SALVADOR DA BAHIA, O CORAçãO NEGRO DO BRASIL
Bahia de Todos os Santos. O topónimo revela a configuração do espaço físico e, ao mesmo tempo, muito mais do que isso, nele afluindo evocações de amplitude universal, de ecuménico timbre. Aí se queda afirmado o sincretismo das gentes que habitam as suas margens, lugar partilhado por santos católicos e divindades africanas acompanhadas por sua baiana descendência, lugar onde se cultivam crenças animistas cruzadas com um catolicismo tropical e onde os deuses mais amados tomam nomes como Obaluaê, protector dos pobres, Oxum, deusa da beleza, Yemanjá, a rainha do mar, Xangô, deus da justiça, Oxumaré, a divindade do arco-irís, Yansã, deusa dos ventos e das tempestades, e Oxalá, o mais poderoso de todos, identificado também com Nosso Senhor do Bonfim. A mitologia do Candomblé, com o seu culto a dezenas de orixás de origem africana, é a melhor introdução ao sincretismo religioso e cultural do povo baiano.
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Noite no bairro do Pelourinho, Salvador da Bahia |
Em Salvador, sobe-se até à Cidade Alta para admirar o núcleo histórico da primeira capital do Brasil, fundada por Thomé de Sousa em 1549. A arquitectura civil setecentista e oitocentista, a par de uma mão-cheia de belas igrejas barrocas, sobrevive no renovado Bairro do Pelourinho, o maior aglomerado de urbanismo e arquitectura coloniais de todo o Brasil. Mas é lá em baixo, junto ao mar, que um quase anónimo cais concentra em si a chave que decifra a cultura baiana e, em certa medida, todo o conceito Brasil.
Chamam-lhe «Chega nego», a porta de entrada dos escravos africanos no território sul-americano, lugar de desembarque dos escravos provenientes da costa ocidental africana. Os primeiros terão chegado ainda na primeira metade do século XV, sendo incerto o número total - mais de seis milhões, provavelmente, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro. O tráfico negreiro levou para a Bahia gente de três grandes grupos culturais, originários do Sudão, Gambia, Serra Leoa, Costa do Marfim, Nigéria e Angola, gente que desenhou a pulso e com o próprio sangue o coração negro do Brasil, como dizia Jorge Amado.
LITURGIA DE TAMBORES EM SALVADOR DA BAHIA
Subo a Ladeira do Carmo, em pleno Bairro do Pelourinho, sob um breve aguaceiro tropical que deixa a calçada, de inspiração portuguesa, escorregadia e tingida por uma cintilação metálica. As cores do casario colonial acendem-se mais vivamente com os raios solares que voltam a abrasar a cidade. Tão de súbito como irrompeu o sol, o Largo do Pelourinho torna-se mais pequeno com a pequena multidão de turistas que parece ter surgido do nada e que se detém à entrada da Fundação Jorge Amado, uma casa-museu onde se evoca a obra do mais famoso escritor baiano através da exposição de traduções dos seus livros, objectos pessoais, fotografias, etc.
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Vendedor de rua, Salvador da Bahia |
O largo está situado bem no interior do que poderemos designar como o coração luso-africano de Salvador da Bahia, uma área mais ou menos triangular cujos vértices são o Terreiro de Jesus, a Igreja e o Convento de Nossa Senhora do Carmo, ao fundo da ladeira homónima, e a Praça Anchieta, onde se ergue uma das mais bonitas igrejas barrocas do Brasil, a Igreja de São Francisco.
O sítio é bom para soltar a rédea aos sentidos e aspirar o inefável quotidiano: o frufru das saias rodadas das baianas, os movimentos coreográficos de um grupo de capoeira de passagem, a vertigem dos tambores que fazem vibrar a calçada, os odores do azeite de dendé que impregna o acarajé, o sorriso das mestiças que estendem ao visitante as fitas encantadas e cheias de promessas do Senhor do Bonfim. E ali mesmo à mão, a meio da ladeira, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, erguida pelos escravos no século XVIII, onde a liturgia se faz acompanhar pelo ritmo dos tambores africanos.
A ladeira que continua pela direita da Fundação Jorge Amado leva-nos até ao Terreiro de Jesus, a ampla praça que mira a fachada da Catedral Basílica, templo construído pelos jesuítas em meados do século XVII. Austera pedra de lioz, altares barrocos e neoclássicos, um belíssimo tecto a cobrir a nave central, eis alguns elementos chamados para esteio da sumptuosidade religiosa da igreja mais imponente de Salvador. A fazer de contraponto - e visita muitíssimo aconselhável -, está ali mesmo ao lado o Museu Afro-Brasileiro, com o seu copioso acervo evocativo da identidade africana da capital da Bahia.
