Carmen Miranda nasceu em Marco de Canaveses, foi para o Rio de Janeiro com 10 meses, tornou-se num fenómeno da música no Brasil nos anos 30 e triunfou na Broadway e em Hollywood nos anos 40 e 50. Nunca abdicou da nacionalidade portuguesa. Faz na segunda-feira 100 anos que viu a luz do dia.
Pouco tempo depois de Carmen Miranda ter feito a sua estreia na Broadway na revista musical Streets of Paris, no Teatro Broadhurst, acompanhada pelo Bando da Lua, a 19 de Junho de 1939, e ter levado apenas seis minutos (o tempo da sua actuação) a tornar-se numa celebridade nos EUA, Carmen Miranda recebeu, no camarim, a visita do almirante Gago Coutinho.
Quando sabia que era um brasileiro ou alguém do Rio a visitá-la, ou recebia um cartão em português, Carmen ignorava a política do empresário Lee Shubert, de que as suas vedetas estavam proibidas de receber os fãs dentro do teatro, e precipitava-se a receber a visita. Foi o que fez com Gago Coutinho. E segundo Ruy Castro conta na sua biografia Carmen, este, ao saber que ela tinha nascido em Portugal, perguntou-lhe: "Portanto, minha filha, porque é que não canta um fado ou um vira, em vez de sambas? E, em vez de 'O que é que a baiana tem?', por que é que não canta 'O que é que a menina do Minho tem?".
Apesar de nunca ter acedido ao desajustado desejo de Gago Coutinho, Maria do Carmo Miranda da Cunha, nascida faz na segunda-feira 100 anos em Marco de Canaveses, e levada para o Rio de Janeiro aos 10 meses e oito dias pelos pais imigrantes, jamais abdicou da sua nacionalidade portuguesa.
Carmen Miranda tornou-se, nos anos 30, numa das maiores vozes da história da música brasileira, a 'Pequena Notável'. E depois, nos anos 40 e 50, instalada nos EUA como a 'Bomba Brasileira', brilhou na Broadway, em Hollywood e nas maiores salas de espectáculo americanas e da Europa, tornando-se assim, apesar do exuberante exotismo "latino-tropical-kitsch" da sua personalidade do palco e da tela, na portuguesa mais famosa de sempre.
Numa entrevista de 1951 à Revista do Rio, a artista recordou que o momento mais inesquecível de todas as digressões que fez, foi quando cantou na ilha de Maui, no Havai, onde há uma enorme comunidade de luso-descendentes: "Fui recepcionada pela colônia portuguesa de pescadores, que desejavam que eu cantasse alguma coisa no idioma comum a brasileiros e lusitanos. Fiz-lhes a vontade, cantei um samba dos velhos tempos. Resultado: agradeceram muito, aplaudiram bastante, disseram que eu cantava muito bem, mas que eles não tinham entendido patavina..."
E sempre resistiu à vontade de Hollywood para que cantasse em espanhol, insistindo em fazê-lo sempre na sua língua natal. "Eu tenho as curvas do Brasil e canto em português", dizia.
Foi no Rio de Janeiro, em 1929, que Carmen Miranda gravou o primeiro disco, sob a égide do compositor, músico e seu professor de canto Josué de Barros. Tinha 20 anos. Em 1930 teve o primeiro êxito com Taí, que vendeu 35 mil discos (um recorde), revelou-a e levou a que a imprensa lhe chamasse "a maior cantora brasileira". Em 1933 tornou-se na primeira cantora da rádio com contrato, e fez a primeira digressão no estrangeiro, à Argentina.
Em 1939, o empresário americano Lee Shubert, o actor Tyrone Power e a actriz Sonja Heine viram o seu espectáculo no célebre Casino da Urca, no Rio, onde cantava O Que é Que a Baiana Tem?, com Dorival Caymmi, que havia gravado antes. Foi o seu passaporte para a Broadway, acompanhada pelo inseparável Bando da Lua. A sua participação na revista musical Streets of Paris transformou-a de imediato numa estrela nos EUA, e levou-a a Hollywood e a um contrato milionário com a Fox (já tinha feito alguns musicais no Brasil). Em Março de 1940, cantou para o Presidente Roosevelt na Casa Branca.
Nesse ano, foi apupada no Casino da Urca e acusada de "americanização" numa campanha de imprensa. Dois meses mais tarde, foi ovacionada no mesmo palco, gravou o último disco no Brasil e voltou aos EUA. Entre 1942 e 1953, aí fez 13 filmes e actuou na rádio, televisão, e nos mais importantes teatros, casinos e cabarés. Casou-se com David Sebastian em 1947. Dependente de barbitúricos devido à sua exaustiva agenda, Carmen Miranda voltou ao Brasil em 1954, para uma cura de desintoxicação. No dia 5 de Agosto de 1955, morreu de ataque cardíaco na sua casa de Beverly Hills. Tinha 46 anos.
