From: orlandampinto
12 Nov 2010
Navegações no Zambeze
Por António Sopa
O rio Zambeze – designado outrora também por "Rio do Ouro”, "Rio dos Bons Sinais”, “Rios de Cuama” ou “Liambai” - foi, desde sempre, uma majestosa porta de entrada para o interior do continente. Africanos, árabes e europeus sulcaram-no nas mais variadas direcções, transportando pessoas e mercadorias entre as suas margens, ou na faina da pesca, ou levando os produtos que os mercados distantes procuravam. Nas suas margens, surgiram poderosos Estados africanos, como o do Mwenemutapa, com as suas imponentes, “cidades de pedra” (os zimbabwes), rico em minerais preciosos, e os reinos Maravi, a norte do rio, cuja existência se devia em grande medida, ao comércio do marfim. O declínio destes reinos africanos deu origem a um novo ciclo económico, agora sob o domínio dos Estados militares, herdeiros dos antigos “prazos da Coroa”, liderados por elites mestiças, que se entregaram intensamente ao negócio da escravatura. Por iniciativa das autoridades portuguesas, que pretendiam impor um maior controlo administrativo da colónia, estes são conquistados, através de sucessivas expedições militares, criando-se naqueles territórios grandes companhias concessionárias, cujos propósitos eram o desenvolvimento da agricultura comercial, da indústria e da mineração. São fundadas assim, no final do século XIX, as companhias de Moçambique e da Zambézia, que estão na origem dum infindável número de outras empresas comerciais, como a Companhia do Boror, Companhia do Luabo, Sena Sugar Estates e a Sociedade do Madal, suas subconcessionárias. As terras baixas do vale vêem nascer então extensas plantações de açúcar e campos de algodão que florescem e produzem graças aos milhares de braços, recrutados sob as imposições do novo regime de "trabalho forçado”. Em grande medida, são estas grandes companhias, com interesses económicos no vale do Zambeze, que farão com que a navegação no rio se mantivesse praticamente até aos nossos dias.
Embarcações e trânsitos no Zambeze
Como é fácil de supor, as embarcações construídas e pilotadas pelas populações ribeirinhas, eram cavadas em troncos de grossas árvores, sendo as mais comuns, as almadias ou coches. Podiam ter uma tripulação que chegava a 10 ou 12 homens, transportando 10 a 20 toneladas de carga. Eram também usadas as lanchas, com arqueação para 20 ou 30 toneladas, sendo construídas preferencialmente no Mazaro, Mauze e Licungo. Os funcionários do Estado e das grandes companhias agro-industriais preferiam os escaleres, vindos da Europa ou construídos no prazo Mahindo, que possuíam à ré “uma casinha da altura dum metro e pouco mais comprida que um homem”, permitindo aos passageiros uma viagem mais cómoda. Estas últimas embarcações podiam demorar 30 a 40 dias a chegar a Tete, numa única viagem de ida, obrigando a que a tripulação incluísse um cozinheiro e se fizesse o carregamento do rancho para a mesma. Viagens tão prolongadas, levaram ainda à existência de numerosas povoações ribeirinhas, servindo de acampamento aos viajantes e as tripulações. A sua propulsão era feita por tripulações, de 8 a 12 homens, usando pás curtas, varas longas (pondos) ou, quando as margens o permitiam, a sirga. Raramente empregavam a vela e remos ordinários nunca. No caso dos escaleres, na proa ia o mucadamo (ou prático), que ia apalpando os fundos, indicando ao marimo (patrão), a direcção correcta, garantindo assim a segurança da navegação.
A navegação a vapor é contemporânea do colonialismo moderno. O seu uso permitiu a construção de embarcações de major envergadura e calado, sendo um poderoso meio de penetração no interior do continente, quando as potências coloniais procuravam já estabelecer as suas esferas de influência, através de “estações civilizadoras” e missões cristãs.
No caso do rio Zambeze, o primeiro navio deste tipo a sulcá-lo foi o MaRobert, pertencente à expedição de David Livingstone, quando este esteve nesta região entre 1854-56 e 1858-64. Esta embarcação tinha sido construída em Laird, na Inglaterra, tendo sido montada aqui, numa das suas margens. Parte da sua tripulação era constituída por marinheiros Kroo, contratados em Freetown, na Serra Leoa. O seu nome era uma homenagem à esposa do conhecido explorador, mas em virtude deste se ter transformado numa constante fonte de problemas, os membros da expedição viriam a apelidá-lo por “Asmático”. Foi com ele que Livingstone tentou passar os rápidos de Cahora-Bassa, em 1858.
