Nesta Entrevista:
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"Vida louca vida, vida imensa! Já que eu não posso te levar, quero que você me leve..." Cazuza, morto de AIDS em 1990
"O BoaSaúde entrevista o Dr. Caio Rosenthal, infectologista do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, do Hospital do Servidor Público Estadual e do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas é o hospital de referência no Brasil nas questões da AIDS. Foi o primeiro a atender um paciente de AIDS e é, provavelmente, o que atendeu o maior número deles nestes 15 anos de existência da doença: do primeiro caso, em 1982 até os dias atuais, já passaram por lá 27 mil pacientes. Sendo um hospital público, atende principalmente às classes mais baixas. Já o Albert Einstein é um dos hospitais mais bem aparelhados do país e freqüentado pela elite brasileira, sendo considerado um hospital de luxo, com diárias caríssimas e que conta com a mais alta respeitabilidade pelo seu competente quadro clínico. O Dr. Caio Rosenthal, atendendo nestes dois ambientes, tem em mente o quadro completo da AIDS no Brasil, desde os seus primórdios e em todos os seus aspectos".
BoaSaúde: No início as notícias sobre a AIDS eram alarmistas, denunciavam uma epidemia que causaria a morte de milhões e milhões de pessoas. Qual é a visão atual sobre a AIDS? Trata-se realmente de uma epidemia?
Dr. Caio: A AIDS continua sendo uma epidemia. Na verdade, houve uma discriminação em termos de primeiro mundo e terceiro mundo. No primeiro mundo essa epidemia foi controlada, nos últimos cinco anos. Por exemplo, nos Estados Unidos, não houve elevações anuais, ou seja, nos últimos cinco anos ela está com os mesmos números de casos novos ano a ano, até os últimos cinco anos. Ao contrário no terceiro mundo, e aí leia-se principalmente o Continente Africano abaixo da linha do Saara, e alguns países do Leste Europeu, do Sudeste Asiático e da América Latina e Central, onde a AIDS tende a aumentar ano a ano, caracterizando uma epidemia com conseqüências graves. Nesses países do terceiro mundo, é importante ressaltar o Leste Europeu a União Soviética, os antigos países comunistas, no Sudeste Asiático a Tailndia, a Índia o próprio Vietnã, e na América Central os países do Caribe e na América do Sul, o Brasil. Esses países são discriminados do ponto de vista social, ou seja, a epidemia ocorre avassaladoramente, em função do baixo nível de informação, que em última análise é conseqüência dos baixos níveis sociais, culturais, da impossibilidade dos habitantes poderem usufruir de cuidados médicos mais sofisticados, de atender as informações, e assim por diante. A AIDS virou uma epidemia de países de terceiro mundo. Enquanto que nos países do primeiro mundo, também na Europa Ocidental, ela está sob controle.
BoaSaúde: O Brasil, em muitos aspectos, convive com coisas que são do primeiro mundo, e com coisas que são do terceiro mundo. No caso da AIDS em São Paulo, por exemplo, nós convivemos com hospitais de altíssimo padrão, como é o caso do Albert Einsten, e ao mesmo tempo convivemos com situações bastante graves que poderiam ser equiparadas com situações da África. Onde o senhor situaria a AIDS e São Paulo neste contexto?
