Viúvas “purificadas” pelos cunhados
"Kupita kufa" ainda resiste em território moçambicano
Enquanto o mundo inteiro se desdobra na procura de mecanismos para reduzir as taxas de novas infecções e reinfecções do Virus de Imunodeficiência Humana (HIV), há ainda quem defenda a manutenção de alguns rituais que, a avaliar pela prática, propiciam não só a contaminação como também a propagação desta doença.
Um destes cerimoniais seguidos com religiosidade na região norte da província de Sofala e outras do grande vale do Zambeze chama-se “kupita kufa”, ou seja, purificação de viúva, que consiste em ela manter uma relação sexual com um parente do marido, para que seja libertada.
Já abordamos várias vezes este assunto, tendo algumas comunidades afirmado que se estava a abandonar o ritual, em face da contaminação em massa por doenças sexualmente transmíssiveis.
No entanto, há resistência e a prática continua a ser executada com a anuência de alguns líderes tradicionais mais ortodoxos que não aceitam mudanças. A nossa reportagem esteve recentemente nos distritos de Caia e Chemba, a norte da província de Sofala, e testemunhou os preparativos de um ritual. Fomos informados de que esta prática continua viva e é realizada com frequência.
“Purificação” remunerada
De acordo com a crença local, caso o marido morra por qualquer que seja a enfermidade, mesmo sendo com o vírus que provoca a SIDA, se a viúva não for “purificada” por via sexual desprotegida corre o risco de sofrer de doenças, tais como a tuberculose, a loucura e poderá igualmente ser responsável pela morte de outros parentes e até vizinhos.
A purificação ou “kupita kufa”, designação do ritual em lingua sena, conforme reza o uso e costume local, é feita através da relação sexual com um familiar do marido ou um ‘purificador’ oficial escolhido na comunidade o qual executa a tarefa sob uma remuneração que pode ir até 800 mil meticais.
Medo de perder a família
Chanazi Pedro Malani, da localidade de Murraça, distrito de Caia, foi “purificada” em Dezembro passado devido à morte do seu marido um mês antes. Com 43 anos de idade, Chanazi disse à nossa reportagem que se submeteu a este ritual para se “libertar” e salvar os seus filhos de doenças, tais como a tuberculose.
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Reconheceu que a prática de "kupita kufa" é uma porta de entrada para a infecção e reinfecção do HIV, mas afirmou que não podia recusar-se por se tratar de uma imposição costumeira: “Todos os meus antepassados passaram por este ritual. Eu tive que o seguir embora esta prática não se enquadre na realidade actual”.
A repulsa da Chanazi neste ritual reside no facto de o ‘purificador’, contratado pelos familiares do falecido esposo, ser frequentemente solicitado na zona para tais práticas.
“Jone é que faz "kupita kufa" a todas viúvas daqui na zona. Os maridos de muitas delas faleceram por doenças cujas sintomas exteriores denunciavam SIDA. Aceitei porque disseram que se não fizesse aquilo iria prejudicar a minha família”. Explicou que houve uma imposição dos líderes da zona e dos mais velhos da família. Antes de contratarem o Jone, a assembleia familiar havia designado para este ritual um jovem irmão do falecido.
“Tive a possibilidade de recusar manter relações sexuais com o meu cunhado, porque ele era 20 anos mais novo do que eu, até porque fui eu quem o criou, quando a mãe perdeu a vida. Eles perceberam e tiveram que arranjar o senhor Jone. Depois de tudo o que aconteceu, não estou segura, porque ele deve ter SIDA. Muitas mulheres que passaram pelas suas mãos morreram, e ele não parece gozar de boa saúde”.
Espíritos não reconhecem preservativo
Afinal, Chanazi Malani teria participado em vários eventos que visavam promover um ambiente saudável contra as doenças sexualmente transmissíveis. Disse que ficou a saber que o preservativo, seja ele feminino como masculino, é um instrumento que reduz a contaminação de enfermidades e até evita a gravidez, pelo que, antes do ritual, solicitou que se usasse o preservativo, mas o praticante de medicina tradicional encarregue de cuidar daquela cerimónia simplesmente recusou-se.
“Eu até havia comprado um preservativo, mas eles disseram que os espíritos não aceitavam, a cerimónia seria nula se fizesse com preservativo”.
A este respeito o médico tradicional que se identificou apenas por Nhamazungo Phiri comentou que o preservativo só dá para brincadeiras e não para questões cerimoniais.
Apesar de defender o não uso de preservativo nesta prática, Phiri reconheceu haver SIDA e até sabe dizer que a prática sexual desprotegida é uma das vias mais rápidas de contaminação.