Na década de 1870 começou a generalizar-se o uso destas embarcações no Zambeze. Nos primeiros anos do século passado, já duas dezenas destes «barcos de rodas» sulcavam o rio, pertencentes a algumas importantes companhias - British Central/Africa, Ltd., L. Deuss & Cº., Companhia de Açucar de Moçambique, Companhia da Zambézia, Empresa de Transportes Fluviais e African Lakes Corporation, Ltd.
Estes navios, com 20 a 30 metros de comprimento, de roda a popa e fundo chato, com um calado que não ultrapassava 1 metro de profundidade, possuíam máquinas que podiam debitar entre 18 a 150 cavalos de força, usando como combustível a lenha, o carvão ou o diesel. A sua viagem diurna, já que a inexistência de sinalização no rio impedia a sua navegação à noite, entre Chinde e Tete, com escala prolongada em Sena, podia durar entre 8 a 16 dias, gozando os passageiros de todas as comodidades. A carga era transportada em lanchas acostadas a cada um dos lados do navio. Normalmente na viagem no sentido do delta eram rebocadas 4 lanchas, com a capacidade de 55 toneladas cada uma, enquanto que, em contra-corrente, rebocavam apenas duas.
Estes subiam o rio até Chimuara, no tempo seco. Enquanto que, no período chuvoso, podiam aportar a Tete e Boroma.
O renascer da actividade mineira em Tete e a navegação do Zambeze
A mineração em Tete, centrada no ouro e na prata, era secular e servia de importante meio de permuta entre os Estados africanos locais e os comerciantes estrangeiros. Curiosamente, quando no início do século XX se pretendeu fazer renascer esta actividade na região, por iniciativa da Companhia da Zambézia, não existia qualquer conhecimento rigoroso sobre a localização das antigas minas auríferas, exploradas em períodos mais recuados. Assim, a Companhia tentou pesquisar as minas de carvão, já que havia um conhecimento mais detalhado da sua situação geográfica. A primeira tentativa data de 1893, mas apesar de ser fácil extrair o minério e transportá-lo para Tete, era impraticável enviá-lo para a costa, com os meios de navegação então existentes, "porque o transporte de Tete ao Chinde, ficava mais caro do que fosse enviado da Inglaterra”.
Será com a "Société Miniére et Geologique du Zambeze” (SMGZ), fundada em 1923, que se iniciou a exploração do carvão em Tete. Dezoito meses depois da sua criação, em Fevereiro de 1925, e após a abertura da mina localizada no lado esquerdo de Moatize, passando em 1933, após um incêndio subterrâneo, a localizar-se a 12 milhas para o interior de Benga – e a construção dum caminho de ferro "decauville” com cerca de 22 kms de via, iniciou-se o transporte do mesmo para a margem do Zambeze, onde era levado rio abaixo.
Uma descrição de 1946, nas vésperas da extinção do transporte do carvão por via fluvial, dá-nos uma ideia muito completa de como este se fazia, desde a boca da mina até ao centro de consumo. Diariamente, circulavam dois comboios, com 5 vagões, tendo a capacidade de 4,5 toneladas cada, o que significava um total diário de 45 toneladas. Sendo o rio navegável apenas seis meses por ano, entre Janeiro a Julho, durante a estação seca todo o carvão era armazenado ao longo do rio. A navegação, propriamente dita, era assegurada por cinco barcos a vapor, com caldeiras para madeira, com uma capacidade total de 400 toneladas. Estas embarcações faziam cinco viagens por mês, garantindo assim o escoamento de 2.000 toneladas nesse período, significando 12.000 a 13.000 toneladas por ano.
Os barcos, que eram propriedade da “TransZambezia Railway”, descarregavam a sua carga em Dona Ana, senda esta empresa ferroviária a principal compradora do carvão de Tete, utilizando-o nas suas locomotivas. Uma pequena parte do carvão era ainda adquirida pela Companhia da Zambézia, para os seus navios, e algumas repartições do Estado português, que o consumiam nas suas oficinas e nas embarcações dos portos de Quelimane e Chinde. Do dito "carvão em pó”, este era consumido pela central de electricidade de Tete e pelas oficinas, máquinas e centrais geradoras de energia da SMGZ.
