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CONTOS: "REQUIEM" PELA VELHA OILIVERIA - António Espadinha
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De: misabelantunes1  (Mensaje original) Enviado: 27/09/2007 20:10

Desde sempre recordo a tua presença à beira da estrada, velha oliveira da minha infância! Bebias na terra fértil e húmida a pujança do troco e o frondoso da copa. Uma pedra tosca, estrategicamente colocada à tua sombra, convidava ao repouso. Era ali, nas manhãs calmosas de Maio, ou nas tardes sufocantes do Estio, que aquele grupo de homens idosos se reunia. Verdadeira assembleia de sábios, quanto me ensinou sobre a vida! A mim, que vivia descuidado a irrequietude dos meus dez anos! Conheci o encanto daquela tertúlia pela mão do meu pai, que era então dos mais novos. Perto ficava a eira onde se recolhiam e debulhavam os cereais. Como ficava maravilhado com as voltas do trilho, puxado a muares! Depois, enquanto se aguardava o irromper da brisa da tarde, que viria, finalmente, ajudar a separar a palha das sementes, o grupo de velhos ia desfiando arengas. E mesmo quando a conversa resvalava para algo mais “picante” e alguém prevenia: - “olha o moço”, eu, diplomaticamente, sabia dissimular, fingindo empenho nas brincadeiras.
Velho Zé Neves, Manuel Higino, Francisco da Graça, Velho Tomé e Manuel Mira eram os grandes parlamentares. Este último fora um precioso auxiliar de meu avô nas lides da lavoura. O seu continuado convívio proporcionou-me a afectividade de um parente próximo. Por isso lhe chamava afectuosamente Ti Mira. Foi ele que, à sombra da velha oliveira, me ensinou a construir o primeiro moinho de gamão. Que orgulho senti, ao exibi-lo à brisa da tarde, bem sustentado pela empenagem feita com o cartão do seu maço de cigarros “Definitivos”! Mas eu retribuía mal ao Ti Mira. Enquanto a assembleia parlamentava, um enorme cordão de formigas de cabeça vermelha cumpria a missão de carregar sementes para o seu celeiro que ficava mesmo sob a pedra onde Ti Mira se sentava. Então, com todo o engenho, capturava formigas, retirava-lhes a carga, e colocava-as no cano da bota do pobre velho, proporcionando-lhes o desbravar de outros destinos. Quando as formigas ultrapassavam as meias, e inevitavelmente se dirigiam para as partes íntimas do velho Mira, cautelosamente, afastava-me e, de mais longe, aguardava o desfecho. Uns minutos depois Ti Mira levantava-se de um salto e, com as mãos entre as pernas, gritava alto e bom som: - “Cá está uuuuma...cá está uuuuma a morder-me os tomates!”
Ria perdidamente, rebolando-me na erva seca, enquanto Ti Mira, com gestos pudicos, descia as cal챌as para se livrar da intrusa.
Ainda repeti a proeza, por diversas vezes, mas um dia fatídico fui descoberto e perseguido por Manuel Mira, de cajado em punho. Necessitei ent찾o de ausentar-me por duas semanas, n찾o fosse o diabo tec챗-las...
E quantas histórias poderia hoje recordar, velha oliveira da minha meninice, que mais tarde passarias a pertencer-me por heran챌a familiar!
Quis o destino que o projecto de uma nova estrada se cruzasse no teu caminho. Os técnicos, que traçam nas cartas o avanço do progresso, não têm alma e os seus instrumentos de precisão não possuem escalas para medir afectividade. Quem poderia então travar-lhes o passo? E, afinal, tu eras apenas uma velha oliveira de que eles nunca conheceriam a história. Por isso me propus recitar-te este “requiem”. E alguém, mais sentidamente, o poderia fazer?
Uma máquina poderosa e barulhenta tombou-te. Veio depois a serra mec창nica que te decepou os bra챌os e retalhou o teu velho tronco. Outras máquinas abriram ent찾o a nova estrada, rectilínea, como convém, e dirigida ao futuro. Que infinidade de sonhos e desilus천es ir찾o passar sobre o pacato lugarejo onde tu e eu crescemos!
Já não poderei, agora, sentar-me na tosca pedra e recordar, à tua sombra, o velho Mira, o meu pai e os outros. Ou ficar ali rememorando a labuta da eira, ao mesmo tempo que escutava os verdilhões, pousados nos cardos, trinando a última cantiga do entardecer. Velha oliveira do meu passado, descansa em paz.
António Espadinha


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