O escritor Mia Couto remete os seus leitores para um novo livro de poemas, "Tradutor de Chuvas", como forma de homenagear um momento das nossas vidas a que apelida de "estágio de espanto, de pasmo e da capacidade de nos encantarmos".
"Todo o livro passa por uma espécie de um culto, uma homenagem a esse estado de espanto, de pasmo, da capacidade de nos encantarmos, esse não saber, essa ignorância que nos torna depois viajantes, que nos conduz à condição de uma certa dimensão que é a dimensão da poesia", esclareceu o escritor.
Três anos depois de ter editado um livro de poemas - "Idades, Cidades, Divindades" -- Mia Couto regressa agora a um livro com 66 poemas de culto à infância por estar "condenado" à poesia.
Nas palavras de Mia Couto, a infância é "um território de limbo que nos obriga à viagem, nos obriga à busca e é isso que está presente em todos os versos que estão neste livro", acrescentando que este é livro que tem muito "de autobiográfico".
Um livro em que faz "uma espécie de viagem de rio em que há alguma coisa que está fluindo e de repente não se sabe se é corrente, se é mar, se é estuário..."
Porque é essa a "condição do tempo a que somos sujeitos e que está presente ali também", indicou.
"Eu estou condenado à poesia e é uma coisa a que eu não me quero furtar, se de alguma maneira se me tento definir sou um poeta; sou um poeta que conta histórias e portanto que usa a prosa como um instrumento poético", sublinhou.
Embora se considere poeta, admitiu ter com "uma relação complicada, quase indistinta" entre a prosa e poesia.
Por esta lhe aparecer como "um namoro em briga" ainda que lhe surja com recorrência quando está a organizar as ideias para escrever prosa. É por isso que, de início, vê a poesia como "uma coisa que atrapalha".
Mas apesar do "atrapalho", tem que lhe dar "dar andamento, despacho porque senão ela amarra-me e não me deixa ver, é quase como se fosse uma cortina que não me deixa chegar à luz da janela", confessou.
E se de alguma forma a poesia o atrapalha, também lhe dá "prazer".
Porque percebe "que nela está alguma coisa que é uma espécie de uma névoa que não é um obstáculo, mas um fim em si mesmo" além desta ser uma "travessia" que tem de fazer.
"E tenho que domesticar essa dificuldade, é dessa briga que nasce a poesia", disse o escritor -- cujo primeiro livro "Raiz de Orvalho" (1986) foi de poesia -, sublinhando que aquela acontece "como se fosse a purificação da palavra".
E não nega que "para obter aquilo que seria a forma depurada da linguagem para a escrita corrida, da linguagem em prosa" tem de "passar por esse processo de depuração" que funciona também ao nível das ideias.
Até porque a poesia é, para Mia Couto, "como se fosse uma pátria, como se fosse a maneira eterna de manter a infância"
"Cores de parto", "Saudade", "Ignorâncias Paternas", "O Degrau da Lágrima", "Tradutor de Chuvas" -- o poema que dá título à obra e que remete para a importância da chuva na realidade moçambicana e na realidade onírica do escritor, como o próprio admitiu -- são alguns dos poemas que integram esta obra em que o escritor se revê em jovem.
Um livro de versos que surgiu por acaso enquanto está a escrever outro de ficção e no qual regressa à infância não para falar de si mas daquela fase da sua vida "enquanto momento de aprendizagem do encantamento, daquilo que era uma relação mágica com o mundo".
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