Por uma arqueologia de Canudos e dos brasileiros iletrados*
Paulo Eduardo Zanettini
* A comunidade científica baiana tomou conhecimento, recentemente, através da mídia, do lançamento da obra Arqueologia Histórica de Canudos, editada pelo Centro de Estudos Euclides da Cunha, Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Julgo, antes de mais nada, como um dos co-autores, fundamental contextualizar tal obra, embora já o tenha feito na introdução da mesma, haja vista o hiato temporal existente desde sua produção até a sua publicação. Também, move-nos, ainda, apesar de passados quase dez anos, a crença de que a releitura do fenômeno da gênese e destruição da comunidade de Canudos no sertão da Bahia não se efetivará de forma plena sem o olhar da arqueologia. Porém, uma arqueologia muito distinta e muito mais saudosa do que aquela ora apresentada.
Há dez anos do centenário de Canudos, era gestado, no seio da Universidade do Estado da Bahia, um dos mais ambiciosos projetos de resgate da memória regional. Duas dezenas de pesquisadores dedicavam-se aos mapeamentos dos mais variados suportes documentais: fontes orais, escritas, iconográficas, enquanto arqueólogos, geólogos e antropólogos voltavam seus olhares rumo ao Parque Estadual de Canudos (PEC), recém-criado, às margens do Rio Vaza-Barris.
A região, selecionada por meio de decreto do governo estadual, abrigava, na época, vestígios de toda sorte associados aos conflitos bélicos: fragmentos de louças, vidros, elementos metálicos (projéteis, cápsulas, pentes, cantis), estruturas de dimensões variadas (tocas, trincheiras), áreas de sepultamento. As condições geológicas locais nos legavam um grande sítio arqueológico de superfície, correspondente aos vestígios dos dois últimos grandes confrontos bélicos ocorridos entre canudenses e as forças legais, enfim, um complexo quebra-cabeça que exigia uma leitura sistemática.
Obviamente, o objetivo primordial da equipe era o registro e o mapeamento de tais ocorrências, de modo a se obter um quadro referencial inicial do campo de batalha com relação a ambas as facções envolvidas. Desse modo, foram criadas coleções de referência, desenvolvidas tipologias das áreas de concentração de vestígios, de modo a se entender, não apenas qual parcela dos objetos e estruturas estava relacionada à ocupação militar, mas também, aqueles oriundos das ações promovidas pelos próprios jagunços.
à medida que os levantamentos progrediam, dava-se conta de que a área oferecia também um primeiro aproach para a compreensão de outros fenômenos, outras paisagens e épocas de ocupação dessa região do semi-árido baiano.
Canudos: um oásis multimilenar
Em uma determinada área do Parque, foram evidenciados vestígios fósseis de uma espécie de conífera. Alguns exemplares servem de testemunho cabal da ocorrência de vetustas florestas às margens do Vaza-Barris (troncos fossilizados chegam a ter mais de dois metros de dimetro e doze metros de altura). Em cacimbas ancestrais reescavadas, os moradores resgatavam fragmentos de grandes mamíferos extintos e praticamente espalhados por toda área, utensílios e dejetos, indicando intenso trabalho em pedra (ponta de flecha, raspadores, perfuradores, etc), comprovando a passagem de populações ainda desconhecidas, mostrando, mais uma vez, as facilidades oferecidas pela região, num amplo espectro temporal, com relação à atividade humana. Não muito distante do Parque, inscrições rupestres indicavam outras formas de ocupação humana ao longo do tempo na região.
Por sua vez, a realização de um cadastro global das estruturas habitacionais do PEC conduziu à identificação de "sedes de fazenda" contemporneas, e, quiçá, anteriores à instalação de Belo Monte, em 1893. Enfim, a sobreposição de vestígios indicava a região como extremamente favorável à ocupação humana numa larga faixa de tempo, o que a tornava merecedora de uma investigação minuciosa e rica.
Não é de se estranhar que, após pervagar durante anos por uma extensa porção de terra, Antônio Conselheiro tenha decidido se instalar com sua gente naquela região. Também nos parece bastante lógico que estudos tenham determinado, há algumas décadas, a instalação, exatamente naquela posição do Vaza-Barris, do gigantesco açude de Cocorobó, local de maior probabilidade de captação de água em toda a extensão desse rio.