Dr. Caio: Queria deixar claro, que esta comparação que você está fazendo, não é só no aspecto saúde, é também no aspecto educação, habitação, etc. O aspecto saúde é uma conseqüência da má distribuição de renda desse país, onde os índices sociais, como educação, habitação, saúde, etc., são relegados a um quinto plano. Mas voltando ao assunto específico da medicina, São Paulo vive também essa contradição que você citou, e isso nós vemos em relação ao segmento de pacientes infectados. Por incrível que pareça, em relação aos pacientes infectados com HIV, também se pode fazer uma nítida discriminação social, aqui no Estado de São Paulo. Nós temos pacientes que pertencem a classes sociais mais altas, têm condições de tomar o remédio perfeitamente, entendem a necessidade do uso dos medicamentos, disciplinadamente, enquanto que as pessoas que moram em baixo da ponte, moradores de rua, de extrema pobreza, extrema miséria, apesar de todos terem acesso gratuito a medicação que é muito cara, nem todos evoluem tão bem, justamente por falta de condições intelectuais para entender a importncia do tratamento e sua complexidade. É muito difícil, por exemplo, você conseguir colocar na cabeça de um morador de rua que ele têm que tomar vinte ou vinte e cinco cápsulas por dia, em horários diferentes com situações de jejuns diferentes e com uma disciplina absolutamente rigorosa.
BoaSaúde: O senhor diria que uma das maiores dificuldades talvez enfrentadas, pelos infectologistas ou pela classe médica, no caso da AIDS, e fazer com que os pacientes adiram ao tratamento. É essa a maior dificuldade do tratamento?
Dr. Caio: Hoje essa é uma das grandes dificuldades, sim. Nós temos dois níveis opostos de classe social que estão fazendo tratamento para HIV, e é obvio que as pessoas que pertencem ao nível social mais elevado, têm uma evolução muito mais favorável em relação às pessoas que não têm essas condições sociais.
BoaSaúde: Isso em relação ao tratamento, agora em relação a evolução de infectados, ela também é diferente, dependendo da classe social?
Dr. Caio: Se o tratamento vai bem ela progride mais rapidamente, se ela não faz o tratamento corretamente, a tendência é evoluir mal, já que todos têm condições de serem tratados, todos recebem o tratamento que é caro, gratuitamente, então por que uns vão bem outros vão mal? Por que uns tomam remédio direito e outros não? Quem não toma são os mais desprivilegiados, esses evoluem mal, então a evolução para a AIDS é mais rápida, ocorre com uma freqüência maior nessa classe social que não faz adesão ao tratamento.
BoaSaúde: E é uma classe social que se infecta mais?
Dr. Caio: Também, é uma classe social que não tem acesso às informações necessárias, não tem condições de fazer uso dos meios preventivos e conseqüentemente se infecta mais. Além do quê, são pessoas que usam mais drogas, de uma forma mais irresponsável.
BoaSaúde: Do ponto de vista da saúde pública, ou seja, da ação do Estado na questão da AIDS, qual é a sua avaliação?
Dr. Caio: Olha o Estado de São Paulo e o Brasil de um modo geral, justiça seja feita nesse sentido, na cobertura aos pacientes com HIV, é uma das melhores do mundo. O Brasil está hoje perfeitamente equipado para atender pacientes graves, para atender portadores de HIV, tanto doentes graves como apenas portadores. O Brasil tem autonomia em termos de fabricação de medicamentos e distribui esses medicamentos gratuitamente, e democraticamente para todos que precisam.
BoaSaúde: É uma contradição. Por que, se ao mesmo tempo a gente convive nessa situação de terceiro mundo?
Dr. Caio: Isso é em função da luta da população mais ativa, mais organizada, mais reinvidicadora, que se reúne e que toma posições.
BoaSaúde: No que toca o Emílio Ribas exatamente, quais são as maiores dificuldades que vocês enfrentam hoje?
Dr. Caio: O Hospital Emílio Ribas está totalmente preparado para absorver a população com HIV. Obviamente que essa população é de baixa renda, de moradores de rua, que não têm condições econômicas. São pessoas que moram em favelas, em barracos. Infelizmente atendemos também pessoas de classe média e alta cujos convênios de saúde não cobrem AIDS. Os convênios, os planos de saúde, não têm dado apoio às doenças infecciosas, não as cobrem em seus planos. Eles acabam usufruindo dessa falha, e os pacientes acabam procurando os hospitais públicos, mesmo tendo direito aos seus planos de saúde. O Hospital acaba acobertando essa desonestidade dos planos de saúde e mantendo-os impunes. O Estado tem que arcar com pessoas que pagam os seus planos de saúde, os planos de saúde recebem as mensalidades, usufruem, lucram excessivamente, isso está na mídia o tempo inteiro. O lucro dos planos de saúde é exorbitante, mas na hora que os pacientes necessitam de maior ajuda, eles são empurrados para os Hospitais públicos.
