onvidámos Khalil para jantar. É um amigo nosso, egípcio. Já o tínhamos ajudado quando, há alguns anos, acabava de chegar, com a sua pobreza um pouco assustada, e a sua dignidade e seriedade, que muito nos impressionaram. Na altura, ajudámo-lo a libertar-se dos preconceitos próprios de quem vem de um país pobre, com todas as dificuldades inerentes à cor da pele e ao domínio da língua.
Não quer dizer que tenhamos feito muito pelo Khalil: limitáramo-
-nos a indicar-lhe um pequeno apartamento que poderia alugar, acrescentando: «Se precisares de alguma coisa, estamos à disposição.»
Nunca teve grandes necessidades: só alguns endereços, algumas explicações sobre usos, costumes e leis, uma ou outra ajuda para decifrar certas expressões e umas quantas palavras difíceis, nomeadamente para ultrapassar determinadas complicações burocráticas. Pediu-nos, sobretudo, algum tempo: para estarmos juntos; para passar as tardes de Domingo, para não se sentir demasiado só e perdido.
Nasceu assim uma certa familiaridade entre nós, por isso, às vezes, convidamo-lo para jantar. Isto ajudou-nos a descobrir como é maravilhosa a hospitalidade. De início, também nós sentíamos sobretudo desconfiança e hesitação: talvez um medo indefinível (de quê, afinal?), e principalmente embaraço frente ao seu universo feito de deserto e pobreza, de uma língua desconhecida e de um céu sem nuvens: era tudo isso que estava escrito no rosto escuro de Khalil.
Porém, mal entrou em nossa casa, ofereceu pistácios aos miúdos e cumprimentou a cozinheira (que neste caso era eu), pelo cheirinho delicioso que vinha da cozinha (Khalil exerce a profissão de cozinheiro), e ficámos com a sensação de que os mundos estranhos existem apenas para se encontrarem. Foi um serão muito divertido, aquela primeira vez em que o recebemos em nossa casa. E, desta vez, convidámo-lo para trocar votos de Bom Natal. Também ele, pobre homem, trazia um presente para nós.
Abriu o seu embrulho sob o olhar curioso das crianças. Deve ter intuído imediatamente a desilusão delas: era um ícone – um ícone barato, mas bem feito. Representava a SS. Trindade, com os três anjos sentados à mesa. Contudo, graças ao seu sotaque estrangeiro fascinante e à argúcia que o caracteriza, conseguiu manter-nos a todos encantados, enquanto explicava o seu significado.
Explicou-o mais ou menos assim:
Khalil: «Digam lá, o que representa este ícone?»
Stefano: «São três anjos.»
Khalil: «E o que estão a fazer?»
Stefano: «Nada, estão sentados.»
Marco: «Estão sentados a beber: há um cálice; e o deserto a toda a volta.»
Laura: «Não, estão a tomar uma decisão difícil. Estão a olhar uns para os outros; até parecem um pouco tristes e preocupados!»
Khalil: «Tristes? Estão envoltos em luz, em paz...»
Laura: «Estão mas é tristes! Olha para a cara deles.»
Khalil: «E porque estarão tristes?»
Stefano: «Talvez estejam à espera de alguém que nunca mais chega!»
Laura: «Não, têm de tomar alguma decisão difícil.»
Marco: «Que disparate! Nunca ouvi falar de anjos tristes!»
Laura: «Não percebes nada. Os anjos estão tristes porque os homens são maus.»
Khalil: «Talvez Stefano tenha razão; estão à espera de alguém, e sentem-se preocupados porque nunca mais chega. Esperam alguém para começar o banquete. Quem poderá ser?»
Marco: «Estão à espera de que lhes sirvam o almoço. Na mesa há apenas uma taça. Talvez esperem o dono da casa, que foi buscar o pão e a carne.»
Stefano: «Não, não têm fome. Nem sequer têm tempo para comer: têm na mão um cajado para a viagem; em breve terão de partir.»
Laura: «Talvez esperem um amigo para partir juntos...»
Khalil: «E quem é esse amigo?»
Marco: «Como poderemos saber?»
Khalil: «Quero revelar-vos o meu segredo: estas três personagens esperam um amigo, sim. E esse amigo, reparem bem, sou precisamente eu, que estou a olhar para eles. Aqui à frente há um lugar vazio, para alguém se sentar. Foi preparado para mim. Eu, Khalil, sou estrangeiro nesta terra, mas vocês convidaram-me para jantar. Por isso me senti como um amigo esperado: prepararam-me um lugar à mesa. Por isso já não sou estrangeiro, e os três anjos são vocês: Marco, Laura, Stefano.»
Marco: «Mas nós não somos anjos: às vezes o Stefano só faz diabruras, e a Laura é uma bruxa.»
Laura: «Olha quem fala! Então e tu?»
Khalil: «Vocês de facto não são nenhuns anjos, mas quando acolhem um amigo e tratam com respeito um estrangeiro que vos visita, assemelham-se aos anjos de Deus, ou antes, assemelham-se a Deus. Quem sabe? Talvez estes três não sejam anjos, mas as três personagens que Abraão convidou a deter-se sob o carvalho, e que representam o Pai, o Filho e o Espírito Santo.»
Laura: «Quero pôr este ícone no meu quarto.»
Marco: «Não, este ícone vai ficar aqui, na sala de jantar, onde acolhemos os amigos.»
Stefano: «Sim, sim, na sala de jantar.»
Khalil: «Eu também penso que talvez seja preferível na sala de jantar; de cada vez que nos sentarmos à mesa, poderemos pensar, olhando o ícone: eis que eu sou como o amigo esperado pelos anjos, sou como o hóspede de Deus.»
