Talvez ainda seja cedo para se tirar conclusões definitivas sobre o recém-lançado Fundo Nacala.
Oficialmente, trata-se de um fundo “voltado a investimentos no setor de agronegócios em Moçambique”[1], inserido no contexto maior de “um acordo de cooperação técnica para captar recursos financeiros para o desenvolvimento da agroindústria no Corredor de Nacala, região ao Norte do país africano.” [2] O acordo, além de Brasil e Moçambique, inclui também o Japão.
Oficialmente, “o fundo deve beneficiar 10 milhões de moçambicanos.” [2]
De acordo com o que se lê no convite para o evento que marcou o lançamento do fundo, o tal acordo de cooperação trilateral é conhecido por ProSavana-JBM. [3]
O lançamento do fundo é apenas uma etapa de um processo que já vinha sendo pensado e realizado antes.
Em Abril de 2011, o seminário internacional Agronegócio em Moçambique: Cooperação Internacional Brasil – Japão e Oportunidades de Investimento apresentou “aos participantes o Programa de Cooperação Triangular para o Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropical de Moçambique (ProSavana JBM)” [4] . No seminário, estavam presentes, entre outros, os Ministros Marco Farani, da Agência Brasileira de Cooperação – a USAID brasileira – e Wagner Rossi, ex-Ministro da Agricultura. Uma das palestras, intitulada A Internacionalização do Agronegócio Brasileiro, foi ministrada pela Senadora Kátia Abreu e pelo Presidente do Conselho Superior do Agronegócio (COSAG), braço da FIESP voltado para o agronegócio. Também falaram representantes do governo moçambicano, da JICA – a agência de cooperação japonesa -, do Banco Mundial, além de empresários brasileiros e japoneses (Mitsubishi Co). [5]
O projeto ProSavana é composto de várias etapas, como mostra a introdução do Resumo Executivo do ProSavana-TEC, produzido em junho de 2011 pela Agência Brasileira de Cooperação, em conjunto com a Embrapa, onde é detalhada a etapa de transferência de tecnologia entre o Brasil e Moçambique. [6]
As mesmas tarefas podem ser vistas num documento de apresentação do projeto, aparentemente oriundo do governo moçambicano: ainda que a terminologia não seja a mesma utilizada pelos brasileiros, a descrição delas corresponde à feita do lado brasileiro. E aqui, as tarefas não são apenas descritas, mas encadeadas num cronograma. [7]
Ainda de acordo com o documento do ProSavana-TEC, “A lógica desta estrutura reside no pressuposto de se tomar como alavanca para o desenvolvimento do setor agrícola e rural moçambicano, o intensivo emprego de tecnologias agrícolas prontas (primeiro projeto), imediatamente aplicáveis em uma zona modelo (segundo projeto), como forma de se construir fatos, informações e meios que validem a sustentabilidade técnica e política do Plano Diretor supramencionado.”
Ora, é aqui que o círculo se fecha, e é aqui que entra a FGV.
O Plano Diretor é, de acordo com a Solicitação de Proposta Nº 14740/2011 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), uma ação orientada a fomentar “a implantação de arranjos produtivos agropecuários através de investimentos públicos e/ou privados, permitindo a geração e distribuição de riqueza, redução da pobreza, o incremento da segurança alimentar, e a compatibilização entre produção e conservação dos recursos naturais, impulsionando uma rota de desenvolvimento sustentável que poderá se expandir para outras zonas de savana tropical na África.” [8]
Quem acabou por ficar com a responsabilidade de elaboração de tal Plano foi a Fundação Getúlio Vargas, como afirma Cesar Cunha Campos, diretor da FGV Projetos. [2]
Ora, se o fundo de investimentos, que está nas mãos da iniciativa privada (“A captação do recursos do fundo será toda da iniciativa privada” [2]), é parte dos tais “investimentos públicos e/ou privados” descritos na Solicitação de Proposta acima mencionada; e é com eles que se permitirá “a geração e distribuição de riqueza, etc, etc”; conclui-se então que as etapas anteriores já teriam sido, senão completadas, pelo menos iniciadas, para concluir a favor da “sustentabilidade técnica” citada no projeto do ProSavana-TEC, e que a etapa que antecede a elaboração do Plano Diretor, a de Estudos Demonstrativos por meio de implantação de áreas-modelo de desenvolvimento de explorações agropecuárias ao nível de vilas [8] só pode se referir ao plantio de soja, milho e algodão feito pelos 40 agricultores que emigraram para Moçambique em setembro do ano passado. [9]
Portanto, iniciadas todas as etapas, só falta agora ouvir dos moçambicanos, governo e sociedade civil, a comprovação de que o programa ProSavana de fato permitiu “a geração e distribuição de riqueza, a redução da pobreza, o incremento da segurança alimentar, e a compatibilização entre produção e conservação dos recursos minerais, impulsionando uma rota de desenvolvimento sustentável que poderá se expandir para outras zonas de savana tropical na África.” [8]
Mas quando, aqui e ali, se ouve falar em etanol ou álcool combustível, não há como não lembrar do país africano de língua portuguesa a oeste de Moçambique, em que projetos de propostas semelhantes acabavam por revelar o favorecimento do etanol em detrimento da produção alimentar. [11]
Uma coisa é certa: o modelo agrícola que os moçambicanos estão importando é um modelo de ponta. Mas se, por um lado, não há indícios de que seja, sequer aqui no Brasil, um modelo distribuidor de renda – ainda que gerador de riqueza – por outro lado, será uma excelente oportunidade para que a Embrapa-Monsanto [10] e outras empresas inerentes a esse modelo (quase todas estrangeiras, no Brasil e em Moçambique), vão consolidando a sua posição nesse continente eternamente suposto por desbravar.
