A fuga para o Egipto
O anjo que, invisível, acompanhava a Sagrada Família acabara por adormecer de cansaço. Mas, alta noite, uma viga do telhado rangeu com tanta força que o anjo acordou.
— Acudam! Acudam! — gritou o anjo, estremunhado.
— Que cheiro horrível é este? — E ia já pegar na trombeta de alarme para chamar as hostes dos seus irmãos anjos, mas não foi preciso. O anjo fechou a mão direita, fazendo um óculo e espreitou o horizonte. E viu que aquele mau cheiro vinha dos pensamentos repugnantes do rei Herodes. Saíam-lhe da cabeça em ondas fedorentas, como vapor de uma caldeira de água a ferver. O anjo ficou todo arrepiado e bateu as asas com força para afastar aquele cheiro horrível.
Mas era melhor avisar S. José! O anjo esfregou os olhos ensonados, sacudiu os cabelos e apareceu em sonhos a S. José. Este dormia profundamente, ressonando para as barbas brancas. Nisto, apareceu-lhe aquele Anjo de Prata, que lhe falou assim:
— Foge, José, foge! O rei Herodes quer matar o teu menino e Nosso Senhor!
S. José acordou em sobressalto. Ficou muito tempo de olhos abertos no escuro, depois levantou-se e acendeu a lanterna. A lanterna acendeu-se com a sua luz habitual. Mas quando reparou que S. José a levava para junto de Maria, aumentou um pouco a luz, cheia de respeito e curiosidade, porque até aí só conseguira ver bem Maria na noite de Natal, iluminada pelo esplendor de todos os anjos que a rodeavam.
A lanterna tentava agora dar uma luz igual a essa. Engoliu uma boa quantidade de azeite, aumentou a chama o mais que pôde, mas não conseguiu torná-la maior do que uma abelha.
«O azeite não deve ser bom — pensou a lanterna.
— Ai, eu é que não sou bom!? — respondeu o azeite.
— A culpa é da torcida!
— Minha? — gritou a torcida.
— A culpa é da chama!
— Estão muito enganados! — protestou a chama.
— A culpa é toda da lanterna!»
Enquanto a lanterna discutia assim consigo própria, tentava observar tudo o que se passava em volta. Maria continuava deitada sobre um monte de palha com o menino nos braços.
S. José aproximou-se dela nas pontas dos pés, tocou-lhe ao de leve no ombro e chamou suavemente:
— Maria!
— O que foi, José? — perguntou Maria abrindo os olhos, que brilharam como dois milagres. A lanterna olhou-a extasiada e quase se esqueceu de alumiar.
A senhora Noite, envolta no seu manto de veludo negro, mandou as estrelas estarem quietas, e ficou deslumbrada a ver aqueles olhos maiores do que o céu. Em geral, só costumava ver Maria de olhos fechados, enquanto ela dormia.
— Ouve lá, minha grande sovina — disse a Noite à lanterna. — Não poupes o azeite para eu poder ver melhor Nossa Senhora!
— Se a queres ver melhor, vai buscar a tua tampa de lata!
Mas a Noite só podia mostrar a Lua prateada em noites certas. E então, para ver melhor, abriu o manto e o céu apareceu cheio de estrelas, que começaram a brilhar como milhões de diamantes. O rosto de Nossa Senhora ficou todo iluminado.
— Temos que fugir! — disse S. José. — O rei Herodes quer matar o nosso menino!
Ao ouvir isto, o pobre estábulo rangeu de dor, em todas as suas vigas. Depois ficou petrificado de horror. Viu S. José ajudar Maria a levantar-se, viu-o atar a trouxa e depois sair, levando a lanterna na mão. E, assim que eles saíram, o estábulo desabou com um ruído surdo, morto de dor.
Lá fora a escuridão era completa. A lanterna ia iluminando mal o caminho, e a senhora Noite acendeu a estrela do Norte. Mesmo assim, Maria teve medo e disse:
— Quem me dera que nascesse o dia.
— É só um momento! — gritou o galo no quintal de um lavrador. E soltou o seu canto de despertar, tão alto como nunca se ouvira.
— Endoideceste? — gritou-lhe a Noite, zangada.