Após a inauguração da linha ferroviária de Tete, em 29 de Junho de 1949, estes navios deixaram de vir à vila deste nome, passando a servir apenas a Baixa Zambézia, ligando Marromeu e Luabo ao Chinde, escoando a produção de açúcar da Sena Sugar Estates. Este processo de transporte, por parte das empresas açucareiras, datava já dos primeiros anos do século passado, havendo notícia de embarcações pertencentes à Companhia do Açúcar de Moçambique. Em 1951, a Sena Sugar possui uma frota impressionante, composta por 7 vapores, 85 lanchas de carga, entre 45 e 70 toneladas cada, e dois armazéns flutuantes para o açúcar. O encerramento à navegação do porto do Chinde, em Agosto de 1968, até então o principal escoadouro daquele produto, abreviou a sua existência, obrigando a que a sua saída se fizesse pela cidade da Beira, por via ferroviária. A posterior inauguração do ramal ferroviário Inhamitanga-Marromeu, cerca de um ano mais tarde, viria a pôr definitivamente fim ao tempo dos «barcos de rodas» na Zambézia, levando a Sena Sugar Estates a liquidar a sua frota.
Alguns Projectos Para a regularização do rio
As condições de navegabilidade do rio Zambeze eram ainda bastante imprecisas e lacunares, em meados do século XIX, apesar de existir já uma vasta e variada bibliografia sobre o rio. Este desconhecimento era ainda tão profundo que não se sabia sequer onde se localizavam as suas nascentes, imaginando-se apenas que seriam as mesmas das do rio Nilo. Esta realidade era confirmada pelo engenheiro Joaquim José Machado, o chefe da Expedição de Obras Públicas de 1877, que no seu relatório afirmava: «Poucos e de pequena importância tem sido as estudos empreendidos no rio Zambeze, propriamente dito. Tem isto sido devido ao diminuto pessoal habilitado de que temos podido dispor, à necessidade de poder atender a outros assuntos de maior urgência, a estarmos convencidos que as obras gigantescas que necessita este rio para ser constantemente praticável por embarcações de notável capacidade não serão empreendidas nos tempos mais próximos, e enfim, porque, para se levarem a efeito estudos úteis sobre a hidráulica daquele grande rio, seriam necessários muitos anos de trabalho e um numeroso pessoal que unicamente se dedicasse a tal serviço.»
Porém, no dobrar do século XIX para o XX havia já uma visão relativamente detalhada da sua navegabilidade. O «Guia de Navegação» (1904) da costa de Moçambique, elaborado por Leote do Rego, sumarizava para navegadores e viajantes, as condições em que a navegação se podia fazer. Para tentar ultrapassar as dificuldades e limitações que o rio até então impunha, procurou-se a sua regularização, tendo sido apresentados ao longo do tempo alguns projectos, nenhum deles concretizado. Vou enumerar alguns, por me parecerem mais interessantes e originais, sem olhar se os mesmos eram exequíveis ou não, tanto do ponto de vista técnico como financeiro:
a) O projecto do engenheiro Morais Sarmento, incluído no relatório de Joaquim Machado de 1879, considerava que a navegação regular na região inferior do rio era impraticável, enquanto não se fizessem trabalhos gigantescos, tendo em vista a rectificação da linha de “tawleg”, dando-lhe mais profundidade de água na estação seca e menor velocidade de corrente nas cheias. Assim, para que a navegação entre a costa e Cahora-Bassa se fizesse nas melhores condições, impunha-se estabelecer 56 pares de diques, com o volume total de 1.344.000m3. Se a barra do Cuama fosse a escolhida, seria necessário estabelecer também quatro barragens, nos braços Mutinde, Merandere, Inhamburi e Muzelo, em que o Zambeze se dividia.
b) Um outro estudo pretendia realizar a dragagem dos bancos do rio, ainda que esta solução fosse considerada por muitas pessoas como impraticável. Segundo o seu autor, havia apenas 12 ou 15 zonas que apresentavam dificuldades à navegação, medindo poucas dezenas de metros de extensão, pelo que era um trabalho relativamente fácil de se fazer, já que bastava aprofundá-los até 4 pés, com uma largura máxima de 15-20 metros, para a passagem das barcaças. Duas pequenas dragas de sucção, a jusante e a montante da confluência do Chire, eram suficientes para a sua execução. A “Comissão de Melhoramentos do Porto de Quelimane” parece ter acolhido favoravelmente este estudo, tendo adquirido uma draga “Marion" para os canais. Um acidente com este equipamento, no canal do Musselo, impediu que o mesmo começasse a operar. A mesma Comissão negociou ainda a compra de uma outra draga “Priestman”, que tinha a possibilidade de ser usada em terra, sob carris, e na água, sobre um batelão, mas não conhecemos o desenvolvimento desta segunda iniciativa.