Rizes purificadoras seriam alternativas, mas…
Perante as nossas insistentes perguntas sobre se havia ou não outro método de "purificar" viúvas sem recurso à via sexual, afirmou que são os ortodoxos que insistem em manter tal prática. “Por mim até preferia usar as minhas raízes. É possível fazermos isso via plantas medicinais, mas há pessoas que persistem. Eu aceito tratar as pessoas com raízes, os efeitos são os mesmos”.
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Nhamazungo, o mais solicitado naquela região para interceder na referida cerimónia, disse que aceita que as pessoas se envolvam sexualmente quando a insistência é demasiada: “Eu quero dinheiro, as pessoas quando persistem eu avanço, mas sei que durante o acto sexual as pessoas podem-se infectar”.
Então porque não se usa o preservativo se como praticante de medicina tradicional reconhece que pode ocorrer a infecção? “Pai Phiri”, como é carinhosamente tratado, afirmou que o “preservativo é para as pessoas que querem brincar, mas aqui está-se a tratar de questões espirituais, pelo que não se compadece com brincadeiras amorosas”.
“Purificador”indignado
“As pessoas vão morrendo porque já não respeitam as tradições. Vocês, jornalistas e alguns brancos, estão a trazer a cultura de outras terras para impedir a nossa”. Assim reagiu Jone, o homem de quem se fala em Murraça como sendo o mais solicitado para as cerimónias de "kupita kufa".
Jone contradiz-se. Por um lado acredita que existe o SIDA, por outro não. Acredita que existe o vírus que provoca a Sida, quando abordado sobre as muitas mortes que estão a ocorrer. Mas diz que não, quando abordado se as passagens que faz por diferentes mulheres não seriam uma porta para a contaminação. Jone fica indignado porque considera que os apelos que se tem lançado no sentido de se combater o HIV/SIDA impedem o desenvolvimento do seu negócio.
“Há cinco anos, eu por mês conseguia cinco ou seis mil meticais por causa do meu trabalho. Agora, as pessoas fazem menos estas cerimónias porque têm medo da SIDA. Eu tenho dito às pessoas que se uma mulher tiver uma doença eu não apanho erecção e consequentemente não faço nada. E quando é "kupita kufa" a hipótese de se apanhar doenças é nula, porque os espíritos têm estado perto para defenderem contra qualquer coisa ruim que estiver para surgir”.
AMETRAMO contra e diz que SIDA é real
A direcção da Associação de Médicos Tradicionais de Moçambique (AMETRAMO), delegação de Sofala, considera nocivas as práticas sexuais nas cerimónias de purificação de viúvas, defendidas por líderes ortodoxos. De acordo com o secretário provincial daquela agremiação, Gumapedje Nhone, todos os membros foram capacitados no sentido de trabalharem para evitar novas infecções por HIV/SIDA.
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Nhone reconhece os usos e costumes das comunidades, sejam elas de que etnias forem: “Mas há que nos prepararmos para o futuro, tal como ontem não é hoje. Temos uma situação perigosíssima do HIV/SIDA no mundo inteiro. Não se justifica que nós, os praticantes de medicina tradicional, estejamos parados numa só técnica. A prática de sexo para justificar um ritual é horrível. Isso acontecia naquela altura, mas penso que agora temos um mecanismo do uso de plantas e raízes. Esta prática é eficaz e altamente segura porque não tem qualquer risco de contaminação por doenças”.
O líder dos praticantes de medicina tradicional condenou alguns membros da sua agremiação por ainda usarem estes métodos rudimentares e maléficos de curar as pessoas. Disse que não há sanções para quem viola a norma criada no seio da sua agremiação visando especificamente defender as pessoas contra a prática de "kupita kufa, mas as pessoas deveriam perceber que certos curandeiros não são sérios, alguns são os que submetem as pessoas a relações sexuais, sabendo que há uma outra prática mais saudável e segura para as pessoas”.
O que diz a saúde? Atitudes de risco devem ser evitadas
A província de Sofala é um dos pontos do nosso país com mais casos de “seroprevalência”, com 23.8 por cento. Embora esta cifra represente uma descida em relação à anterior vigilância epidemiológica que indicava para 26.5, as autoridades sanitárias e alguns organismos que lutam para a redução das doenças continuam preocupados com as novas infecções.
O médico-chefe provincial, Isaias Ramiro, disse que há necessidade de respeitar aquilo que são as tradições, mas que as atitudes de risco devem ser afastadas, como é o caso deste ritual.
“Precisamos de trazer a consciência à população para que entenda os riscos do sexo desprotegido em cerimónias tradicionais tal como em outras ocasiões”.
Fonte:
Rodrigues Luís /
http://mulher.sapo.mz/afectos-relacoes/viuvas-purificadas-pelos-cunha-11722-3.html