A VINDICTA DOS ESCRAVOS
Foi sobretudo o ciclo de açúcar que levou a prosperidade a Salvador da Bahia, numa época em que os engenhos se multiplicavam ao longo dos pontos de costa habitados por portugueses.
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Acarajé, uma das mais apreciadas iguarias da Bahia |
A acumulação de riqueza da economia açucareira, o primeiro grande sucesso da colonização da América do Sul, a que se juntou depois os lucros da exploração mineira, foi a base da edificação das cidades de Recife, Olinda e Salvador. Mas a beleza das igrejas barrocas que hoje podemos admirar teve o seu preço. Como sublinha Darcy Ribeiro em «O povo brasileiro - a formação e o sentido do Brasil», “as enormes, numerosas e riquíssimas igrejas e conventos dessas cidades, sobretudo da Bahia, sua vida urbana brilhante e ostentatória, eram a alta expressão da civilização crioula que tinha sua contraparte na vida e na morte do escravo do eito, sobre cujas costas pesava aquela opulência”.
Abundam em Salvador da Bahia exemplos de arquitectura religiosa que mesclam o barroco, o neoclássico e o rococó, e que testemunham a contraditória felicidade desses anos. Mas se entre todas houvesse que eleger um, e apenas uma, como símbolo que recapitulasse no seu corpo compósito pedaços de história e cultura da cidade, seria o da setecentista Igreja do Convento de São Francisco. É um dos maiores expoentes do barroco baiano - e dos votos de sobriedade e temperança do patrono não há nem sombra. No pátio interior brilha azulejaria portuguesa do século XVIII, uma intimidante luz de ouro emana da talha que reveste o interior, e uma profusão escultórica de querubins, animais e flores toma forma na negra madeira de jacarandá. Diz-se que a razão de algumas figuras angélicas ostentarem faces bizarras e imponderáveis apêndices se deve a uma subtil vindicta dos escravos, que eram obrigados a erguer templos cristãos, mas proibidos de praticar a sua própria religião.
PELOURINHO, DE BAIRRO DECADENTE A CENÁRIO TURÍSTICO
O maior núcleo urbano brasileiro de arquitectura colonial encontrava-se há uma vintena de anos numa situação de grave decadência, com sérios problemas que afectavam tanto o património edificado como o tecido social que o habitava. A intervenção, planeada pelo Governo Estadual da Bahia, com a cooperação do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), salvou o conjunto da degradação (e da ameaça da especulação imobiliária), embora algumas das orientações do processo de reabilitação tenham sido objecto de crítica e fonte de polémica.
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Fundação Jorge Amado no largo do Pelourinho, centro histórico de Salvador da Bahia, Brasil |
O Pelourinho era, há cerca de trezentos anos, um bairro aristocrático. Algumas das edificações mergulham as suas raízes nos séculos XVIII, ou XIX, quando o bairro gozava de comprovada respeitabilidade. A atracção das zonas novas e das avenidas rasgadas à beira-mar começou a atrair a burguesia e o Pelourinho passou (ou mudou) de moda. Por volta de meados do século XX já ali se havia instalado uma atmosfera de boémia e de bas-fond, com prostituição e delinquência numa escala que tornou o bairro pouco recomendável.
“Limpo, escovado e policiado”, eis como Roberto Marinho de Azevedo, poeta e novelista, se referia ao renovado bairro do Pelourinho num artigo publicado há dez anos na revista do IPHAN. As reservas expressas quanto ao resultado da intervenção focaram essencialmente as tonalidades escolhidas para as fachadas (não seriam, no séc. XVIII, tão vivas como se mostram em Olinda e em Paraty), a utilização de betão no interior e nos pátios traseiros dos edifícios e ainda a transformação do velho bairro boémio em cenário turístico marcado pela artificialidade.
Algumas das críticas foram perdendo pertinência, apesar de, na verdade, as funções residenciais da zona terem sido decididamente preteridas em benefício da exploração do seu potencial turístico. A vida do Pelourinho está hoje muito modelada pelas actividades que dependem do turismo - restaurantes, bares, galerias de arte e lojas - e é, portanto, na época alta que a animação é mais significativa.
Entre os edifícios mais interessantes, e que conservam a traça original, contam-se o Solar do Ferrão (séc. XVII), onde está instalado o Museu Abelardo Rodrigues, e o edifício que acolhe a Fundação Jorge Amado, localizado na parte superior do Largo do Pelourinho, de onde se obtém, precisamente, uma das mais difundidas perspectiva do velho bairro histórico de Salvador da Bahia.
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Casarões junto ao Largo do Pelourinho, Salvador da Bahia | |
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Elevador Lacerda com a baía de Todos os Santos ao fundo, Salvador da Bahia, Brasil | |
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Igreja de São Francisco, Salvador da Bahia | |
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Jogando capoeira | |
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Letreiro de uma Associação de Capoeira de Salvador da Bahia | |
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Trajes tradicionais das mulheres da Bahia | |