— Ainda não acabei o meu trabalho!
Mas o galo não fez caso e cantou segunda vez, ainda com mais força. O Oriente estoirou em faíscas e raios dourados e, ofegante, o Sol iluminou a Terra. A pobre lanterna apagou-se, envergonhada perante o fulgor do Sol.
O Anjo da Guarda continuava a acompanhar, invisível, a Sagrada Família, e de vez em quando espreitava pela mão fechada em óculo, a ver se havia perigo. A Noite despira o seu manto negro, tornando-se invisível.
— Estou tão cansada — disse Maria a certa altura. — Descansemos um pouco.
E sentaram-se num tronco de árvore caído.
— Se ao menos tivéssemos um burrinho! — disse S. José.
E nisto apareceu-lhes em frente um burrinho branco. Não viera de livre vontade, não. Fora preciso o anjo invisível ir puxá-lo, dizendo-lhe palavras meigas ao ouvido, para o convencer.
S. José ajudou Maria e o Menino a subirem para o burro, e continuaram a caminhada. De repente, o anjo que os acompanhava viu ao longe os soldados de Herodes. Durante uns momentos voou de um lado para o outro, sem saber que fazer, e então surgiram outros anjos, como um bando de borboletas, cada um com o seu nome e tarefa diferente.
— Que havemos de fazer, Anjo da Inspiração? — perguntou o Anjo da Guarda.
— Penso que devemos recorrer aos fabricantes de neve, Guarda de Prata.
Então o Guarda de Prata ergueu-se no ar e soprou na sua trombeta de alarme. E logo os anjos fabricantes de neve desceram do céu, trocaram algumas palavras com o Anjo da Guarda e tornaram a subir para as nuvens. Imediatamente, apareceu no Norte uma nuvem negra e a neve começou a cair em grossos flocos sobre a terra, tapando o rasto da Sagrada Família. Ao chegar a uma encruzilhada, o comandante dos soldados de Herodes não sabia por que caminho seguir. Mandou um grupo de soldados para cada lado, e ele seguiu com o seu batalhão pelo caminho certo.
O Anjo da Guarda começou a esvoaçar, muito aflito, perguntando a si próprio: «E agora?» Então, viu uma árvore com o tronco oco, e no alto um ninho de pega.
— Bondosa árvore, socorre-nos — pediu o Guarda de Prata.
Então, um golpe de vento fez a árvore dobrar-se até ao chão. Maria entrou no ninho da pega com o Menino, e o ninho começou a crescer, até que teve lugar para todos, e S. José entrou também.
Quando a Sagrada Família estava instalada como num enorme trono, o anjo disse ao burro:
— Podes entrar, burro. Também há lugar para ti!
Mas o burro respondeu:
— Não quero ficar empoleirado numa árvore como se fosse um pássaro.
Então a árvore voltou a endireitar-se lentamente.
Passados poucos instantes, chegaram os soldados de Herodes.
— Desmontar! — gritou o comandante.
— E inspeccionem bem esta árvore!
O cabo espreitou para o buraco no tronco da árvore, e disse:
— Não está cá ninguém, só um burro. Mas vejo lá no alto um ninho de pega.
— Um ninho? Não vejo ninho nenhum! — disse o comandante. Depois montou a cavalo e deu ordem de marcha.
Parou de nevar, e o Sol pôs-se a Ocidente.
— Maria — disse S. José apontando um traço azul que se via no horizonte — aquilo é o mar. Amanhã lá encontraremos um barquinho.
Passaram toda a noite no ninho da pega e na madrugada seguinte a árvore inclinou-se outra vez até ao chão, e a Sagrada Família seguiu viagem. Em pouco tempo alcançaram o mar. Lá estava o barquinho a postos, com um barqueiro, que era um anjo disfarçado. Estavam salvos!
O burro, esse recusou-se a entrar no barco, e ficou, à beira da água, a dizer adeus com a cauda, enquanto o barco se afastava a caminho do Egipto.
Felix Timmermanns
Ricardo Alberty; Maria Isabel Mendonça Soares (org.)
O livro de ouro do Natal
Lisboa, Editorial Verbo, 1978
O Clube de Contadores de Histórias