Faz hoje, precisamente, 155 anos que um tribunal de Paris proferiu a sentença que condenou o poeta francês Charles Baudelaire pela publicação do livro Les Fleurs du Mal. Tratou-se de uma decisão bizarra contra um dos maiores poetas da literatura universal que cometera o crime de ter escrito seis poemas que o tribunal considerou que levavam «necessariamente à excitação dos sentidos através de um realismo grosseiro e ofensivo do pudor» e, como tal, consubstanciavam um crime de «ultraje à moral pública e aos bons costumes».
A sentença condenava o poeta numa multa de 300 francos e os seus dois editores em 100 francos cada um e ordenava «a supressão» dos seis poemas em causa. Como se vê pela disparidade dos montantes das multas o que o tribunal considerou verdadeiramente grave foi a criação dos poemas e não a sua publicação. O mal estava mais em os ter concebido do que em os tentar publicitar.
O livro Les Fleurs du Mal tinha sido posto à venda em 25 de junho de 1857, mas logo fora denunciado pelo jornal Le Figaro, que, num artigo de 5 de julho seguinte, afirmava: «Este livro é um hospital aberto a todas as demências do espírito, a todas as podridões do coração». Prevendo o pior, Baudelaire escreve aos seus editores, em 11 de julho, pedindo-lhes que escondessem toda a edição; mas a Direção-Geral da Segurança Pública já tinha sido avisada, em 7 de julho, de que o livro constituía um «desafio às leis que protegem a religião e a moral». Em consequência, a edição foi prontamente apreendida pelas autoridades.
A sanha persecutória contra o livro e o seu autor não constituía novidade para este, pelo menos desde que, dois anos antes, em 1 de junho de 1855, publicara na Revista dos Dois Mundos dezoito poemas sob o título genérico de Les Fleurs do Mal (sendo a primeira vez em que este título aparece impresso). Com efeito, logo Baudelaire pode verificar as «reações inquietantes» que esses poemas desencadearam, não só através de uma nota da direção da própria revista, que se demarcava do conteúdo dos mesmos, mas sobretudo de um artigo de 4 de novembro de 1855, no incontornável Le Figaro. Aí Baudelaire era acusado de ter uma «inspiração puerilmente pretensiosa», de recorrer a um «amontoado de alegorias ambiciosas para dissimular a ausência de ideias» e de usar uma «linguagem ignorante, glacial, sem cor» e «pitorescamente ornamentada 'de venenos, de cadáveres, de monstros assassinos e de vermes do sepulcro'». E concluía: «O senhor Baudelaire, destronado da sua fama meteórica, já só será citado, no futuro, entre os frutos secos da poesia contemporânea».
A condenação de Baudelaire causou profunda convulsão nos meios culturais. A França de Voltaire, Moliére, Montesquieu, Vítor Hugo, Rousseau, Beaumarchais, Rabelais, Flaubert, Gautier, Verlaine e Anatole France, entre muitos outros, não dormia bem com a condenação de um dos seus maiores poetas de sempre. Muitos foram os nomes da cultura que se insurgiram contra a sentença e nas edições posteriores do livro praticamente ninguém respeitou a ordem de supressão dos seis poemas «malditos». Porém, só em 1929 houve uma tentativa séria de reabilitar o poeta quando o então ministro da justiça tentou criar uma lei que possibilitasse a revisão das sentenças de condenação por obras literárias. Mas sem êxito pois a estupidez obscurantista da direita francesa fez prevalecer, mais uma vez, as interesses da face da justiça sobre os valores da própria justiça.
A «reabilitação judiciária» de Baudelaire só se tornou possível em 1946, quando a Assembleia Nacional, na euforia da libertação e do pós-guerra, aprovou uma lei admitindo recursos de revisão contra condenações por ultraje aos bons costumes cometido através de livros. Três anos depois, em 31 de maio de 1949, um tribunal de cassação, finalmente, «cassa e anula o julgamento» que condenara o poeta e os seus editores e «liberta a sua memória da condenação preferida» 92 anos antes.
Apesar disso nunca deixaram de ecoar as palavras do próprio Baudelaire que, em 1857, insurgindo-se contra a moral em nome da qual era perseguido, proclamava: «Doravante só se farão livros reconfortantes e que sirvam para demonstrar que o Homem nasceu bom, e que todos os homens são felizes. - Abominável hipocrisia».