Entretanto, onde se encontra a poesia moçambicana de autoria feminina do pós-independência, mais precisamente da virada do século XX para o XXI? Em longo artigo sobre a poesia moçambicana contemporânea, a ensaísta brasileira Carmen Lucia Tindó Secco fez as seguintes considerações:
Ao tecermos o perfil da poesia moçambicana contemporânea, detectamos uma ausência quase completa de mulheres-poetas. Ecoam ainda vozes antigas: algumas questionadas, em determinados aspectos, como a de Noémia de Sousa (...) e outras reverenciadas, entre as quais a de Glória de Sant’Anna. (...) Clotilde Silva (...) é pouco conhecida fora de Moçambique. Concluímos, assim, que, de modo geral, na produção lírica da pós-independência, não há, por enquanto, como já se delineia com visibilidade na ficção, com Paulina Chiziane, Lília Momplé e Lina Magaia, uma significativa dicção ‘no feminino’. Na poesia, o grito de ‘ser mulher’ ainda é o de Noémia de Sousa, de Glória de Sant’Anna. (SECCO, p. 299-300).
Os pertinentes comentários de Tindó Secco são confirmados quando nos deparamos com a relação de títulos publicados na edição comemorativa de 25 anos da Associação dos Escritores Moçambicanos, de 2007. Nela, constatamos a presença dos nomes poéticos consagrados no passado como Noémia de Sousa e novas vozes, casos de Clotilde Silva, Isa Manhinque, Rinkel e Sónia Sulthuane. Ou seja, é realmente tímida a presença de poetisas com a estampa do livro.
Felizmente, uma novíssima voz feminina moçambicana revelou-se neste último decênio. A consagrada cantora e declamadora Tânia Tomé, nascida em Maputo (1981), lança em 2008 o seu livro de estreia em poesia, “Agarra-me o sol por trás”, que, em 2010, ganha uma edição brasileira, agora intitulada “Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias)”, organização e prefácio de Floriano Peixoto, ilustrações de Eduardo Eloy, textos críticos de António Cabrita e Francisco Manjate, e uma entrevista da poetisa ao organizador. Trata-se de uma caprichada edição da editora paulista Escrituras, inserida na coleção Ponte Velha, que publicou anteriormente “O osso côncavo e outros poemas”, antologia poética de Luís Carlos Patraquim, “Lisbon Blues seguido de Desarmonia”, de José Luiz Tavares, e “A cabeça calva de Deus”, de Corsino Fortes. Os dois últimos são poetas cabo-verdianos.
A poesia de Tânia Tomé desvela uma nova dicção erótica prenhe em sinestesia, em que a metapoética se torna presente em uma linguagem que mostra o árduo e doloroso trabalho de sua tessitura poética, como em “Poema Impossível”: “Meu corpo impossível/ não me comas inteiro/ o possível poema/ que me subsiste/ deixa/ que deságue,/ que no abrigo/ os seus pedaços/ façam sentido./ Porque aí/ onde mais me dói escrever/ reside a alma.” (TOMÉ, p. 2010, p. 40). Desejo ininterrupto de entrega ao amor: “Não me salves, selva-me” (idem, ibidem, p. 17) e erotização moçambicanamente índica atravessando o jazzístico som do corpo do sujeito lírico: “E tu comigo, cá dentro, lá fora/ amando-me na medida do ritmo/ de um jazz cálido frenético./ Abraço do Índico, o piano/ atravessa as fronteiras que nos distam,/ recria o sopro do teu sax/ no meu corpo” (idem, ibidem, p. 48). Poesia que desabrocha um novo cântico, um novo ser a descobrir: “e não me perguntes/ quem é esta mulher/ que cresce comigo/ nas raízes profundas/ da flor do meu corpo” (idem, ibidem, p. 30).
Viagem ao âmago do ser, a poesia brota de uma vontade visceral e insana ao lapidar o “osso das palavras/ (...) uma asa cede-me a loucura/ e a noite me engole nesse desespero alucinante” (idem, ibidem, p. 13). Força criativa erotizando a linguagem, “despindo os versos um a um no centro deste poema” (idem, ibidem, p. 15), a nudez descontrolada do sujeito lírio manifesta-se na ânsia voraz de escrever, “e há um desejo insano de desfigurar a branca página” (idem, ibidem, p. 15).