O seu cortejo fúnebre no Rio de janeiro, a 12 de Agosto, foi acompanhado por cerca de meio milhão de pessoas que cantavam Taí em surdina. No Cemitério São João Batista, uma senhora grávida sentiu-se mal e deu à luz uma menina na ambulância que lhe veio acudir. Chamou-lhe Carmen.
OLINDA, A IRMàMAIS BONITA E COM MELHOR VOZ
Das quatro irmãs Miranda, Carmen ficou como a mais famosa. Aurora, a mais nova e sua amiga inseparável, também cantora e actriz, acompanhou-a por toda a parte e fez carreira paralela no palco e na tela, retirando-se em 1958. Morreu com 90 anos, em 2005, no Rio. Quem ficou esquecida foi Olinda, a mais velha antes da quarta irmã, Cecília, à qual, como escreve Ruy Castro em Carmen, a sua biografia de Carmen Miranda (Companhia das Letras), "o destino impediria de tentar tornar-se o que estava reservado à sua irmã". Olinda era a mais bonita e a que tinha melhor voz das três irmãs, facto reconhecido por toda a família, e o seu temperamento "exultante, independente, feliz", espelhava o de Carmen.
Segundo Ruy Castro, foi ela que ensinou a Carmen "os sambas, os tangos e as modinhas que aprendia na rua. Ensinou-a também a costurar e a fazer de qualquer pedaço de pano uma saia ou uma blusa, a combinar as roupas e a se vestir, a se maquiar e a valorizar seus pontos fortes e esconder os fracos".
Após ter tido um grande desgosto de amor com o primeiro namorado, Olinda caiu em depressão e ficou tuberculosa. A família enviou-a para Portugal, para Marco de Canavezes, mas a jovem teve que ser internada no sanatório do Caramulo. Nunca mais voltaria ao Rio. Morreu no sanatório, aos 23 anos, a 3 de Março de 1931. Poucos dias depois do Carnaval.
EM HOLLYWOOD MAS A INSISTIR EM CANTAR EM PORTUGUÊS
Em 1945, seis anos depois de ter assinado um contrato com os estúdios da 20th Century Fox e de ter começado a entrar em filmes em Hollywood, Carmen Miranda era a actriz mais bem remunerada dos Estados Unidos e a mulher que mais imposto profissional pagava, ganhando mais do que nomes como Bob Hope, Joan Crawford, Errol Flynn, Humphrey Bogart ou Cary Grant. Entre 1941 e 1953, data do seu último filme, a comédia de terror O Castelo das Surpresas, onde contracenou com Jerry Lewis e Dean Martin (a certa altura, Lewis faz um número de travesti da "bomba brasileira, com turbante e tudo), Carmen Miranda contracenou com vedetas como Elizabeth Taylor, Don Ameche, Alice Faye, Groucho Marx, Betty Grable, Benny Goodman, Xavier Cugat, Harry James, Cesar Romero, Perry Como, Dorothy Malone ou Jane Powell. E teve casos amorosos com John Wayne, Dana Andrews, Tom Payne e Arturo de Cordoba, bem como com o músico brasileiro Aloysio de Oliveira, do "seu" Bando da Lua.
A cantora e actriz fez apenas dois filmes para a MGM, a grande "fábrica de musicais" de Hollywood, e os restantes para a Fox, cuja expressão no género musical foi incomparavelmente menor do que aquela, onde pontificavam Gene Kelly, Fred Astaire, Frank Sinatra, Judy Garland, Cyd Charisse ou Mickey Rooney. Quando foi acusada no Brasil de se ter "americanizado" em Hollywood, em 1940, após uma apresentação no Casino da Urca, no Rio de Janeiro, ao lado de Grande Otelo, Carmen Miranda disse à jornalista, e sua biógrafa e amiga íntima, Dulce Damasceno de Brito: "Os brasileiros não entendem, mas estou a fazer o que posso pelo país. Em Hollywood, querem que eu cante em espanhol, mas insisto em cantar em português". Maria do Carmo Miranda da Cunha é, ainda hoje, a única artista latino-americana a ter deixado a marca das suas mãos no Passeio da Fama de Hollywood. E também tem uma artéria com o seu nome em Los Angeles.
TURBANTES
Bananas, ananases e outros frutos tropicais, mas também tecidos, flores, plumas, coroas, chapéus de sol e até um farol, faziam parte das decorações dos extravagantes turbantes de Carmen Miranda, que também lhe serviam para parecer mais alta do que era (media 1,53 m.). Cada turbante pesava em média dois quilos e meio. Não esquecer ainda os sapatos de plataforma, as jóias de fantasia e os vestidos da Bahia estilizados.
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