Opinião, por ZITA SEABRA in Jornal de Notícias, 26.12.2010
O fato usado do presidente
Três dias antes do Natal, assistia calmamente ao Telejornal da RTP1
quando vi a grande notícia da noite. Entre os atentados em Bagdade e
as agências de rating, uma voz off anuncia o que as câmaras filmam: o
presidente da maior empresa pública portuguesa a levar dois saquinhos
de papel com roupa usada e um brinquedinho (usado) para uns caixotes
de cartão, cheios de coisas usadas para oferecer no Natal. Fiquei
comovida. Que imagem de boa pessoa, que gesto bonito: pegar num
fatinho usado do seu guarda-vestidos que deve ter uns 200 e num
pequeno brinquedo de peluche, e depositar tudo no caixote de cartão
para posteriormente ser redistribuído? À administração da empresa?
Não, a notícia explica que é para oferecer aos pobrezinhos, que estão
a aumentar com a crise. A RTP, Telejornal à hora nobre, filma o
comovente gesto. Em off, o locutor explica o sentido dizendo que
alguém vai ter no sapatinho um fato de marca. Olhando para os sacos de
papel, percebe-se que esse alguém também receberá umas meias usadas e
talvez mesmo uma camisa de marca usada.
Primeiro, pensei que estava a dormir e um pesadelo me fizera voltar ao
tempo de Salazar, à RTP a preto e branco ou à série da Rita Blanco
«Conta-me como foi».
Mas não, eu estava acordada e a ver o presidente da EDP no Telejornal
da RTP 1 (podem ver o filme na net) posar sorridente para as câmaras,
a levar um saquinho a um caixote, que não era de lixo, mas de oferta.
Por acaso, estava à porta da EDP a RTP a filmar o gesto. Iam a passar
e filmaram, certamente, porque para os pobres os fatos em segunda mão
de marca assentam como uma luva. Um velhinho num lar de Vila Real
vestido Rosa & Teixeira sempre é outra coisa. Ou o homeless na sopa
dos pobres com Boss faz outra figura, ou o desempregado com Armani
numa entrevista do fundo de desemprego... Mentalidade herdada do
Estado Novo, foi a minha primeira análise, teorizando imediatamente
que os ricos em Portugal, os que recebem prémios de milhões em
empresas públicas e ordenados escandalosos e que puseram o mundo e o
país como se vê, são os mesmos com a mesma mentalidade salazarenta.
Mas nem é verdade, pois, mesmo nesse tempo, as senhoras do regime
organizavam enxovais novos nas aulas de lavores do meu liceu para dar
no Natal aos pobres que iam nascer.
Tantos assessores de imprensa na EDP, tantos assessores na Fundação
EDP, milhões de euros gastos em geniais campanhas de marketing, tantas
cabeças inteligentes diariamente pagas para vender a imagem do
presidente da EDP, tudo pago a preço de ouro, e não concebem nada
melhor do que mandar (!?) filmar, no espaço do Telejornal mais
importante do país, um gesto indigno, triste, lamentável, que
envergonha quem vê. Não têm vergonha? Não coraram? E a RTP que
critérios usa no Telejornal para incluir uma notícia?
Há uns meses escrevi ao presidente da EDP e telefonei-lhe mesmo, a
pedir ajuda da empresa para reparar a velha instalação eléctrica,
gasta pelo uso e pelo tempo, de uma instituição, onde vivem 40 adultas
cegas e com deficiências e que têm um dos mais ricos patrimónios
culturais do país. A instituição recebeu meses depois a resposta: a
Fundação EDP esclarecia que esse pedido não se enquadrava nas suas
atribuições. Agora percebi. Pedia-se fios eléctricos, quadros
eléctricos novos e lâmpadas novas. Devia-se ter escrito ao senhor
presidente da maior empresa (pública) portuguesa, com os maiores
prémios de desempenho, cujo vencimento é superior ao do presidente dos
Estados Unidos, para que oferecesse uma lâmpada em segunda mão, que
ainda acendesse e desse alguma luz. Talvez assim mandasse um dos seus
motoristas, com um dos geniais assessores de imprensa e um dos
fantásticos directores de marketing, avisar a RTP (a quem pagamos uma
taxa na factura da luz) para virem filmar a entrega da lâmpada num
saquinho de papel.
2011 anuncia-se um ano duro para os portugueses e sê-lo-á tanto mais
quanto os responsáveis pelo estado a que se chegou não saírem da nossa
frente.
Zita Seabra