c) O engenheiro Cordeiro de Sousa, em estudo de 1908, partia do pressuposto de que o Zambeze havia “de ser sempre utilizado por uma parte dos transportes do interior, quer se construa, quer se não construa o caminho de ferro. A ideia de que as linhas férreas anulam a actividade comercial das vias aquáticas fez o seu tempo; e hoje a navegação interior, nos países que oferecem condições favoráveis para ela, está tendo um desenvolvimento extraordinário e absorvendo uma grande parte dos transportes, sem que contudo deixem esses países de desenvolver as suas linhas férreas. É certo que as condições muito precárias da navegabilidade actual do Zambeze reduzem em grande parte uma das principais vantagens das vias aquáticas, a barateza dos fretes; mas ainda assim julgo que não há fundamento para se afirmar que o caminho de ferro fará extinguir a navegação daquele rio.
Por outro lado, entendo que a existência da via fluvial não é motivo bastante para ser posta de parte a ideia da construção de um caminho de ferro, que estabeleça desde já fácil, rápida e cómoda comunicação com o interior, procurando-se o traçado mais directo para as regiões do além Chire, sem preocupação de anular a via fluvial”.
Nesta ordem de ideias, propunha a regularização do canal de Cuacua, ligando o "Rio dos Bons Sinais” ao Zambeze, e a construção de duas linhas férreas. Uma, de 137 kms, entre Chibiza e Tete; e uma segunda, ao longo de Cahora-Bassa, com 30 kms. Estas obras permitiram a ligação do porto de Quelimane com o interior da África Central, numa extensão de 1.243 kms.
d) O último estudo, foi já pensado tendo em conta a existência da barragem de Cahora-Bassa, procurando-se que o rio fosse navegável numa extensão de 300 kms. Este foi apresentado pela Hidrotécnica Portuguesa em 1962 procurando o escoamento do material produzido pela indústria transformadora de titano-magnetite e de ferro dos jazigos de Muende. O projecto pretendia regularizar o rio, desde M'Panda Unkua à foz do Cuama, com a preparação simultânea da respectiva barra para livre acesso a navegação de alto bordo e com um porto fluvio-marítimo a criar no interior do rio.
Moçambique/Malawi: o reacender dos conflitos coloniais?
O actual mal-estar entre Moçambique e o Malawi, a propósito da navegação nos rios Zambeze e Chire, por parte deste último país, remete-nos para os primórdios da colonização europeia em África. Na verdade, a consagração da livre navegação nos grandes rios, a que se juntava logo a seguir o livre comércio, ficou repetidamente expressa nos grandes tratados internacionais que legitimaram a partilha de África entre as grandes potências europeias. Nada de novo, porém, já que este princípio tinha sido aplicado na própria Europa, após a onda revolucionária liderada por Napoleão Bonaparte, com o Tratado de Paz de Paris, de 1814, e da Conferência de Viena, em 1815, permitindo a liberdade de navegação nos rios Reno, Escalda, Meusa e Moselle. Este princípio viria igualmente a ser aplicado nas Américas do Norte e do Sul.
Em África, um dos tratados mais antigos que conhecemos, consagrando este princípio, data de 19 de Fevereiro de 1842, entre a França e o «Rei Peter do Grande Bassam», em que se declarava “que a navegação e a frequência pacíficas do rio e de todos os seus afluentes são doravante asseguradas aos franceses, bem como tanto o livre comércio de todos os produtos da própria região como dos que são importados do interior.”
Ao contrário do que se afirma, não foi na Conferência de Berlim (1884-1885) que se perfilou o espírito de partilha do continente africano, já que as regras que ela determinou referiam-se essencialmente à costa africana, já nesse tempo totalmente dividida pelas potências europeias. Seria para o interior que se impunha o estabelecimento de novos princípios, mas esses não foram ali discutidos. Será posteriormente a esta Conferência que foram consagrados outros princípios diplomáticos, como as «esferas de influência», - pela primeira vez expresso no tratado germano-britânico de 29 de Abril de 1885 sobre o Golfo do Biafra -, aplicadas na competição internacional pelos territórios africanos prestes a serem adquiridos, e a "doutrinado interior”, que permitia a uma potência com reivindicações à costa tivesse direito de ocupar também o seu interior.
