A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são apenas endinheirados. E endinheirados que não produzem. O Kamasutra não seria a prenda mais apropriada para a presente quadra. Nem sequer seria oferta original. Se é para dar um presente que seja algo que fale do gosto de nos darmos, da identidade de quem dá. Por isso, este Natal vou dar um livro que traduza a nossa originalidade e que, sendo publicação recente, cedo rivalizará com o célebre livro sobre os prazeres do amor. A longa lista de tentadoras posições sexuais do Kamasutra cedo ficará esquecida perante o rasgão criativo desta outra obra. Falo, é claro, do “Gamasutra, a infinita arte do gamanço”. Um manual ilustrado sobre a roubalheira como modo de viver. Começo deste modo, fazendo paródia junto à fronteira do solene e do sagrado. Não o faço gratuitamente. Tenho uma intenção. Entenderão ao lerem, se assim tiverem paciência. O melhor do Natal é a festa, a família, a sugestão de um mundo solidário. O tempo do verbo terá que ser, no entanto, alterado: o melhor do Natal já foi o Natal. Porque uma descarada subversão do espírito natalício foi convertendo em mercadoria e comércio aquilo que parecia ser generosidade pura e simples: darmo-nos nós, como somos, e tornarmo-nos mais próximos dos outros. Se ressuscitasse hoje, Cristo não teria que abordar apenas os vendilhões de um templo. O mundo inteiro é um bazar onde tudo se compra e se vende. Incluindo o chamado espírito natalício.
Rectifico o início desta crónica: o melhor do Natal é o espírito do Natal. Esse espírito não resiste à manipulação oportunista que a imagem de um simpático mas estafado Pai Natal, vestido com as cores da Coca Cola, apenas confirma a lógica de lucro a que nem os mitos escaparam. Um dos piores tormentos dos novos tempos de Natal são as mensagens feitas a metro. Por via de email, de telefone celular, as mensagenzinhas entopem as caixas de correio e obrigam-nos a um exercício penoso de as apagar às dúzias. Corro o risco de ser ingrato. Mas eu peço aos meus amigos: não me enviem mensagens natalícias. Mandem-mas ao longo do ano, sobretudo, mandem-nas sem necessidade de data especial, com a originalidade e a graça que a verdadeira amizade requerem. A obrigação de trocar mensagens com amigos é algo de nobre. Mas também aqui aconteceu a banalização. Fórmulas repetidas, clichés sem gosto, fizeram da humana troca de emoções aquilo que os maus políticos fizeram ao discurso oficial: um desfile de frases feitas, em construção previsível, vazio de ideias, incapaz de comunicar ou de comover o mais ingénuo dos cidadãos. Pediram-me há dias, num programa de televisão, que formulasse um desejo para o nosso país. A dificuldade primeira é escolher um único desejo quando os votos que trazemos são sempre múltiplos. Sentado ante a câmara de filmar demorei um tempo, navegando entre brumas e luzes. Acabei escolhendo uma meia fórmula, optei pelo seguro. Fiz mal. Porque o que mais queria ter formulado era uma espécie de anti-voto. Ou seja, eu devia ter falado daquilo que eu não queria que acontecesse. Seria o meu voto pela negativa. Disse o que todos dizemos: que o ano próximo seja um momento de construção de riqueza. Mas de riqueza nacional. E não de uns poucos. A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são apenas endinheirados. E endinheirados que não produzem. Faço aqui, pois, o voto pela via da negação: o que eu mais queria que deixássemos de ser. E escolho: que virássemos costas ao roubo. Já não falo da prática generalizada que tomou conta das colunas dos jornais. Não falo apenas desse roubo que se estende dos medicamentos, aos cabos de fibra óptica, dos passaportes ao carris de comboio, das condutas de combustível a painéis solares para fontes de água. Não falo só do furto que causa milhões de dólares de prejuízo a companhias de electricidade, telefone e águas. E que nos torna mais pobres a todos nós. Não falo sequer desse outro espantoso roubo que faz com que, na berma das estradas, se comece por roubar os pertences dos sinistrados em lugar de lhes prestar socorro. Falo de outra roubalheira que se infiltrou no tutano do nosso corpo enquanto nação: a ideia que roubar é legítimo por causa da pobreza. Ou por causa da escassez de tempo que o político tem por mandato. Ou por causa de qualquer outra razão. Falo de outros níveis de roubo: o roubo da esperança pelos políticos, o roubo da propriedade pública pelo gestor, o roubo da História e da memória por aqueles que se acham a geração de estreia nacional. Falo dessa roubalheira que é a corrupção, lenta hemorragia que nos pede insidiosa habituação. Falo do roubo do pensamento crítico por aqueles que fazem uso da ameaça velada, da censura subtil ou da arrogância e desprezo pelo debate aberto. Numa palavra, o roubo no nosso país já não é um simples somatório de casos policiais, uma onda crescente que se destaca de um mar são. O furto tornou-se numa cultura, num sistema. Tornou-se regra. Somos hoje um país em permanente assalto a si mesmo. E nenhuma nação, por mais bem que esteja no caminho do progresso, pode conviver com uma doença assim.
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