Aos 75 anos, Sophia Loren parece ter chegado finalmente ao auge. O patamar dela, agora, tem vizinhança com o do Olimpo. Não é novidade. Sempre foi assim, pelo menos a partir dos 15 anos, quando foi descoberta num concurso de beleza. Apareceu-lhe logo um marido, casado, que tratou do divórcio apesar dos protestos do Vaticano. Um escndalo, é verdade, mas só para quem tinha levado vida fácil, o que não era o seu caso. Quando se passa uma infncia a fugir dos bombardeamentos aliados, as dificuldades da vida ganham logo perspectiva. O nome dele era Carlo Ponti, o único marido que sempre teve, 31 anos mais velho do que ela. "Foi ele que tratou da minha carreira, quem me fez o que sou, quem fez de mim uma mulher e uma boa pessoa", diz. Sendo a primeira actriz a ganhar um óscar num filme que não era de língua inglesa, Sophia Loren teve muitos momentos de ouro e trabalhou com vários realizadores e actores da história clássica do cinema. Por vezes é embaixadora da ONU. Por vezes regressa ao cinema, como agora, a fazer de mãe de Daniel Day Lewis, no musical "Nine". Encontro-a para a entrevista no Waldorf Astoria de Nova Iorque como uma serpente encantada.
Signora, nem sequer sei como cumprimentá-la. Ou o que dizer. Acho que é a primeira vez que me vejo na presença de um ícone... Tente. Há sempre uma vez que tem de ser a primeira.
Comecemos, então, pela cena em que está sentada naquele Alfa Romeo com o Daniel Day Lewis. Que boa maneira de lembrar os filmes de Fellini e muitos outros feitos nos anos 60. Diga-me: sentiu saudades desse tempo? Não, porque sentar-me num Alfa Romeo era uma coisa que eu fazia todos os dias. Geralmente não sinto que um carro esteja ligado à ideia de romance. Nem mesmo aquele. Afinal de contas, quanto é que custava? Quase nada.
De todos os actores com quem trabalhou, de qual sente mais falta? Por favor, não me ponha numa situação desconfortável.
Já sei: Marcelo Mastroianni! Bravo! Sim. Foi com ele que fiz uma grande parte da minha carreira. Acho que foram 14 filmes em 20 anos. Tenho muitas saudades dele.
Comparando-o com Daniel Day Lewis, que lhe ocorre dizer? Não. Impossível. O Marcelo era italiano e o Daniel é inglês. Muito inglês. Não são duas realidades que se possam comparar. São ambos grandes actores. São ambos seres humanos maravilhosos. Mas as raízes são diferentes e isso conta sempre muito.
Qual é a maior diferença entre os filmes feitos antes e aqueles que se fazem agora? As histórias são um bocadinho diferentes. Hoje são sobre assuntos que, com frequência, não me interessam. Os filmes que se fazem hoje não são, para dizer a verdade, grandes filmes, Alguns sim, mas é raro. E isso deixa-me tristíssima.
Continua cheia de vida! Como é que se mantém menininha? Acho que basta uma pessoa pensar de maneira jovem. Gozar a vida. Aproveitar os bons momentos passados com a família. Provar as coisas que o mundo nos dá. É importante olhar para o lado bom dos dias, o que, no meu caso, tem sido fácil porque a minha vida tem sido tão bonita. Tive da vida coisas que nunca pensei que estivessem ao meu alcance. Tenho imensa inveja de mim mesma.
Ouvi dizer que, durante as filmagens, se deu muito bem com Penélope Cruz. Mas deve ter passado muito tempo com as outras actrizes. Aposto que tinha com elas uma relação maternal. Não lhe vou contar os segredos que trocámos, a Penélope e eu. Mas não é verdade que tivesse tentado proteger as outras actrizes. Até porque elas nunca comem nada. Quando se sentam a uma mesa começam logo todas a dizer 'isto é muito bom', 'aquilo é delicioso', mas, depois, dão apenas uma trincadelazinha. As actrizes de hoje parecem determinadas a morrer à fome. Dava-me uma fúria... Portanto, não. Não me punha a dar conselhos porque andava perturbadíssima. Elas nunca comiam nada. Nunca! Nada! Eu era a única que comia alguma coisa que se visse.
Continua a ser importante chamar a si o papel de mãe? Antes de mais nada sou mulher. E também sou mãe. Cem por cento. É um papel que me enche de orgulho.
Durante muito tempo teve tudo ao seu dispor. Veio para Hollywood, fez parte do studio system, trabalhou com realizadores conceituados... Não sei se consigo ver as coisas assim. A única coisa que sei foi que dei sempre ouvidos às minhas paixões. Temos de ser capazes de ver o percurso à nossa frente e, quando isso acontece, passa a ser esse o nosso caminho. Não sei se as actrizes de hoje são capazes de ver o caminho à frente delas. Será mesmo verdade que uma actriz, hoje, quer mesmo transformar-se numa artista respeitável? É mesmo verdade que dispõem de talento considerável? Talvez sim, talvez não...
No seu caso: seguiu o caminho? Absolutamente. Por uma razão muito simples: vir para Hollywood, ao tempo, era uma espécie de erro para uma actriz italiana. Mas foi em Hollywood que aprendi a falar inglês e a contracenar com os maiores actores da época. Tinha 23 anos quando vim para a América e isso, só por si, foi uma escola tremenda. Se fosse hoje, faria as coisas da mesmíssima maneira. Trabalhei com o Frank Sinatra, Marlon Brando, Gary Cooper, Clark Gable, William Holden e muitos, muitos mais. Um autêntico exército de actores belíssimos. Naquele tempo a comunidade artística era exactamente como se imagina. Naquele tempo os actores tinham grandes caras.
Concordou que atribuíssem a Barack Obama o prémio Nobel da Paz? Concordo que atribuam a Obama todos os prémios. Adoro-o. Mas adoro-o mesmo. Gostava de o conhecer, um dia. É um grande homem e uma grande pessoa.
De todas as provações que teve de suplantar ao longo da vida, qual foi a mais difícil? O início. Qualquer começo apresenta dificuldades que parecem intransponíveis. Mas tive sempre a minha mãe do meu lado. Foi ela quem me ajudou a encontrar forças para enfrentar as situações mais decepcionantes, negativas, as que me punham mesmo furiosa.
Agora que já obteve tudo na vida, que lhe apetece fazer? Ninguém obtém tudo na vida. Há sempre qualquer coisa que queremos atingir. No meu caso, ainda estou a pensar naquilo que vou ser quando for maior.
(Texto original publicado na Revista Única da edição do Expresso de 23 de Janeiro de 2010)