BoaSaúde: Do seu ponto de vista, o que faz do Emílio Ribas uma referência em termos de AIDS? O que há de diferente aqui?
Dr. Caio: O Emílio Ribas há muitos anos é referência sempre que há doenças epidêmicas, infecciosas no Estado de São Paulo. Basta lembrar o início dos anos 70, na epidemia de meningite. O Hospital Emílio Ribas rapidamente se tornou referência no Estado inteiro, e porque não dizer, no Brasil inteiro também. Sempre que houve epidemias no Estado de São Paulo, o Emílio Ribas é montado para ser referência dessa epidemia. E isso aconteceu também com a AIDS. O Hospital tem capacidade para absorver todos os pacientes que tem HIV ou AIDS no Estado de São Paulo e que não tem planos de saúde ou assistência médica privada.
BoaSaúde: Na sua opinião a tendência é chegarmos realmente a uma cura?
Dr. Caio: Não. Infelizmente não é a curto e a médio prazo que haverá uma cura. Há uma tendência de controlar a doença através de medicamentos, cada vez mais sofisticados, cada vez mais eficazes, com menos efeitos colaterais, e com mais facilidades de ingestão de tomar os remédios. Mas para a cura propriamente dita, ainda é necessário desvendar uma série de mistérios que envolvem o HIV. A impossibilidade de cura é uma das maiores preocupações da ciência hoje em dia. O paciente de AIDS hoje, uma vez feito o diagnóstico, inicia o seu tratamento e é orientado para tomar esse medicamento até o final da vida, quantos anos, ninguém sabe. Ainda não tem anos suficientes para dizer se esse ou aquele paciente vai viver mais dez anos ou mais quinze, ou mais trinta anos, isso ninguém sabe. É uma doença nova, os medicamentos são novos, o coquetel tem quatro anos de vida se tanto, então ainda não dá para fazer projeções a longo prazo.
BoaSaúde: Como lidar com essa esperança da cura junto às famílias e aos doentes de HIV?
Dr. Caio: Em função dos progressos que foram alcançados, o paciente hoje já percebe que não vai morrer, e essa é a obrigação que o médico tem que passar para ele. O paciente sabe que vai tomar remédios por longos anos, longos períodos da sua vida, mas ele pode ter certeza que se ele tomar o remédio adequadamente, corretamente, e disciplinadamente, ele não vai morrer, ele vai manter a doença sob controle. Hoje os pacientes tem tido mais doenças em função dos efeitos colaterais dos medicamentos, do que da própria doença.
BoaSaúde: A imprensa muito comumente acaba divulgando a cura da AIDS, tivemos uma capa da principal revista do País, nesse sentido, alguns meses atrás. Isso pode levar a população a descuidar-se da prevenção?
Dr. Caio: Isso é uma faca de dois gumes. Na verdade é uma notícia sensacionalista, sem nenhum fundo de verdade. Nunca se cogitou em cura, mas apenas em prolongamento com qualidade de vida. Em relação a essas notícias, eu sou contra. Principalmente por isso que você falou, uma falsa margem de segurança para as pessoas que mantém comportamentos de risco. Isso é uma informação ilusória. De certa forma, pode até estimular a manutenção desses comportamentos de risco, sabendo que amanhã ou depois tem cura, ou que já tem cura, como diz a notícia. A pessoa deixa de tomar os cuidados necessários e a epidemia corre solta.
BoaSaúde: Como é a qualidade de sobrevida dos infectados pelo HIV, e que ainda não desenvolveram a AIDS como doença?