Insanidade que conduzirá o sujeito lírico para se desprender da matéria à procura dos elementos do ar, signo da liberdade, da transcendência, é a poesia na busca da ampliação dos sentidos do verbo poético e surge a indagação: “Mas em que lugar da asa/ a palavra poderia ser mais bela?” (idem, ibidem, p. 41). Entretanto, não há resposta, há inquietação, há a incessante carpintaria da palavra e “o voo/ vai completamente fora/ da asa” (idem, ibidem, p. 26) para dizer o indizível. As palavras, tais quais as conhecemos, não cabem mais em seu discurso, por isso o uso de neologismos (cantoema, reflesou, amortradoxo, showesia) tenta suprir a necessidade do sujeito lírico. Sobre o sentido das palavras no poema, Octavio Paz afirma que:
“um poema que não lutasse contra a natureza das palavras, obrigando-as a ir mais além de si mesmas e de seus significados relativos, um poema que não tentasse fazê-las dizer o indizível, permaneceria uma simples manipulação verbal. O que caracteriza o poema é sua necessária dependência da palavra como sua luta por transcendê-la. (PAZ, 1972, p. 52).
E é na tentativa de expressar o indizível que as palavras transcendem imagens inusitadas em metáforas insólitas e impactantes, típicas do surrealismo, reveladas na veemência do poema “Abismo sol adentro”: “Agarra-me/ o sol/ por trás.// Escuta no vento/ a tua mão/ secreta” (TOMÉ, p. 2010, p. 19).
Em depoimento constante no livro, Tânia Tomé afirma que “a música influencia muito na minha poesia, não só nas palavras, mas na escolha das palavras que vêm a seguir, é tudo uma questão musical, é um processo muito natural” (idem, ibidem, p. 107). Seu sujeito lírico procura unir a música e a poesia para cantar a sua terra moçambicana: “Um cântico inteiro em abraços de terra nos lábios/ o poema que ainda irei escrever/ marrabentando-me/ urgente” (idem, ibidem, p. 63); no envolvimento com o seu chão e na valorização dos aspectos culturais tradicionais da dança, da música e seus instrumentos: “Na gala-gala percorrendo-me o tronco/ lentamente/ no toque das timbilas nas mãos,/ ecoando cântico chamamento dos tambores/ E no embrião dos mpipis/ mergulhados nas sílabas das cores deste sangue” (idem, ibidem, p. 55).
Pertencimento ao país que faz recordar o poeta maior José Craveirinha e o seu célebre poema “Hino à minha terra”, amor à terra que é renovado por essa jovem poetisa com o canto intitulado “Meu Moçambique”: “Eu sei-me Moçambique,/ no cume das árvores, na sede incontinente/ da minha falange, do Rovuma ao Incomati,/ no xigubo terrestre dos pés descalços/ e em todos os tambores que surdem/ das mãos coloridas nos braços em chaga” (idem, ibidem, p. 47).
“Escrevendo muhipiti/ no surrealismo do Índico” (idem, ibidem, p. 69), versa o sujeito lírico. Para além do surrealismo por vezes visceral como o de Craveirinha, encontramos ressonâncias de outros grandes poetas moçambicanos, ora nos cantos à ilha de Moçambique e referências ao Índico a recordar Rui Knopfli, ora na lírica erótica e nas citações aos elementos da natureza como o ar e a água de Eduardo White e Luís Carlos Patraquim.
Na confluência das artes que a poesia de Tânia Tomé desvela um mundo de letras sonoras, de um erotismo exacerbado e de uma entrega violenta para ressemantizar a palavra. Em suas metáforas dissonantes e viscerais, com poemas que arriscam e transmitem a inquietação de uma poetisa que procura tirar da inércia os sentidos desgastados do verbo, este “Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias)” de Tânia Tomé surge como promessa de uma voz feminina que veio para ficar na poesia moçambicana contemporânea.
BIBLIOGRAFIA
ASSOCIAÇÃO DOS ESCRITORES MOÇAMBICANOS. Memorial 25 anos. AEMO, 2007.
PAZ, Octávio. A consagração do instante. In: Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SECCO, Carmen Lucia Tindó. Paisagens, memórias e sonhos na poesia moçambicana contemporânea. In: A magia das letras africanas – ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola e Moçambique e alguns outros diálogos. Rio de Janeiro: ABE Graph Editora, 2003. pp. 280-306
TOMÉ, Tânia. Agarra-me o sol por trás (e outros escritos e melodias). São Paulo: Escrituras Editora, 2010.
http://www.jornalnoticias.co.mz/pls/notimz2/getxml/pt/contentx/1255315