Os portugueses no folclore goês
Teotónio R. de Souza
I - Uma introdução metodológica
O meu interesse neste ensaio insere-se na problemática que vou definir. No que toca directamente e concretamente ao tema, limitar-me-ei somente à análise de alguns adágios ou provérbios concanis e de alguns cantos folclóricos para ilustrar a visão nativa de certos acontecimentos históricos e de certas atitudes coloniais, relativos à presença portuguesa em Goa, e que ficaram registados no consciente popular goês. São uns testemunhos folclóricos da intensidade das experiências vividas pelo povo. Existem várias outras expressões culturais e folclóricas de Goa que guardam a marca dos 450 anos da presença portuguesa em Goa. Não me sinto suficientemente equipado para tratar de todas elas, e nem um ensaio deste género daria para um estudo mais extensivo. Já tenho discursado e escrito noutras ocasiões sobre alguns aspectos do folclore goês como uma fonte de informação histórica (1). Algumas das minhas reflexões passadas são aqui retomadas juntamente com algumas novidades.
Os historiadores habituados a produzir os seus estudos nos arquivos só por excepção utilizam fontes orais, e essa utilização é geralmente vista com suspeição, e considerada metodologicamente pouco rigorosa, ou pouco segura, como uma fonte histórica. Muitas vezes, os textos escritos, só por serem escritos (e isso acontece de preferência no ocidente), tem melhor aceitação como uma fonte de informação histórica. Na introdução ao seu estudo «O império asiático português», Sanjay Subrahmanyam (2) tem um capítulo em que foca a atenção sobre as "faces míticas da Ásia". Analisa um texto malaio para esclarecer a sua lógica interna e a sua utilidade como fonte. Demonstra como, apesar da incorrecção de certos factos e sem precisão cronológica, consegue transmitir a perspectiva vernácula sobre a entrada dos portugueses em Malaca. E chega mesmo a comparar os mitos orientais dessa natureza aos mitos aceites em Portugal como factos históricos, e conclui: «Separar o mito da realidade é evidentemente uma tarefa que todo o historiador deve procurar cumprir com cautela, pois enquanto a História é a matéria da qual se faz o mito, a elaboração de mitos é igualmente parte do processo histórico».
As tradições folclóricas talvez mereceram um maior interesse dos antropólogos, e de alguns historiadores ocidentais mais recentes, ocupados com as investigações sobre o quotidiano popular e movidos pelas tendências inovadoras da «Nova História». Foi a «Nova História» que também descobriu a história da «longa duração», vindo a dar melhor sentido ao tempo cíclico da tradição indiana, como logo veremos. Fernand Braudel, um dos grandes mestres da «Nova História» acredita que mais de metade da vida da humanidade está mergulhada no quotidiano, que ele define tão bem como «inumeráveis gestos herdados, confusamente acumulados, infinitamente repetidos para chegarem até nós, e que nos ajudam a viver, nos aprisionam, decidem por nós, ao longo da nossa existência».(3)
O problema com as fontes orais, e principalmente com as tradições folclóricas é o de fixar as datas e de conjugar as versões variantes. Uma exploração frutífera de folclore oral requere habilitações linguísticas e um equipamento cultural que poucos historiadores estrangeiros poderão gabar de possuir. É muitas vezes a falta dessa habilitações, vinculada com desinteresse ou menosprezo pela visão nativa dos acontecimentos, que leva os investigadores estrangeiros a apoucar o valor de folclore como uma fonte para história. Note-se a propósito que os problemas de documentação escrita (por razões económicas e ambientais) na Índia necessitavam uma transmissão oral muito mais organizada, dando-lhe mesmo um carácter sagrado com o fim de reduzir os perigos de corrupção. Mas os estudos «orientalistas» baseados no conceito tradicional indiano de tempo e história foram sujeitos à critica, muitas vezes injusta, pelos historiadores ocidentais do século XVIII e posteriores. Eles não encontravam nos textos indianos tais como Mahabharata, Dharmashastras , ou Puranas o sentido linear e cronológico da história a que estavam acostumados na tradição historiográfica do ocidente. Nem estudaram suficientemente durante muito tempo os textos indianos do tipo jyotishastra sobre matemática e astronomia, e concluíram que os indianos não distinguiam entre a história e o mito. Os calendários indianos deveriam ter ajudado a levar mais a sério os ciclos repetitivos.