Dr. Caio: Hoje os medicamentos ainda mantêm efeitos colaterais importantes. A medicina ainda não sabe manipulá-los. Existem tendências a descontrole de diabetes, ou até a indução de diabetes, alterações graves no metabolismo lipídico com elevação de colesterol, de triglicérides, alterações no funcionamento do pncreas, do fígado. Existem algumas neuropatias, miopatias, que são alterações nos nervos periféricos e nas massas musculares, emagrecimentos disformes com perda de massa muscular. Tudo isso é provocado pelos efeitos colaterais de medicamentos. Tenta-se uma melhora de qualidade de vida sem tantos efeitos colaterais dos medicamentos, porém, os efeitos colaterais dos remédios hoje são os efeitos mais graves, na medida em que se consegue controlar o HIV a níveis indetectáveis no sangue periférico.
BoaSaúde: O próprio coquetel foi alardeado como o último grande avanço em relação a AIDS. É de fato o último grande avanço? O que tem de novo? Qual será o próximo passo?
Dr. Caio: É nesse sentido que a medicina está investindo: drogas novas. Dizem que a cura está mais longínqua, então as pesquisas estão mais voltadas para as drogas com menos efeitos colaterais, e mais potentes, mais sofisticadas. Os coquetéis continuam mantendo os efeitos colaterais graves, e a busca de novos medicamentos está sendo desenfreada. Laboratórios e indústrias farmacêuticas tem todo o interesse em desenvolver medicamentos cada vez mais purificados, no sentido de evitar efeitos colaterais graves. Procurar medicamentos que não atuam apenas até onde hoje os medicamentos atuam no ciclo da replicação do vírus, em nível de enzimas. Hoje existe uma pesquisa desenfreada em busca da impossibilidade do vírus penetrar dentro da célula alvo, através de medicação, por exemplo, ou então de medicamentos que atuam no próprio genoma da célula, ou medicamentos que dêem condições para melhorar a performance imunológica do indivíduo, e assim por diante, e não apenas aqueles tradicionais dois inibidores de enzimas.
BoaSaúde: Com o projeto Genoma, com todas essas descobertas de anos de estudos, pesquisas em cima do Código Genético Humano, que benefícios surgem para o tratamento da AIDS?
Dr. Caio: O HIV é um vírus muito sofisticado, tem uma capacidade de mutação muito grande, resiste às adversidades do meio onde ele se multiplica, através da condição de conseguir formar mutantes virais muito rapidamente, numa freqüência muito grande, e isso vai driblando a medicina, ou seja, na medida em que você consegue fabricar uma estratégia de luta contra esse vírus, ele se maquia para enganar esse tratamento. Isso prejudica não apenas o tratamento, como também a fabricação de uma vacina contra ele.
BoaSaúde: Não temos uma perspectiva de curto prazo em relação a cura daqueles que já foram infectados, mas que expectativa nós temos em relação a produção de uma vacina? Será possível, por exemplo, com o projeto Genoma, criarmos um ser humano resistente ao vírus?
Dr. Caio: Infelizmente a saída não vai ser a vacina em moldes tradicionais. O que se preconiza provavelmente é uma vacina estimuladora do sistema imunológico da pessoa, não necessariamente a formação de anticorpo contra o vírus, mas sim de melhorar a performance imunológica para o combate ao vírus, justamente porque o vírus é muito sabido, ele consegue se disfarçar contra o alvo em questão. É importante acrescentar a parte da prevenção: prevenção funciona, é muito importante! Só através da prevenção se vai conseguir controlar universalmente essa epidemia, como já está sendo mais do que provado em outros países, e mesmo em países de terceiro mundo, em bolsões onde houve possibilidade de fazer um estudo epidemiológico. Através de prevenção, foi detectada realmente uma diminuição importante de ocorrência de novos casos de infecção pelo HIV. É sempre importante você ressaltar a importncia da prevenção.
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