente tanto de um maior intervencionismo como de um alargamento das actividades mercantilistas. Particularizando para o caso de Moçambique, a maior percentagem das RC deriva de fundos de ajuda externa, logo, não segue o princípio de uma base produtiva e, consequentemente, os motivos mercantilistas não estão em ênfase neste caso. Adicionalmente, segundo o BdM (Comunicado 19/2009), as RC têm estado, recentemente, a ser drenadas para o pagamento da dívida externa e diversas despesas do Estado. Embora os fluxos de entrada de divisas estejam discriminados em termos de investimento do Estado, remessas de mineiros no exterior e ganhos decorrentes da variação cambial e da gestão externa de reservas, não é possível quantificar o montante de moeda externa usado para investimento interno, bem como os retornos derivados desse investimento. Daí que não se possa inferir com exactidão que motivos transaccionais estejam por detrás do nível de RC detidas pelo BdM. No entanto, a necessidade de impedir a depreciação ou apreciação acentuada da moeda doméstica faz com que o BdM injecte ou enxugue divisas no mercado. Neste caso assume-se que está em causa o precaucionismo através da estabilização dos preços e dos níveis de inflação.
Implicações da acumulação de Reservas Cambiais para o BdM Em Moçambique, a política de gestão de RC é feita da seguinte forma: em casos de excessiva oferta de moeda estrangeira, o BdM intervém no MCI comprando moeda estrangeira. Este processo origina o aumento da massa monetária. Seguidamente o BdM implementa a política de enxugamento do excesso de moeda nacional através da emissão de Bilhetes de Tesouro (BTs) no MMI. A consequência desta política é a anulação da entrada de fluxos externos e a manutenção da base monetária inalterada. Outros instrumentos de gestão de liquidez são as Operações Repo (venda de títulos com compromisso de recompra e simultânea compra com compromisso de venda) e Reverse Repos (compra de títulos com compromisso de revenda). No entanto, esta política implica uma maior acumulação de RC por parte do BdM e a não absorção completa dos fluxos externos para a expansão do investimento e para o alargamento da procura agregada, pois significativa porção dos fluxos é direccionada para fins precaucionais e toma a forma de RC geridas pelo BC. A questão decorrente desta política é a seguinte: porque razão o BC emite BTs para enxugar o excesso de moeda doméstica no mercado, assumindo que este excesso irá apenas influenciar negativamente os níveis de inflação e as taxas de câmbio? O argumento alternativo seria: um aumento de liquidez no MMI leva a uma expansão do crédito que por sua vez impulsiona o investimento e a procura agregada. A base fiscal também registaria um aumento, o que levaria a uma menor dependência em fluxos de ajuda externa inclusivamente por parte do orçamento do Estado. No entanto, a actual política, baseada no processo de esterilização do excesso de moeda no mercado, apresenta custos, que seriam minimizados num cenário de promoção de investimento. Entre os principais custos destacam-se: (i) os ganhos e perdas decorrentes do poder de compra das reservas, principalmente se estas estiverem em USD (Jang-Yung Lee, 2007); (ii) o poder de compra da moeda fiduciária tende a decrescer constantemente devido à depreciação através da inflação (Jang-Yung Lee, 2007). A emissão de BTs implica o pagamento de taxas de juros sobre os BTs. Os ganhos para o BdM derivados da gestão de RC provêm da diferença entre os juros pagos em BTs e os juros recebidos pelas RC no exterior. Normalmente, e como é possível verificar pelo desempenho das taxas de juros domésticas de BTs, estas encontram-se acima das taxas de juros internacionais o que torna bastante baixos os ganhos para o BdM. Além disso, parte significativa das RC mantidas pelo BdM são denominadas em USD o que actualmente constitui uma desvantagem, visto que a nível internacional, as taxas de juros para aplicações em USD têm estado bastante baixas, próximas de zero, não constituindo esta moeda uma inspiração para os investidores. Adicionalmente, o processo de esterilização depara-se com algumas deficiências a nível de economias em desenvolvimento com rendimentos médios e baixos: (i) existência de fracos mercados de activos financeiros, o que leva a um processo de esterilização, não só mais difícil de executar em sistemas financeiros não completamente liberalizados, mas também que se transforma numa política auto-destrutiva, pois gera aumento de taxas de juro domésticas que, por sua vez, estimula a maior entrada de capitais externos (Jang-Yung Lee, 2007); (ii) não existe independência4 entre o BC e o Governo, o que faz com que a política monetária seja parcialmente determinada por desejos políticos dos membros do Governo, que se podem encontrar relacionados com interesses privados. Portanto, pelos custos implícitos encontrados no processo de manutenção da base monetária inalterada, e tendo em conta que o recursos externos poderiam ser melhor aplicados em áreas produtivas e capazes de gerar sinergias, a tese defendida em Amarcy (2009) é que, no caso de economias não exportadoras de petróleo como é a de Moçambique, não é viável a contínua acumulação de RC, sob risco de se converterem em economias cronicamente dependentes de fluxos externos para a realização das suas actividades, aumentando a sua dependência externa.