Se esse modelo “funciona” no Brasil – e há que se ter muita clareza a respeito dos critérios usados nessa afirmação e não esquecer que a vasta extensão territorial do Brasil “permite” até que outros modelos convivam com ele – não quer dizer que vá “funcionar” em Moçambique, por mais semelhanças geográficas que existam entre os dois países: uma coisa é fazer crescer plantas em vastos tratos de terra – sejam eles do cerrado brasileiro ou da savana africana. Outra coisa bem diferente é fazer crescer plantas em vastos tratos de terra localizados em cenários socioeconômicos tão distintos quanto os dos dois países (só para dar um exemplo, o Brasil possui apenas 15% de população rural[12], enquanto Moçambique tem 70% de população rural[13], dos quais 95% praticam agricultura de subsistência; estarão estes efetivamente sendo incluídos no modelo brasileiro importado, ou acabarão por migrar para as cidades, e em que condições?)
Mas isso, em última instncia, cabe aos moçambicanos julgar, se não for por mais nada, em nome do respeito à soberania que deve sempre estar presente em qualquer cooperação que se queira diferente das práticas históricas de hegemonia dos países desenvolvidos.
“A integração latinoamericana, como arma principal na luta contra a dependência e pelo desenvolvimento, não pode ser vista como algo que interessa somente ao governo, aos empresários e à economia. Ela tem que ser entendida como uma grande empresa política e cultural, capaz de convocar à participação ativa todos os setores do povo.” (Ruy Mauro Marini, em “Desenvolvimento e Dependência“)
Poderíamos acrescentar que o dito do criador do conceito de subimperialismo pode ser aplicado não apenas à integração latinoamericana, mas a qualquer integração que lute contra a dependência e pelo desenvolvimento, como parece ser o caso da cooperação Brasil-África
NOTAS
[1] Fundo da FGV quer captar US$ 2 bi para investimentos em Moçambique, Valor Econômico, 04/07/2012
[2] Brasil e Japão criam fundo de investimento para produção de alimentos em Moçambique, Agência Brasil, 04/07/2012
[3] Fundo Nacala – Programa Preliminar, FGV / Projetos GV Agro (Aqui ou aqui)
[4] Seminário em São Paulo orienta sobre investimentos no agronegócio em Moçambique, Embrapa.
[5] Programa de Cooperação Triangular para o Desenvolvimento da Agricultura das Savanas Tropicais em Moçambique – ProSAVANA-JBM – Seminário Internacional – Agronegócio em Moçambique: Cooperação Internacional Brasil-Japão e Oportunidades de Investimento, Agência Brasileira de Cooperação, Ministério das Relações Exteriores. (Aqui ou aqui)
[6] Projeto de melhoria da capacidade de pesquisa e de transferência de tecnologia para o desenvolvimento da agricultura no corredor de Nacala em Moçambique – ProSavana-TEC (aqui ou aqui).
[7] ProSavana – Uma oportunidade para o desenvolvimento de agronegócios no Corredor de Nacala. Governo de Moçambique (?)(Site da Fundação Malonda ou aqui)
[8] Solicitação de Proposta Nº 14740/2011 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. (Aqui ou aqui)
[9] Moçambique oferece concessão de terras a agricultores brasileiros
[10] Embrapa e Monsanto, uma “arquitetura porosa e criativa”
[11] Crise Alimentar: Embrapa faz parceria para ajudar Angola e
Crise Alimentar: Grupo brasileiro Odebrecht inicia em 2010 produção de açúcar e etanol em Angola
[12] Censo 2010 – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
[13] Base de dados geográficos do “Corredor de Nacala”, Moçambique. Anais XV Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto – SBSR, Curitiba, PR, Brasil, 30 de abril a 05 de maio de 2011, INPE. (Aqui ou aqui)