Outro dia escrevi um artigo sobre o
amor. Depois, escrevi outro sobre sexo. Os dois artigos mexeram com a
cabeça de pessoas que encontro na rua e que me agarram, dizendo:
"Mas... afinal, o que é o amor?" E esperam, de olho muito aberto, uma
resposta "profunda". Sei apenas que há um amor mais comum, do
dia-a-dia, que é nosso velho conhecido, um amor datado, um amor que
muda com as décadas, o amor prático que rege o "eu te amo" ou "não te
amo". Eu, branco, classe média, brasileiro, já vi esse amor mudar
muito. Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era um desejo
romntico, um sonho político, contra o sistema, amor da liberdade, a
busca de um "desregramento dos sentidos". Depois, nos anos 80/90 foi
ficando um amor de consumo, um amor de mercado, uma progressiva
apropriação indébita do "outro". O ritmo do tempo acelerou o amor, o
dinheiro contabilizou o amor, matando seu mistério impalpável. Hoje,
temos controle, sabemos por que "amamos", temos medo de nos perder no
amor e fracassar na produção. A cultura americana está criando um
"desencantamento" insuportável na vida social. O amor é a recusa desse
desencanto. O amor quer o encantamento que os bichos têm, naturalmente.
Por isso, permitam-me hoje ser um falso "profundo" (tratar só de
política me mata...) e falar de outro amor, mais metafísico, mais
seminal, que transcende as décadas, as modas. Esse amor é como uma
demanda da natureza ou, melhor, do nosso exílio da natureza. É um amor
quase como um órgão físico que foi perdido. Como escreveu o Ferreira
Gullar outro dia, num genial poema publicado sobre a cor azul, que
explica indiretamente o que tento falar: o amor é algo "feito um
lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/
de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como
um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo como carrego meus
cabelos ou uma lesão oculta onde ninguém sabe". Pois, senhores, esse
amor existe dentro de nós como uma fome quase que "celular". Não nasce
nem morre das "condições históricas" é um amor que está entranhado no
DNA, no fundo da matéria. É uma pulsão inevitável, quase uma "lesão
oculta" dos seres expulsos da natureza. Nós somos o único bicho "de
fora", estrangeiro. Os bichos têm esse amor, mas nem sabem. (Estou
sendo "filosófico", mas... tudo bem... não perguntaram?) Esse amor bate
em nós como os frêmitos primordiais das células do corpo e como as
fusões nucleares das galáxias esse amor cria em nós a sensação do Ser,
que só é perceptível nos breves instantes em que entramos em compasso
com o universo. Nosso amor é uma reprodução ampliada da cópula entre o
espermatozóide e óvulo se interpenetrando. Por obra do amor, saímos do
ventre e queremos voltar, queremos uma "reintegração de posse" de nossa
origem celular, indo até a dança primitiva das moléculas. Somos grandes
células que querem se re-unir, separados pelo sexo, que as dividiu.
("Sexo" vem de "secare" em latim: separar, cortar.) O amor cria
momentos em que temos a sensação de que a "máquina do mundo" ou a
máquina da vida se explica, em que tudo parece parar num arrepio, como
uma lembrança remota. Como disse Artaud, o louco, sobre a arte (ou o
amor) : "A arte não é a imitação da vida. A vida é que é a imitação de
algo transcendental com que a arte nos põe em contato." E a arte não é
a linguagem do amor? E não falo aqui dos grandes momentos de paixão,
dos grandes orgasmos, dos grande beijos - eles podem ser enganosos.
Falo de brevíssimos instantes de felicidade sem motivo, de um mistério
que subitamente parece revelado. Há, nesse amor, uma clara geometria
entre o sentimento e a paisagem, como na poesia de Francis Ponge,
quando o cabelo da amada se liga aos pinheiros da floresta ou quando o
seu brilho ruivo se une com o sol entre os ramos das árvores ou entre
as tranças da mulher amada e tudo parece decifrado. Mas, não se decifra
nunca, como a poesia. Como disse alguém: a poesia é um desejo de
retorno a uma língua primitiva. O amor também. Melhor dizendo: o amor é
essa tentativa de atingir o impossível, se bem que o "impossível" é
indesejado hoje em dia só queremos o controlado, o lógico. O amor anda
transgênico, geneticamente modificado, fast love. Escrevi outro dia que
"o amor vive da incompletude e esse vazio justifica a poesia da
entrega. Ser impossível é sua grande beleza. Claro que o amor é também
feito de egoísmos, de narcisismos mas, ainda assim, ele busca uma
grandeza - mesmo no crime de amor há um terrível sonho de plenitude.
Amar exige coragem e hoje somos todos covardes". Mas, o fundo e
inexplicável amor acontece quando você "cessa", por brevíssimos
instantes. A possessividade cessa e, por segundos, ela fica compassiva.
Deixamos o amado ser o que é e o outro é contemplado em sua total
solidão. Vemos um gesto frágil, um cabelo molhado, um rosto dormindo, e
isso desperta em nós uma espécie de "compaixão" pelo nosso desamparo.
Esperamos do amor essa sensação de eternidade. Queremos nos enganar e
achar que haverá juventude para sempre, queremos que haja sentido para
a vida, que o mistério da "falha" humana se revele, queremos esquecer,
melhor, queremos "não-saber" que vamos morrer, como só os animais não
sabem. O amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Como os
relmpagos, o amor nos liga entre a Terra e o céu. Mas, como souberam
os grandes poetas como Cabral e Donne, a plenitude do amor não nos faz
virar "anjos", não. O amor não é da ordem do céu, do espírito. O amor é
uma demanda da terra, é o profundo desejo de vivermos sem linguagem,
sem fala, como os animais em sua paz absoluta. Queremos atingir esse
"absoluto", que está na calma felicidade dos animais.
Arnaldo Jabor
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