por Sílvia Caneco, Publicado em 13 de Junho de 2011 | Actualizado há 4 horas
.Palmira foi noiva de Santo António há 41 anos e precisou de uma "inspecção" médica. Agora ninguém averigua se são virgens, mas aprendem-se outras lições: todos têm conselhos para os casais
.Palmira Figueira chegou às oito e não arreda pé. O saco do farnel foi escondido - não pode ser filmado pelas câmaras da RTP - e vai ser preciso uma carga de trabalhos e horas de tu cá, tu lá com um polícia para o conseguir reencontrar, no final da cerimónia civil. Tem sede, mas a água foi-se. Tem fome, mas para já vai ter de conter a vontade de comer uvas. Tem calor, mas o chapéu de palha também ficou no saco que ganhou pernas. Tudo por culpa de uma sugestão da RTP: ficava mais bonita se não aparecesse "mascarada".
Traz um cartaz que não larga, na esperança de que algum noivo consiga lê-lo. Tem um verso a pedir ao Santo António protecção para "estas noivas e as do mundo inteiro" e a fotografia de uma mulher vestida de noiva: ela própria, Palmira Figueira, com 19 anos, noiva de Santo António. Como era na altura? A resposta não podia ser mais previsível. "Eram outros tempos."
"A pessoa não podia casar se não fosse como deve ser", murmura Palmira entre dentes.
"Tinha de ir virgem, virgenzinha", continua a amiga do lado, como se as palavras de Palmira precisassem de tradução.
"Pssscht, está calada, olha aqui o homem a olhar para nós", censura Palmira, enquanto dá um valente safanão no braço da amiga.
"Ainda não podia ter lá ido ninguém", continua a vizinha cheia da sua graça, e desta vez Palmira dá-lhe um safanão na cabeça, e agita-lhe o braço, como se se preparasse para abrir um néctar.
"Tínhamos de ir a uma ''inspecção''. Quando nos candidatávamos a noivas de Santo António, tínhamos de passar pelo médico para ele confirmar que ainda estávamos como deve ser. Há 41 anos era assim", conta Palmira, quase em sussurro, para o homem do lado não ouvir.
Os "outros tempos" de que fala eram isso: o namoro de um ano com muita visão e pouco tacto, um médico a coscuvilhar--lhe o corpo e um vestido oferecido pelos patrocinadores que a deixava "tapadinha". Confirma-se pela foto: com aquele vestido, Palmira parecia só ter pescoço.
"Acho muito bem que as coisas tenham mudado. Na altura era o melhor tesouro que podíamos dar aos nossos homens. Agora a miúda que tiver 19 anos e não tiver ''ido'' está encalhada, coitada", remata Palmira, antes de pescoço e olhos se virarem para a escadaria dos Paços do Concelho, a boca acelerada soltar "viva os noivos!" e todo o corpo se encher de excitação por ver as primeiras noivas. "Olha para ali, aquela podia ser eu, há 41 anos." O que vai ser dito lá dentro, no casamento civil, Palmira e as amigas do Feijó não vão ouvir. Madrugaram, fizeram cartazes, prepararam o farnel, mas não vão poder passar da porta. Não reclamam. "Vimos todos os anos, no final vamos poder vê-los passar aqui." Isso basta-lhes. Enquanto esperam pela saída dos noivos, não falta conversa sobre casamentos felizes, bitaites sobre os vestidos e penteados e coscuvilhices que variam entre a Maria que descasou e "a pobrezinha da Luísa", que casou no mesmo dia, mas enviuvou.
Conselhos matrimoniais, parte um Primeira lição a reter: num casamento civil de Santo António, não há só espaço para nomes de solteiros transformados em nomes de casados, trocas de alianças, beijos envergonhados e dissertações sobre os deveres de respeito e fidelidade. Há também uma espécie de pré-terapia de casal. A conservadora e oficial pública - que se ria tanto que a todo o momento parecia ter de posicionar o maxilar - quis deixar um conselho aos noivos. "Vivam intensamente o amor hoje. Não adormeçam chateados um com o outro." A mãe da primeira noiva a ser casada solta uma lágrima. E a conservadora distribui mais presentes: um poema de Florbela Espanca, mais um de Eugénio de Andrade. Tudo entre sorrisos. Os ossos do maxilar ainda devem estar a ressentir-se.
