Dinâmicas do kutchinga
Sábado, 07 Agosto 2010 08:22 Ericino de Salema
“... entre os Tsonga, a morte (lifu) é uma origem terrível de contaminação, que põe todos os objectos e todas as pessoas que estiveram em contacto
com o morto, todos os parentes, mesmo os que vivem muito longe e trabalham, num estado de impureza”
Incerto numa equipa de pesquisa, estive recentemente em Motaze, um Posto Administrativo do distrito de Magude, na província de Maputo. Não faltou tempo para captar o que vai na alma de muitos dignatários locais, de entre os quais destaco o régulo Pedro Hunguka Nguenha e os seus dois assessores: António Cossa e Silva Ubisse, secretários dos bairros I e II daquele ponto do país.
Estando no âmago do que muitos viventes denominam de crise existencial, falámos das várias dinâmicas da vida que se leva por aquelas latitudes. E, particularmente, entabulámos uma longa e amena conversa em torno da vida que se acredita existir para além da vida. Dito doutra forma: do que sucede com a nossa alma, quando perdemos a vida.
Nisso, disse, de mim para comigo, que nada de melhor poderia ser epicentro do encontro, fora as dinâmicas da kutchinga, que é uma espécie de sucessão mortis causa, ou post mortem, muito vulgar entre os Tsonga, que habitam a extensa região a sul do rio Save. Práticas similares registam-se noutros pontos de Moçambique, mas com outras denominações. Em Sofala, por exemplo, temos a kupita kufa.
Mas que ritual é esse, que insiste em ‘suceder’ alguém que tenha perecido, apossando-se, o ‘sucessor,’ da esposa e dos filhos do ‘sucedido’?
O missionário suiço Henri Junod, que registou as suas vivências no território onde hoje se localiza Moçambique, na célebre obra “Usos e Costumes dos Bantu”, sustenta que, entre os Tsonga, a morte (lifu) não constitui, somente, um acontecimento triste, um grande momento de dor pela perda do defunto, mas também “uma origem terrível de contaminação, que põe todos os objectos e todas as pessoas que estiveram em contacto com o morto, todos os parentes, mesmo os que vivem muito longe e trabalham [por lá], num estado de impureza”.
Como forma de contornar essa impureza, procede-se à prática da kutchinga, um exercício “purificador” que consiste na realização de relações sexuais, entre um cônjuge viúvo com um familiar de um indivíduo falecido. Após a morte de um indivíduo casado na área cultural Tsonga, Motaze incluso, tem se praticado essa “purificação” ao membro viúvo, e que, muitas das vezes, resulta em sororato ou levirato, com implicações inesperadas sobre a saúde individual e colectiva.
Pessoas nesse estado de ‘impureza’ são tidas como um perigo, havendo a crença de que transmitem o perigo aos outros, em virtude do carácter colectivo da educação tradicional não permitir nem a separação da vida mundana do “além”, muito menos a particularização dos comportamentos individuais.
É nesses termos que a morte de um cônjuge numa família constitui um grande embaraço e fonte de contaminação dos membros em luto: essa impureza atinge também todos os presentes, incluindo os objectos com que o defunto tinha contacto em vida. Em função do estatuto social do indivíduo, essa impureza pode se estender a mais pessoas, pressupondo-se que, no caso de um ex-chefe da aldeia, toda a aldeia fique também em “estado de contaminação”. O régulo Pedro Hunguka Nguenha conta que Motaze não é excepção.
Na conversa que com ele, mais os seus dois assessores, mantive, transpirou que a kutchinga é um ritual de purificação da mulher viúva, volvidos 10 ou 24 meses após o desaparecimento físico do seu marido. Este ritual passa por a viúva manter relações sexuais com um dos irmãos do falecido, portanto, seu cunhado, que é “escolhido por ela”, de entre os irmãos mais novos do falecido.
A ‘purificação’ pode ser ainda feita por um neto ou por um dos primos daquele, ou ainda por via de um homem alheio à família, desde que fosse reconhecido como sendo um “purificador nato e experiente”. Homens nessas condições eram, num passado recente, contratados no seio da comunidade de Motaze, e era-lhes pago, pelo “serviço”, 50 meticais.
O ritual da kutchinga tem duração de seis dias consecutivos de relações sexuais, sendo que estes seis dias são precedidos por uma sessão de relações sexuais em que o homem passa boa parte da noite em casa da viúva, dia este que não é contabilizado: em se tratando dum homem casado, este informa à esposa que vai ‘purificar’ a viúva X ou Y, de tal sorte que a esposa fica à sua espera naquela noite, para que ela seja ‘purificada’ na mesma noite, como forma de os “maus espíritos” do falecido não ficarem com ela.
Fiquei a saber que, no passado, não se observava o respeito ao princípio da autonomia de vontade, crucial para a celebração do matrimónio, ou para o estabelecimento de relações jurídico-familiares, conforme preceitua a Lei da Família, na medida em que o consentimento da viúva era algo irrelevante. Algumas famílias que, na altura, já se mostravam dinâmicas, davam à viúva a oportunidade de rejeitar, de forma relativizada, um ou alguns dos irmãos do falecido, termos em que ela deveria escolher o cunhado que mais lhe confortasse. Na verdade, chegado o momento do ritual, a família, frisam o régulo Nguenha e os seus dois assessores, convidava a todos irmãos do defunto, obviamente quando os houvesse, por forma a que a viúva pudesse escolher o cunhado preferido, ou seja, o que, na sua óptica, melhor poderia responder aos seus anseios. Porém, o eleito nunca devia ser mais velho que o finado.
Em Motaze, casos houve em que, em sede da ‘purificação’ por via do ritual da “kutchinga”, o pai do falecido era o primeiro a manter relações sexuais com a nora: só depois é que era chamado o cunhado escolhido pela viúva, que por sua vez completava a “sessão”. Nos dias que correm, a situação mudou, na medida em que a viúva pode se recusar a ser ‘purificada’ por algum parente da linha recta ou linha colateral do seu falecido marido, ou seja, ela pode indicar alguém de fora.
E, tendo em conta que, nos últimos dias, muitos homens perecem por causas relacionadas com o HIV e Sida, as famílias ganharam certa consciência, na medida em que o ritual de ‘purificação’ da viúva já pode ser substituído por uma cerimónia simbólica, que passa por a viúva preparar e servir papas, ou chá, a todos membros da família do falecido.
“Com a chamada doença do século, os próprios sogros já não incentivam a kutchinga, pois isso seria o mesmo que nós, os pais, colocarmos corda no pescoço dos nossos próprios filhos”, precisou Pedro Hunguka Nguenha.
Creio que, no actual contexto, almas que habitam os vários ‘Motazes’ que constituem este país tinham que conferir, à kutchinga como ‘acto purificador’, dinâmicas inovadoras. A bem da vida, o mais precioso bem jurídico, mas sem apagar por completo os ditames da tradição de boa parte das gentes de Moçambique
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