Por outro lado, instigava-nos, cada vez mais, a hipótese de mergulhar a fundo em aspectos da dinmica e do cotidiano e, sobretudo, da sabedoria canudense, nessa civilização do couro, nessa experiência brasileira dos conselheiristas, talhada sob as condicionantes ambientais da caatinga.
Para tal, começávamos a identificar elementos do sistema defensivo de Canudos, expresso inicialmente em inumeráveis linhas de trincheiras e tocas, tomadas com muita dificuldade pelo Exército brasileiro. Ali, estava expressa a vontade de defender, a qualquer custo, aquele ideal de civilização cabocla. Para a equipe, essas trincheiras tinham de ganhar voz e recontar, à moda sertaneja, uma história sepultada sob as águas do Vaza-Barris. Nos hospitais de sangue e sepulturas, outros tantos brasileiros poderiam erguer-se de suas covas rasas e valas comuns para narrar, por meio de minuciosas e detalhistas medidas antropométricas, as condições da vida e do cotidiano nos acampamentos — o soldado comum e o praça que foram totalmente relegados ao esquecimento. Curiosamente, a única exumação realizada no interior do Parque nos mostrou a presença da mulher no campo de batalha. Perguntamo-nos, então, onde estão as mulheres nessa história reescrita por homens e que papel desempenharam em ambas as facções do conflito. Muito se fala de Pedrão, dos irmãos Vilanova, de Beatinho e quase nada das mulheres beatas, mães, irmãs e jovens que presenciaram o calor do combate naquele pedregoso deserto. Basta olhar para a mais forte das fotos dos sobreviventes de Canudos, registrada pela cmera de Flávio de Barros, para se perceber que andamos do lado de fora da história.
Por falar em deserto, também lançávamos mão de algumas outras ciências para avaliar o estresse ecológico derivado da grande concentração de gente ao redor de Canudos. Possivelmente, muito menos gente do que a história escolheu consagrar, pelos mais diversos motivos, através da duvidosa fórmula militar de contagem das casas destruídas do arraial conselheirista. Dificilmente, Canudos chegou a conhecer uma população de 25 mil habitantes. Curiosamente, a equipe do cineasta Sérgio Resende realizou as filmagens de seu filme sobre a Guerra de Canudos às margens do Rio São Francisco, longe de Canudos, devido à total inexistência de infra-estrutura capaz de manter a imensa equipe e as figurações que o acompanharam durante o trabalho.
Devolvendo a voz aos canudenses
Concluída a etapa de reconhecimento arqueológico do Parque, preparávamo-nos para desenvolver a pesquisa em outras áreas. Simultaneamente, crescia a consciência de que o entendimento de Canudos exigia uma abordagem de caráter regional, dilatando vertiginosamente nossa tarefa.
O exame atento das fotografias tiradas por Flávio de Barros —as mesmas que mostram a terrível visão da destruição — também nos revela uma cidade preparada para o combate, mesmo em condições de penúria. Em oposição, o Exército viveu duramente durante meses, largado à míngua, vindo conhecer seus últimos estertores, transformando seus cantis em raladores, restos de garrafas de cachaça em descortiçadores, quase num retorno à pré-história, extraindo da terra algo para garantir a sua sobrevivência.
Dia após dia, víamos nossas idéias — aplicadas em cortes e mapas — fazerem ressurgir uma Canudos cada vez mais dilatada e extensa. Em oposição à Tróia de barro e palha euclidiana e sua elipse de muralhas naturais, começávamos a articular as partes de um imenso sistema que via seus limites confundirem-se aos próprios limites da bacia hidrográfica do Vaza-Barris. Para entender Canudos, teríamos de colher informações na Várzea da Ema, para saber se de fato era de lá que vinham os suprimentos protéicos, para além da Serra Vermelha, na região da Toca de Pedra. Poderiam ter se aplicado os canudenses em suas roças de mandioca que nutriam, ao longo de quase um ano, a munição de boca em Belo Monte? E a pólvora era fabricada em Canudos? Trazida do São Francisco? Ou garantida dessas duas formas?