Será exactamente um destes princípios - o da «esfera da influência» - que oporá Portugal e Inglaterra na África Austral, dando origem ao Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890. Na verdade, após Berlim, Portugal tentara constituir a sua esfera de influência no interior africano e ocupar efectivamente os territórios que reclamava por direito histórico, que se resumia em ligar as duas costas, de Angola a Moçambique, projecto este a que se deu o nome de “África Meridional Portuguesa”. Graficamente, este projecto ficou conhecido pelo “Mapa Cor de Rosa”, sendo internacionalmente divulgado a partir de 1886. Por seu lado, a Inglaterra procurava, desde 1885, privilegiar a sua expansão em África, no sentido do sul para norte, depois do entusiasmo dos caminhos de ferro transcontinentais e do projecto Cabo-Cairo, estando por isso interessada em afastar as outras potencias europeias tanto das nascentes do Nilo como dos territórios por onde eventualmente passaria esta linha férrea. A Inglaterra decidiu abrir o conflito diplomático em 1887, no sentido de remover os obstáculos que se opunham à sua concretização. Este rebenta em Novembro de 1889, no vale do rio Chire, quando João de Azevedo Coutinho ocupa a região e submete os chefes Makololos à soberania portuguesa.
A livre navegação do Zambeze foi pela primeira vez abordada em 30 de Maio de 1879, no chamado “Tratado de Lourenço Marques”, em que se “declarava a livre navegação do Zambeze e seus afluentes, e não sujeita a monopólio ou exclusivo algum”. Este acordo é assinado no momento em que se começa a generalizar a navegação internacional no Zambeze, após a viagem de Livingstone (subiu o rio Chire e revelou à Europa o Lago Niassa), e da instalação dos missionários escoceses na região dos «Grandes Lagos». Dois deles, os irmãos John e Frederick Moir, chegaram ao Zambeze em 1878, transportando o vapor "Lady Niassa”, tendo adquirido posteriormente um segundo navio, o "John Moir”. Estes viriam a fundar uma das poderosas empresas que navegavam nos rios Zambeze e Chire - a African Lakes Corporation -sendo os primeiros a fazer o transporte de pessoas e mercadorias entre o Alto Chire e o Maruro.
Uma segunda convenção assinada entre os dois países, em 1884, reconhecia a liberdade de navegação e comércio no Zambeze (e no Congo), abrangendo os afluentes deste rios, para os súbditos e pavilhões de todas as nações: Finalmente, em 14 de Novembro de 1890, em consequência do Ultimatum inglês, foi imposta a livre navegação no Zambeze e Chire e seus afluentes, com liberdade de trânsito para todas as pessoas e mercadorias, obrigando-se Portugal "a facilitar as comunicações entre os portos portugueses do litoral e a esfera de actuação da Grã-Bretanha".Em 1892, foi ainda fixado um "Regulamento da Navegação no Zambeze e Chire". Foi na consequência destas imposições que ao governo inglês foi cedida, "alugada por 100 anos”, uma parcela de terreno na foz do Zambeze, que veio a ser conhecida por enclave ou concessão do Chinde. Os dois países manterão ainda, desde 1892, esquadrilhas navais, formadas por pequenas lanchas-canhoeiras, que subirão os dois rios, a partir do Chinde.
As fronteiras em África estabeleceram-se em cerca de 15 anos. Foi um processo rápido, turbulento e desrespeitador dos interesses africanos locais, remetendo para o futuro um número de questões difíceis de resolver. Os 14 países confinados ao interior do continente, têm ainda hoje graves problemas económicos e políticos. Para além do seu isolamento, são forçados a procurar uma auto-suficiência irrealista, a partir de economias ainda muito pouco desenvolvidas, baseadas fundamentalmente em produtos agrícolas ou na extracção de minerais. E, sobretudo ficaram dependentes dos vizinhos que possuem litorais, com quem têm de estabelecer laços preferenciais para não comprometerem de todo a sua sobrevivência e evitarem os perigos de asfixia económica e política. Certas disputas sobre a utilização de estradas e portos, que não se levantaram durante a era colonial, ganharam uma grande importância depois das independências, ao envolverem estados soberanos e as suas fronteiras.
De recordar apenas que, num passado recente, a República do Malawi, já independente desde Junho de 1964, viu-se obrigada a estabelecer acordos com a África do Sul do «apartheid» e com a então colónia portuguesa de Moçambique, pelos quais esta última concedeu um empréstimo de 5,4 milhões de libras para a construção do caminho de ferro entre o Malawi e o nosso porto de Nacala, tendo a sua inauguração ocorrido em Dezembro de 1970, abandonando só então a navegação nos rios Zambeze e Chire.
Sabendo nós que as linhas ferroviárias da Beira e Nacala não estão a funcionar nas suas melhores condições; encontrando-se a ponte Samora Machel, em Tete, em obras que se eternizam visando a sua plena utilização, e estando o porto de Nacala em vésperas de iniciar um processo de reabilitação, não serão estes motivos suficientes para compreender a pressa e o nervosismo do nosso vizinho?