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CONTOS: MADALENA - António Espadinha
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De: misabelantunes1  (Mensaje original) Enviado: 27/09/2007 20:14
M A D A L E N A

Hoje vou ficar acordado para recordar-te. Enquanto me aqueço à lareira, escuto lá fora o vento que, nesta noite fria de Inverno, sacode as árvores e assobia nos fios eléctricos em frente da minha janela. Ligo o sistema de som. Maria João Pires arranca do piano as notas de beleza incomparável de uma sonata de Beethoven. Então, qual sortilégio, tu visitas-me a memória. No outro lado do tempo, por entre as flores vermelhas das acácias e a cintilação do Cruzeiro do Sul, tombado sobre o horizonte, revejo-te na noite cálida e evanescente de África.
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Anos depois do meu regresso da vida militar estou numa estação dos caminhos de ferro onde aguardo o combóio. Era uma tarde de Primavera de céu azul e muita luz, com o ar quente a antecipar o Verão que já se adivinhava. Ao longo do cais, bonitas flores desabrochavam em canteiros geométricos e cuidados. Diversos passageiros esperavam “o rápido”. De entre eles descubro um homem que me olha insistentemente. Julgando que me tivesse confundido com alguém conhecido, não me preocupo com a sua curiosidade. Mas o homem percorre a estação, andando para lá e para cá, e, a cada passagem, mais me observa. Até que, inesperadamente, se me dirige e pergunta se não o conheço. Ante a minha hesitação, tira os óculos escuros e identifica-se:
- Eu era o sargento L… e estive com o senhor em Moçambique.
Reconheço-o de imediato pela voz e postura.
- Voc챗 era o sargento do S.P.
- E o senhor, o alferes Espadinha.
Cumprimentamo-nos então mais familiarmente e a conversa incide, necessariamente, sobre o serviço militar em África. Enquanto aguardamos o combóio, recordamos pessoas e episódios desse tempo vivido em comum.
Subitamente, o meu interlocutor reaviva-me a memória:
- Lembra-se de uma ”preta” que foi ao quartel queixar-se de mim, num dia em que o senhor estava de serviço?
- Perfeitamente – respondi. Essa é umas das “histórias” que eu nunca poderia esquecer.
- Sabe porque ela foi, mais tarde, retirar a queixa? – porque eu fui procurá-la e dei-lhe fartura de porrada para a obrigar a fazer isso.
Fico siderado. Muitos anos depois, aquele homem despertava-me um inesperado sentimento de frustração e de raiva. Com a mão na algibeira, fecho o punho e sinto uma vontade irreprimível de lhe desferir um soco. Devo tê-lo olhado com uma estranha frieza. Felizmente o combóio acaba de entrar na estação. Rapidamente embarco e escolho um lugar isolado junto à janela. A potente locomotiva arranca, arrastando as carruagens para uma viagem de duas horas até Lisboa. Procuro distrair-me com a paisagem, mas, não, não é possível. Enquanto viajo, reconstituo o episódio de que apenas hoje conheci a crua verdade e singular desfecho.
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A calma e o silêncio daquela madrugada são apenas quebrados pela discreta rendição das sentinelas que guardam o quartel. Ao fundo, o Zambeze cintila, ao luar, espraiando-se na margem, onde a violenta corrente da época das chuvas foi depositando areias brancas e finas. Muito longe, o som de um batuque transmite o mistério e a solenidade da quente noite de África. De vez em quando a música suave da mbila, ali bem perto, enche-me de nostalgia. É uma música estranha e bela, retirada de um instrumento rudimentar e original, tocado pelos nativos. Na minha frente a parada do quartel, cercada de acácias, com as suas flores vermelhas à espera da visita das abelhas, mal surja a luz do alvorecer. Estou vigilante, pela noite fora, porque sou o oficial de serviço. Há uma leve e fresca brisa que, momentaneamente, nos liberta da opressiva intensidade do calor. Ao lado, na casa da guarda, os soldados, que descansam do turno de sentinela, ressonam, com os rostos alagados de suor. Repentinamente este sossego quebra-se. Uma vozearia estranha tem origem num grupo de gente que se dirige para o quartel. Escuto, depois, mais perto, a troca de palavras com a sentinela do portão principal. De seguida sou informado de que alguns nativos insistiam em ser recebidos. Autorizo a entrada e aguardo, com alguma expectativa, o motivo daquela embaixada, em hora tão matinal.