James Mill (1773-1836) era um dos primeiros críticos ocidentais que associavam a concepção cíclica do tempo com a fase «primitiva» duma sociedade. As tradições bíblicas dos cristãos sobre a criação do universo em dias, as fases da história do judaísmo, e a expectativa do Juízo final, não tinham paralelos na tradição indiana. Para a Europa cristã a noção linear do tempo e da história era uma tradição adquirida e confirmada pelo islamismo, que partilhava do mesmo legado. As objecções à cronologia bíblica pelas ciências modernas estavam ainda para vir. E os historiadores de «longa duração» são muito recentes na Europa. Até então cada evento histórico era considerado como irreversível e único. Se a Índia antiga não levasse a sério o conceito de tempo como mudança e o reduzisse à simples ilusão, não teria havido na Índia uma velha tradição de horóscopo e tanta preocupação em determinar uma hora correcta e propícia (muhurta) para acontecimentos importantes da vida pessoal, da actividade económica, da vida social, e de momentos políticos.
A historiadora indiana Romila Thapar defende que o conceito cíclico de tempo (inicialmente de cinco anos ou yuga, alargado mais tarde para períodos mais extensos) não exclui outras categorias de tempo, incluindo algumas mais aproximadas do tempo linear dos historiadores modernos. Dharmashastra de Manu refere a várias divisões de tempo, incluindo o piscar dum olho. Explica-se assim a possibilidade da co-existência de vários conceitos de tempo, e não se justifica a dicotomia de tempo linear e tempo cíclico. A tradição indiana da inevitável reversibilidade dos ciclos nunca negou a a influência de «karma» ou acção humana no processo de «samsara (transmigrações) e «moksha (libertação). Cada ciclo também representava uma queda no nível moral («dharma») e desta forma denotava uma alteração histórica. O último ciclo de «kaliyuga» indica para uma degradação total da ordem social, da qual somente a décima incarnação de deus Vishnu aparecendo como Kalkin pode salvar a humanidade. Curiosamente os textos clássicos indianos contêm uma distinção entre o tempo mítico ou cosmogónico, anterior ao grande dilúvio, e o tempo que segue e em que aparecem as gerações das duas grandes linhagens dos Kshatryas: uma solar («Suryavamsa») e a outra lunar («Chandravamsa») . Distinguem-se assim dois tipos de calendários. O termo «vamsa» para designar uma geração significava bambu, e cada nó do caule uma geração. Era uma concepção linear de tempo genealógico, mas sempre dentro da grande fasquia das «yugas». Em vez de datas utilizavam-se certos eventos importantes como marcos históricos, tais como a guerra de Mahabharata, ou o exílio de Rama. Vishnu Purana avança com a localização duma constelação para marcar o início da «Kaliyuga». Os astrónomos tentaram fixar uma data precisa e equivalente a 3102 a.C. Mas a parte final de Vishnu Purana contem listas dinásticas, utilizando assim um novo conceito de tempo regnal para o período posterior à guerra de Mahabharata. Entra assim um conceito do tempo mais realista e histórico. Temos assim as várias eras indianas: Vikrama ou Samvatsa (58-57 a.C.), Saka (78 d.C.), Gupta (319-20 d.C.), etc., que utilizam datas mais precisas para determinar os sucessos dos vários estados e reinados. A formação de estados influenciou esse desenvolvimento, numa maneira paralela ao desenvolvimento da historiografia que acompanhou a evolução dos nacionalismos estatais na Europa. A influência budista foi marcante na Índia com a evolução dos seus «sanghas» e por causa da importncia que atribuíam à cronologia da vida do seu fundador. As suas actividades comerciais e os muitos legados às suas instituições monásticas explicam em grande parte esse interesse budista em documentação mais precisa. (4)
As ilustrações folclóricas escolhidas neste estudo compartilham das imprecisões e das qualidades que Fernand Braudel atribui ao «quotidiano», mas temos outras informações documentais que nos permitem e nos assistem para precisar e completar vários testemunhos folclóricos. Temos que ter cautela e tomar em consideração as suas proveniências geográficas e sociais (castistas e religiosas) para não generalizar os testemunhos como genericamente aplicáveis ao todo o povo goês, ou como representativos dos sentimentos do inteiro povo goês. É precisamente por serem testemunhos sectoriais que nos ajudam ainda melhor a distinguir as diferenças das reacções ou do impacto da presença portuguesa sobre a sociedade goesa. Escolhemos também algumas ilustrações para demonstrar o impacto linguístico sobre o quotidiano popular goês.