Socorro. A nossa missão era deixar as tropas nas zonas de combate e retirar os feridos e os mortos. Estávamos desejosos do fim do conflito.
Fui mobilizado para Moçambique a 2 Março de 1972. Na Beira fiquei a aguardar para onde seria destacado e logo na primeira noite tive de queimar o colchão da camarata: estava cheio de piolhos e fiquei todo picado. Mandaram-me para a Base Aérea 5 (BA5), em Nacala, onde estavam os aviões bombardeiros T6, os Dornier e os Fiat, e depois para o Aeródromo Militar 52 (AM52), em Nampula, onde se encontravam os helicópteros.
Fazíamos as rendições individuais e o único camarada de curso que partiu comigo foi o 1º cabo Mota, que ficou na ferramentaria. Eu fui para a linha da frente, para o destacamento de Mueda, no AM51. Era o pior sítio. Havia um painel pintado com uma caveira enorme que dizia: 'Bem-vindos a Mueda. Nesta terra trabalha-se, luta-se e morre-se'.
A 13 de Março participei na primeira operação, que consistia no transporte de helicóptero de tropas do Exército para um ataque a uma base da Frelimo, no planalto dos Macondes, em Mueda. Eu era mecânico dos Alouette III, onde seguiam, para além do piloto, mais cinco militares. Nas operações ia sempre um grupo de seis helicópteros. Aproximávamo-nos do solo, mas não chegávamos a aterrar. Os militares saltavam, nós voltávamos ao aeródromo e mais tarde íamos buscá-los.
O meu helicóptero, pilotado pelo alferes Francês, foi atacado com uma série de tiros, que cortaram o veio de transmissão traseiro. Como estávamos a um metro do solo, fizemos uma aterragem forçada e saímos para junto das nossas tropas, que nos fizeram protecção e outro helicóptero foi buscar-nos. Seis balas ficaram alojadas no aparelho. Ninguém ficou ferido. Essa operação acabou por render bem em armamento apreendido, o que significa que estávamos perto de uma base da guerrilha. No mesmo dia regressámos ao local para reparar o veio de transmissão e levar o helicóptero. Foi uma boa lição porque quem tinha medo perdeu-o naquela altura. Deixei de ser maçarico.
Noutra operação semelhante o helicóptero onde eu seguia foi atingido por 26 balas, mas por milagre não aconteceu nada a ninguém. O furriel Neto era o piloto e dizia pelo rádio: 'Estamos a ser abonados!' Quando éramos alvejados usávamos aquela expressão e ao chegarmos à base tínhamos de pagar uma cerveja a quem lá estivesse. Levávamos tiros e ainda pagávamos. Era uma forma de retribuir a dádiva de estarmos vivos.
A minha primeira comissão foi interrompida em Novembro de 1972. Vim para a Metrópole frequentar o curso de sargentos milicianos, na Ota. Regressei como sargento a Moçambique, em Setembro de 1973, ao AM51. Em Fevereiro de 1974, o capitão Castelo, um dos comandantes do aeródromo, morreu numa operação. Tínhamos largado as tropas e já íamos a caminho da unidade quando fomos atingidos por uma rajada de balas.
Quem ia com ele era o segundo sargento Vaz de Carvalho, atirador de héli-canhão. Tinha levado dois tiros nas nádegas cerca de um mês antes, noutra intervenção semelhante na mesma zona. Foi enviado para o hospital militar de Nampula para ser tratado mas, ainda em convalescença, soube que havia aquela operação, meteu-se num avião e foi ter connosco. E no momento de avançar, retirou o homem que o substituía e foi ele próprio.
O helicóptero foi atingido a tiro e caiu numa ravina enorme. O capitão Castelo desmaiou e ficou com o pescoço entalado contra o colete à prova de bala e morreu asfixiado. O Vaz de Carvalho partiu a bacia. Fomos buscá-lo e quando chegámos estava a fumar um cigarro, convencido de que iria ser apanhado pela Frelimo porque nós não teríamos condições para os ir buscar, já que o local era de terrível acesso. Quando nos viu, perguntou: ‘O que é que estão aqui a fazer!?’
Noutra ocasião, quando fazia o transporte de mantimentos, viajei com um piloto que tinha pouca experiência. O habitual era não seguir a mesma rota nos dois sentidos, para que guerrilha não se posicionasse de forma a atacar-nos. Ele não seguiu os meus conselhos, abusou e foi pela mesma rota. Resultado: fomos abonados e ele levou um tiro num braço, mas conseguimos regressar.
De resto, vimos muita desgraça, fomos buscar muitos camaradas, uns já mortos, outros sem condições para continuarem a fazer a vida militar. A maior parte era do Exército. Quase todos os dias fazíamos evacuações de gente que tinha sido atingida, uns com maior gravidade do que outros. Todos nós estávamos fartos e desejosos de que a guerra acabasse.
SOCORRO E AUTARQUIAS
José António Sousa da Silva é natural de Rio Maior. Ingressou na Força Aérea aos 19 anos, como voluntário. Com o dinheiro que ganhou na tropa comprou um camião e trabalhou por conta própria como fornecedor de materiais de construção.
Há 15 anos tornou-se gerente da Casa de Repouso Cantinho dos Avós, em Vidais, Caldas da Rainha. Foi presidente da Junta de Freguesia de Vidais (1986-1998) e adjunto do presidente da Câmara das Caldas da Rainha (1999-2009). Desde Outubro do ano passado é administrador dos serviços municipalizados do concelho.
PERFIL
Nome: José António
Comissões: Moçambique (1972/1974)
Força: Aeródromos Militares 51 e 52
Actualidade: Hoje, aos 59 anos, nas Caldas da Rainha