A capacidade defensiva do arraial, expressa também nas inúmeras tocas e linhas de trincheiras implantadas nas meias encostas e topos de colinas, ia expondo velozmente uma concepção geo-estratégica refinada, capaz de sustentar ativos e eficientes sistemas de comunicação que mantinham o "quartel general" permanentemente informado em relação aos avanços das tropas legalistas. Canudos começava a ressurgir como um projeto de vida comunitária mais ambicioso, para além de um viés milenarista, para além do campo da "rebeldia primitiva ‘hobsbawniana’", tangível à medida que nos debruçávamos sobre a terra e a cultura material sertaneja.
Porém, condicionantes, na época, levaram a uma brusca interrupção do projeto, afastando as possibilidades de continuidade, sobretudo da manutenção da equipe no campo, restando-nos fazer as malas e retornar a Salvador, redigindo os relatórios pertinentes, sendo-lhes conferidos, após, o triste local das prateleiras e o esquecimento.
Dez anos depois, às vésperas do centenário, os ventos passaram a soprar novamente em direção às águas do açude de Cocorobó. O Parque Estadual de Canudos saiu do papel e começou a ganhar o seu contorno, preparando-se para receber gente de todos os cantos do planeta. E precisava estar corretamente concebido. Durante quase uma década, a região recebeu uma visitação desordenada por parte dos curiosos e depredadores, sem qualquer consciência da dimensão cultural daquele sítio histórico. Os vestígios, em sua grande maioria superficiais, como já foi dito anteriormente, são extremamente fugazes e vêm sendo sistematicamente colocados e destruídos por profanadores daquele santuário. E não se trata de proselitismo, tampouco de reserva de mercado!
A própria tentativa de releitura do fenômeno dentro de uma perspectiva "politicamente correta" acabou promovendo, desde 1893 — data de instalação do Conselheiro em Canudos — romarias e eventos com efeitos também danosos e muitas vezes irreversíveis, como pudemos constatar recentemente, em áreas de grande fragilidade como os sítios funerários, onde combatentes e, quiçá, canudenses foram revirados e arrancados de seu último leito no Vale da Morte.
Torna-se necessário deixar expressa nossa preocupação, pois há dez anos, conhecemos outra história. Que efetivas medidas sejam, dessa vez, tomadas, sem interrupções, mesmo após as comemorações do centenário, pois, em breve, o Brasil irá ver o filme, ler o livro, a novela "global" e irá despertar para esse Brasil desconhecido. Cabe às instituições políticas, culturais e à própria sociedade civil baiana assumir a responsabilidade pela preservação desse imenso museu ao ar livre, que é, na verdade, patrimônio nacional e, como tal, merece permanecer como legado para as novas gerações de brasileiros que estão por nascer.
Pode a Arqueologia de fato contribuir para a releitura de Canudos?
Os objetos, vistos como uma espécie de resíduo básico das relações sociais, como suportes destas, analisados dentro de uma perspectiva relacional, são capazes de falar sobre diversos aspectos e instncias das relações humanas, ao longo do tempo, de forma cabal, e, quiçá, são capazes de fornecer elementos para rescrevermos a nossa própria história.
A Arqueologia, livre de seus fundamentos positivistas, está no "ponto de fruta madura" para oferecer inovadoras e instigantes abordagens do passado do homem brasileiro, como, por exemplo, vêm fazendo Arno A. Kern, na região das missões jesuíticas no Sul; Tnia Andrade Lima, nas fazendas do Vale do Paraíba e cemitérios cariocas; Margarida D. Andreatta, nas casas dos bandeirantes paulistas; Pedro Funari e Charles Orser Júnior, no coração de Palmares; Carlos Magno, em quilombos mineiros; e tantos outros arqueólogos, em solo brasileiro e no exterior. O fundamental é promover o intercmbio entre as disciplinas. Do diálogo entre a Arqueologia, a Antropologia, a História, a Geografia, a Sociologia e as demais disciplinas certamente será possível estabelecer uma abordagem mais concreta do fenômeno humano, e, sem dúvida, daquele imenso sertão iletrado.
Uma abordagem arqueológica de Canudos ainda está por nascer. Pena que os primeiros passos, nesse sentido dados há dez anos, tenham sido tolhidos. Éramos jovens, audaciosos, pretensiosos, porém, estávamos caminhando no rumo em direção à caatinga.
Paulo Eduardo Zanettini é bolsista pela CAPES, pós-graduado em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia da Universidade de São Paulo. Foi coordenador do Setor de Arqueologia Histórica da Cidade de São Paulo e do Projeto de Arqueologia Histórica de Canudos (CEEC/UNEB).
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