Seriam seis a oito pessoas, com roupas esfarrapadas, que se dirigiam para mim. Na frente, dois homens amparam uma mulher, que caminha com dificuldade, apoiando-se nos braços dos companheiros. Trata-se de uma jovem negra, conhecida habitante da aldeia de palhotas, vizinha das instalações militares. Traz no rosto uma máscara de sofrimento e de dor. Depois, secundada pelos outros nativos, faz-me o relato impressionante da violência a que acabara de ser submetida. Madalena, com lágrimas a brotarem de uns olhos meigos e rasgados, conta-me que proporcionara uma noite de amor ao sargento L… No fim, ao pedir a retribuição pela entrega do seu corpo, o militar espancou-a violentamente e fugiu, sem pagar. À medida que falava, Madalena despia as pobres roupas e, ali mesmo, ficou nua na minha frente. As pernas, os braços e o ventre apresentavam enormes hematomas que ameaçavam a todo o momento romper a sua pele negra e sedosa e verter o sangue martirizado daquele corpo de mulher. Um dos companheiros de Madalena exibia mesmo uma grossa vara – o instrumento de suplício, utilizado pelo sargento.
Estava impressionado pela crueldade que tinha diante dos olhos. Não imaginava que um homem pudesse descer a tamanha monstruosidade. Praticada contra uma pobre e indefesa mulher, depois de encontrar amor nos seus braços! Depois de saciar naquele corpo o apelo da sua lascívia!
Formalizei a queixa. Prometi-lhes que seria feita justi챌a e que o militar em causa, após as necessárias averigua챌천es, iria, naturalmente, ser castigado.
O grupo retirou-se e, dali a pouco, a manhã rompeu, juntando à luz feérica do céu africano toda a gama de sons próprios do despertar da natureza para um novo dia. O quartel movimentava-se para o início de mais um de dia de trabalho e todo o pessoal comparecia nos respectivos gabinetes. Foi então que decidi convocar o sargento L... Não era fácil para mim, com vinte e dois anos, tratar daquele assunto com um homem de quase quarenta. Mas usei de uma firmeza tal na exposição dos factos, que não lhe deixei qualquer dúvida sobre o processo que iria desencadear. O suor escorria-lhe abundantemente pelo rosto, à medida que dava conta da situação delicada que tinha pela frente. Depois, retirou-se amedrontado e cabisbaixo.
No final dessa manh찾, recebo, inesperadamente, nova visita de Madalena. Ainda ajudada pelos dois companheiros, vem dizer-me que, afinal, pretendia retirar a queixa contra o sargento. Fico deveras surpreendido e procuro indagar as raz천es daquela mudan챌a.
- “Nosso sargento já pagou e sê bom rapaz. Não qué mêmo fazê mal a nosso sargento”.
Olhei os companheiros de Madalena e pedi-lhes uma confirma챌찾o. Acenaram-me afirmativamente e n찾o houve modo de alterar esta nova situa챌찾o. Era difícil de acreditar neste estranho comportamento, mas a bondade daquele povo, que era pacífico, e aceitava o sofrimento com resigna챌찾o, podia explicar o que estava a acontecer. Depois, a contragosto, rasguei a folha de papel com a queixa, que acabaria por n찾o ter seguimento.
Como hoje me penitencio pela minha ingenuidade! O episódio da estação dos caminhos de ferro acordou em mim um sentimento de frustração e de culpa. Eu, que perante a minha consciência sempre procurei ser justo, deixei aquela desditosa mulher à mercê de uma injustiça.
Ainda voltei a ver Madalena, na sua palhota, rodeada de filhos, alguns com traços bem europeus. Recordo o seu sorriso terno e doce que, afinal, escondia o segredo que, por receio, nunca quis revelar-me.
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É quase madrugada. A chuva, intensa, descarrega-se agora, ruidosamente, sobre os telhados da aldeia. A lareira está apagada, mas tu, Madalena, permaneces na minha lembrança. Jamais algum outro navio me levará a aportar novamente ao teu país, mas, se pudesse, atravessava outra vez os oceanos e voltava à tua terra. Depois ia procurar-te na cidade onde te conheci. Talvez ainda vivas! Então, sentar-nos-íamos a olhar a silhueta das montanhas, banhadas de luar, e, no silêncio da noite de África, com as mãos nas mãos, talvez pudéssemos escutar ainda o toque melodioso e nostálgico da mbila.

António Espadinha


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