Entretanto, o jantar estava pronto e tive de interromper a explicação: as crianças lutavam entre si para ficarem ao lado de Khalil, para ouvirem as suas histórias e rirem com o seu sotaque incorrecto. Ele sorria com os seus belos dentes brancos e os seus olhos marotos.
Ao acolhermos um hóspede vindo do Egipto, foi-nos concedida a alegria de nos imaginarmos no deserto, como hóspedes de Deus. Parecia-me inacreditável poder pôr tâmaras em cima da mesa.
Para um exercício de delicadeza œ
oje o Carlo disse-me: «És mesmo estúpida!» Bem sei que foi uma expressão de irritação que lhe escapou: devia estar cansado do trabalho, ou qualquer coisa lhe correu mal. É verdade que eu não esperava que ele ficasse contente quando lhe disse que tinha riscado o carro ao entrar na garagem. No entanto, aquela palavra disparatada que lhe saiu da boca magoou-me muito.
Recordo-me de quando o Carlo estava apaixonado por mim – e ainda não foi há tantos anos como isso — quanta delicadeza, quantas atenções para me ver feliz; como ele era simpático. Não passava dia nenhum sem uma lembrança, uma palavra amável, a proposta de um daqueles momentos inesquecíveis em que estávamos juntos e com que depois sonhávamos durante vários dias. E que cuidado para evitar palavras grosseiras, que desvelo em pedir desculpa por cada mal--entendido, que prontidão em perdoar e em compreender todas as minhas distracções! Tenho saudades dessas delicadezas do Carlo apaixonado.
No entanto, interrogo-me: como é possível que, depois de tanta delicadeza, se possa chegar à grosseria que faz sofrer, sem sequer se dar por isso?
A grosseria é um estilo que se tem vindo a difundir e ao qual talvez nós não tenhamos oposto resistência suficiente. Se mal se liga a televisão nos despejam para dentro de casa um chorrilho de palavras vulgares, insultos ofensivos, cenas de maldade e de violência desconcertantes; se ao longo das ruas da cidade vemos sinais de degradação e de má educação... Basta um nada, a mínima falta de atenção, para desencadear num transeunte desconhecido uma explosão de susceptibilidade…
Tão assediados por coisas deste género, acabamos, muitas vezes, por nos render.
Insistíamos com as crianças para que não dissessem palavrões, e eis que o calão vulgar entrou também nos nossos discursos. Tínhamos cultivado um certo estilo de seriedade e de boa educação: e eis que, de há um tempo para cá, nos temos deixado levar por reacções de má educação.
Em suma, vemos como as pessoas se habituam a tudo e que aquilo que outrora nos escandalizava se tornou normal, deixando-nos indiferentes. Até o pequeno Stefano pensa às vezes ter graça com palavras que aprendeu sabe-se lá onde: e os seus irmãos mais velhos desatam a rir, como se fosse um grande feito!
Contudo, não quero resignar-me. A grosseria é uma forma de superficialidade, é um sintoma de rendição, revela um grau medíocre de inteligência e interioridade. Parece-me que um certo hábito de recolhimento, de silêncio e até de oração, provocará imediata aversão pela grosseria, tornando desejável a delicadeza.
Quem sabe se eu própria não conseguirei transmitir aos meus a importância da atenção e da delicadeza!
Mas o que fazer?
Gostaria de começar por escrever uma carta: há quanto tempo não escrevo ao Carlo? Parece que o hábito de vivermos juntos esgotou o que há para dizer. Durante o noivado, o tempo nunca chegava, as páginas das cartas nunca conseguiam dizer tudo aquilo que sentíamos. Agora custa-me encontrar palavras para o postal de parabéns e acho cómodo delegar na Laura essa função.
Mas há duas linhas que quero escrever-lhe, e é precisamente a propósito da delicadeza.
Atrever-me-ei ainda a propor uma oração. Quantas graças e alegrias temos recebido através da oração feita em conjunto! Momentos inesquecíveis da nossa vida em comum.
Eis o que faremos: colocaremos na mesa o belo ícone oferecido por Khalil, acenderemos uma vela e eu farei esta oração:
Senhor, nós Te agradecemos por nos reunires em oração
na Tua presença, em nossa casa:
a nossa casa fica mais sólida,
a nossa família mais unida,
quando estamos na Tua presença.
Tu estás sempre presente,
acompanhas-nos com a Tua mão amiga e omnipotente,
mas nós somos tão distraídos e pensamos tão pouco nisso!
Esquecemos tantas vezes
que Tu nos convidas a viver contigo,
na paz, no esplendor da Tua beleza,
na consolação da Tua amizade.
A graça da oração infunde luz na nossa mente
e passamos a compreender-nos melhor,
a nós próprios e aos outros;
a graça da oração dispõe
os nossos corações para a bondade,
tornando-nos mais benévolos e pacientes;
a graça da oração infunde delicadeza
nas palavras e nos gestos,
e temos mais cuidado em dar alegria
e paz àqueles que amamos.
Concede-nos
a graça da oração;
dá-nos o ânimo de Jesus, o Filho de Deus,
para vivermos sempre em comunhão com Deus
e dar-Lhe glória
através de cada pensamento, palavra e obra.
Amen.
Quem sabe se Carlo e os nossos filhos não apreenderão nestas palavras as minhas intuições e se aperceberão das minhas queixas?
Estou certa, de qualquer modo, que delas se aperceberá o Senhor, e não deixará de me escutar.
Carlo Maria Martini
Uma bela família
Lisboa, Edições Paulinas, 1999
(Texto adaptado)
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