Notas de rodapé (1) Por Reservas Cambiais entende-se os meios de pagamento disponíveis por parte das autoridades monetárias de um país com vista a saldar os déficits da sua Balança de Pagamentos para com os países estrangeiros com os quais mantem relações comerciais, sendo essencialmente constituídas por moeda estrangeira e ouro acumulado pelo Banco Central.
(2) O termo “excessivo” é usado para caracterizar economias que acumulem RC superiores ao estipulado pelas duas regras mais convencionais: (i) a primeira assente na convenção de que as reservas deveriam ser capazes de cobrir pelo menos o equivalente a 3 meses de importação com vista a evitar quebras nos níveis de importação em caso de choques adversos externos, por forma a não prejudicar a Balança Comercial.; (ii) a segunda regra, de Guidotti-Greenspan que sugere que o montante de RC deve ser igual ao montante de dívida externa de curto prazo, ou seja, 12 meses ou menos. Assim, o rácio RC/dívida externa de curto prazo deveria ser igual a 1, como forma de se precaverem possíveis crises ou retiradas avultadas de moeda externa a curto prazo (Aizerman, 2005).
(3) Preços e Conjuntura Financeira.
(4) A maioria das discussões centraram-se em duas principais dimensões da independência. A primeira dimensão engloba as características institucionais que isolam o BC a partir da influência política na definição dos objectivos da sua política. A segunda dimensão engloba os aspectos que permitem com que o Banco Central implemente a sua política livremente em busca de objetivos de política monetária (Walsh, 2005).
Referências
AIZENMAN, J. and LEE, J., (2005). “International Reserves: Precautionary versus Mercantilist views, Theory and Evidence”, disponível em: http://www.aeaweb.org/annual_mtg_papers/2007/0106_1015_1303.pdf [acedido em 12 de Outubro de 2009]
AMARCY, S. 2009. The negative implications of the excessive accumulation of Foreign Exchange Reserves: The rationality of the Central Banks in hoarding Foreign Reserves” (Disponível no site do IESE: http://www.iese.ac.mz/lib/sa/dissertacao_sofia.pdf).
BANCO DE MOÇAMBIQUE. (2008). “Preços e Conjuntura Financeira”. Nº 38, Ano 13, pg.33. Março, Maputo-Moçambique.
BASTOURRE, D. et al. (2008). “What is driving reserve accumulation? A dynamic panel data approach”, disponível em: http://sccie.ucsc.edu/conference/2008/april/Bastourre-Carrera-Ibarlucia%20January%202008.pdf [acedido em 10 de Outubro de 2009]
China Daily. (2009). ”Chinas forex reserves top $2.13t by end of June”. Disponível em http://www.chinadaily.com.cn/bizchina/2009-07/15/content_8430754.htm [acedido em 13 de Outubro de 2009]
Economist. (2007). “African foreign-exchange reserves”. Disponível em http://www.economist.com/businessfinance/displayStory.cfm?story_id=9414591&source=login_payBarrier, [acedido em 14 de Outubro de 2009]
GUPTA, A. e AGARWAL, R. (2004). “How should emerging economies manage their foreign exchange reserves?”, disponível em http://129.3.20.41/eps/if/papers/0401/0401005.pdf [acedido em 30 de Setembro de 2009]
JANG-YUNG, L. (2007). “Sterilizing Capital Inflows”, Economic Issues No.7, International Monetary Fund, disponível em http://www.imf.org/EXTERNAL/PUBS/FT/ISSUES7/INDEX.HTM [acedido em 06 de Agosto de 2009]
MCINTOSH, H. (2000). “How the Foreign Ex-change Market Works”. Disponível em www.boj.org.jm/.http://cafezambeze3.multiply.com/papers_pamphlets_How_The_Foreign_Exchange_Market_Works_.pdf [acedido em 08 de Agosto de 2009]
MOHANTY, M. S. e TURNER, P. (2006). “Foreign exchange reserve accumulation in emerging markets: what are the do-mestic implications?”, Disponível em http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt0609f.pdf [acedido em 12 de Outubro de 2009]
(Sofia Amarcy – IESE)
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