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Felicidade e Alegria
Não
creio que se possa definir o homem como um animal cuja característica ou cujo
último fim seja o de viver feliz, embora considere que nele seja essencial o
viver alegre. O que é próprio do homem na sua forma mais alta é superar o
conceito de felicidade, tornar-se como que indiferente a ser ou não ser feliz e
ver até o que pode vir do obstáculo exactamente como melhor meio para que possa
desferir voo. Creio que a mais perfeita das combinações seria a do homem que,
visto por todos, inclusive por si próprio, como infeliz, conseguisse fazer de
sua infelicidade um motivo daquela alegria que se não quebra, daquela alegria
serena que o leva a interessar-se por tudo quanto existe, a amar todos os homens
apesar do que possa combater, e é mais difícil amar no combate que na paz, e
sobretudo conservar perante o que vem de Deus a atitude de obediência ou melhor,
de disponibilidade, de quem finalmente entendeu as estruturas da vida.
Os
felizes passam na vida como viajantes de trem que levassem toda a viagem
dormindo; só gozam o trajecto os que se mantêm bem despertos para entender as
duas coisas fundamentais do mundo: a implacabilidade, a cegueira, a
inflexibilidade das leis mecnicas, que são bem as representantes do Fado, e
cuja grandeza verdadeira só se pode sentir bem no desastre; é quando a
catástrofe chega que a fatalidade se mede em tudo o que tem de divino, e foi
pena que não fosse esta a lição essencial que tivéssemos tirado da tragédia
grega; como pena foi que só tivéssemos olhado o fatalismo dos árabes pelo seu
lado superficial. Por outra parte, é igualmente na desgraça que se mede a
outra grande força do mundo, a da liberdade do espírito, que permite julgar o
valor moral no desastre e permite superar, pelo seu aproveitamento, o toque do
fatal; não creio que Prometeu estivesse alguma vez verdadeiramente encadeado:
talvez o estivesse antes ou depois da prisão; mas era realmente um espírito de
liberdade e um portador de liberdade o que, agrilhoado a montanha, se sentiu
mais livre ainda; porque podia consentir ou não no desastre, superá-lo ou não,
ser alegre ou não. E este ser alegre não significa de modo algum a alegria
daquele tipo americano de «Quebre uma perna e ria»; acho que eram muito mais
alegres as pragas dos velhos soldados de Napoleão. No fundo é o seguinte: é
necessário, ajudando a realizar o homem no que tem de melhor, que a mesma
energia que se revelou pela física no mundo da extensão, se revele pelo espírito
no mundo do pensamento e domine a primeira vaga de energia, como onda rolando
sobre onda mais alto vai. E mais ainda: que pelo momento de infelicidade, o que
não poderá nunca suceder no caso da felicidade, entenda o homem como as duas
espécies ou os dois aspectos de energia se reúnem em Deus. Só por costume social
deveremos desejar a alguém que seja feliz; às vezes por aquela piedade da
fraqueza que leva a tomar crianças ao colo; só se deve desejar a alguém que se
cumpra: e o cumprir-se inclui a desgraça e a sua superação.
Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios
Filosóficos'
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