Segunda lição: assistir a um casamento civil obriga a conhecer um novo léxico. A todo o momento é preciso encaixar que um noivo é um nubente, uma noiva é uma nubente e dois noivos são dois nubentes.
E eis que chega a pergunta fatal. "Algum dos presentes conhece algum impedimento legal a esta celebração?" Tchan, tchan, tchan, tchan. Caras tensas, silêncio sepulcral, olhares de um lado ao outro da sala. Ninguém dá um espirro, por segundos ninguém respira. Mas nada acontece. Está provado: esses momentos só acontecem nos filmes, nunca nos directos para a RTP.
Terceira lição: se um casamento exige muita paciência, cinco de uma vez só são capazes de levar uma romântica cansativa a desistir de sonhar com o seu próprio casório. A rapidez nunca foi um forte dos noivos e dos padres, mas as obrigações dos directos, dos intervalos e das câmaras no sítio X tornam-nos cinco vezes mais lentos. A terceira noiva perdeu o véu ao descer os degraus e vê-se um sorriso triste quando leva a mão ao cabelo e percebe que não vai a tempo de o pôr para o directo. As duas noivas da frente são as mais magras, as três dos degraus atrás são as mais gordinhas. Queremos acreditar que a posição não foi programada para as câmaras.
Conselhos matrimoniais, parte II Palmira e as amigas foram a pé para a Sé, mas conseguiram chegar a tempo de apanhar a "tribuna vip", que é como quem diz os lugares com melhor visibilidade. Palmira não se vestiu numa retrosaria mas bem que podia ter-se vestido: tem umas sandálias de trapos, um cachucho de pechisbeque no anelar, com uma flor de croché vermelha e verde e as unhas pintadas da mesma cor. "Olhe, são as cores do Santo António." (Ou de Portugal?) A pintura é aprovada por unanimidade pelas amigas até algo interromper a discussão estética.
"Ó Júlio Isidriiiiooo, vem cá!"
As noivas chegam em carros antigos. Ninguém foi muito original nos penteados apanhados nem na cor dos vestidos, entre o branco, o bege e uma cor que não é nem branco nem bege. Os noivos já saíram para engolir cigarros mas a esta hora já esperam estoicamente no altar. Os directos são uma chatice, devem pensar as 11 noivas e os 11 pais que têm de esperar 20 minutos à torreira do sol até poderem caminhar na passadeira vermelha, varrida até à última migalha.
Na igreja, os casais que completam as bodas de ouro renovam os votos, mas mesmo com microfone é difícil ouvi-los. Os que, não tarda, serão recém-casados repetem "na alegria e na tristeza". O mesmo discurso multiplicado por 22 vezes: "Na saúde e na doença..." E os convidados, cá atrás, 22 vezes a levantarem os pescoços como galináceos, na tentativa de avistarem as caras dos noivos.
Diz a lenda que Santo António se transformou no santo casamenteiro porque era um conciliador de casais. E quem presidiu às duas cerimónias imbuiu-se desse espírito. Desta vez é o padre a dar conselhos para quando os casamentos precisarem de ir às urgências: "Quando sentirem que tudo está cinzento no vosso casamento, sentem-se. E sintam a força do Espírito Santo." Também na cerimónia religiosa há um novo léxico. "Podeis saudar-vos" é a maneira pudica de anunciar o momento que os noivos mais esperam. Sim, podem beijar as noivas.
Palmira esperou duas horas ao sol pelo fim da missa. Esperou o quê? Que algum noivo tenha olhos de lince e consiga ler a dedicatória no seu cartaz. João Baião chega e ninguém se cala. Última lição a reter dos Casamentos de Santo António: o João Baião e o Júlio Isidro não são os noivos, mas é pena. Têm mais palmas e assobios do que os 16 casais juntos.
http://www.ionline.pt/conteudo/129915-as-noivas-santo-antonio-ja-nao-vao-ao-medico-veja-como-tudo-mudou