11 Dezembro 2010 00:00
Mia Couto
O facto foi o seguinte: um tal Momed Ayoob, comerciante moçambicano, foi surpreendido e detido na Suazilândia na posse de 18 milhões de randes. Podia-se dizer: trata-se de um indivíduo que fortuitamente tem passaporte moçambicano. Não é. A verdade é que isso acontece quando o mundo nos olha com suspeição sobre o quanto podemos estar alojando chorudos negócios de drogas. A poeira que paira sobre nós é densa. Um caso destes tem, agora, a ver com todos nós moçambicanos. É o nome do nosso país que pode estar em causa. É o modo como cada um de nós passa a ser olhado de cada vez que exibirmos o nosso passaporte moçambicano à porta de entrada de uma qualquer nação. Não pode haver aqui indiferença. Estamo-nos convertendo, por razões que nada têm a ver com a grande maioria dos moçambicanos, em cidadãos suspeitos.
Ninguém tem dúvida sobre o que pode estar por trás da detenção na Suazilândia. Casos destes, dirão alguns, acontecem em todo o mundo. Porque razão o moçambicano passou pelo controlo do nosso posto de fronteira? Falhas policiais no controlo do veículo, onde se transportava esses milhões podem também ocorrer com a mais das eficientes polícias. Esta podia ser a resposta. Aceitável num outro momento. Mas não agora. Não neste momento. Porque o momento que enfrentamos está, no capítulo destas suspeições, doente de passado e debilitado de futuro.
Comecemos pelo passado: Ayoob já tinha sido detido em Portugal pelo crime de tráfico de drogas. Foi preso em 1987, mas conseguiu fugir e regressar a Moçambique. O Ministério Público de Portugal acusou Mohamed Khalid Ayoob por crime de tráfico de droga, com possibilidade de ser condenado com pena de 8 a 12 anos de prisão.
As perguntas podem ser muitas. Façamos apenas uma: como demos abrigo a uma pessoa com um cadastro destes?
O passado, portanto, não nos apanha de surpresa. Talvez um pacato cidadão como eu tenha que dar mais explicação na fronteira que alguém com um passado assim. Quem sabe um pobre turista que vem conhecer Moçambique seja mais vezes interpelado pelo zelo de autoridades que o próprio Momed Ayoob.
Falei do passado. Será que o futuro trará surpresa? Duvido. Pudesse eu ficar tranquilo e saber que algo vai certamente acontecer. Pudesse eu estar certo que as autoridades dariam explicação pública (quando puderem, não estou apressado) de um facto que se tornou público. E que, para além de ser público, pode manchar a imagem do país. De um país que não quer viver na suspeita de ser conivente com o narcotráfico.
Mas confesso, algo me diz que o assunto terá um desfecho anunciado. Ou melhor nunca anunciado. Ficará nesse perpétuo banho-maria que convida ao esquecimento. E quando se esquece – pesam alguns dos nossos ideólogos – acaba por se acreditar que nunca aconteceu.
Tal como sucedeu antes, Momed Ayoob regressará aos seus negócios. Quem sabe, me interrogo por amor a todas as hipóteses, ele é inocente e está sendo injustamente associado a um crime maior que não cometeu? Sim, quem sabe o nosso comerciante está inocente? Por isso mesmo seria de todo o interesse para o próprio Ayoob que o assunto caminhasse para um esclarecimento público e convincente. Ayoob lavaria o rosto, Moçambique ganharia de tal limpeza.
Falamos hoje muito de auto-estima. E com razão. Mas para que essa auto-estima tenha substância é preciso que o nome da nossa pátria esteja acima destas suspeições. Entre um passado duvidoso e um futuro de dúvidas, poderíamos converter o presente num momento de certezas. Só existe um caminho: o de provar que se toma a peito este assunto. E isso não depende de jogos de acusação e de azedas trocas de palavras com oposição e doadores. É o povo que é preciso convencer. Os discursos não bastam, como não bastam as acusações contra má vontade dos outros. Não estamos perante arquitectados libelos. Não foi o “inimigo” que inventou a notícia da prisão de Momed Ayoob. Estamos perante factos. Que exigem actos.
Aprendi como escritor que os nossos maiores inimigos não moram fora de nós. Estão dentro. Não existem dois caminhos. As autoridades moçambicanas precisam mostrar que, por mote próprio (e não empurrados por ninguém) vão esclarecer este assunto e tomar as necessárias medidas.
Para que a pérola do Índico não se cubra de poeira.