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CONTOS: HISTÓRIA DA MINHA INFNCIA PERDIDA - ANTÓNIO ESPADINHA
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De: misabelantunes1  (Mensaje original) Enviado: 22/10/2007 01:01
Luísa Pereira
Luísa Pereira preencheu uma parte da minha infância. Sempre que conseguia os cinco tostões necessários, descia a rua a correr e dirigia-me à sua pequena mercearia. Era lá que se vendiam os caramelos que tanto me fascinavam. Não era propriamente a guloseima que me atraía. Mas, a envolver o doce rebuçado, encontrava os cromos de colecção que me transportavam para um mundo que, pouco a pouco, fui descobrindo. Primeiro, as aves exóticas. Que beleza de plumagens! De terras distantes chegavam até mim pássaros desconhecidos que povoavam países e continentes, que nunca imaginara que existissem. Tinha começado a ler. No verso de cada cromo havia sempre uma pequena história que me encantava. Depois, ia guardando religiosamente as belas estampas coloridas até que chegasse a respectiva caderneta, de várias folhas e repleta de pequenos rectângulos, onde seriam, finalmente, colados os cromos.
Luísa Pereira interessava-se pela minha colec챌찾o. Quando lhe falava de cromos repetidos, que tanto me aborreciam, ela sugeria que trocasse com outros mo챌os.
Magra, cabelo escuro, arrepanhado em carrapicho, uma vivacidade nas histórias que contava, a correrem-lhe nos olhos, apoiava-se no balc찾o, a m찾o dobrada sob o queixo, e ficava absorvida a olhar a luz da tarde que fenecia, na parede, em frente.
- Quando chegam as cadernetas? – perguntava eu – fazendo-a despertar da languidez daquele findar de dia.
- No fim do mês é que chega o viajante. Talvez venham...
E lá partia eu, desdobrando os cromos que iria guardar como um tesouro.
Completada a caderneta das aves exóticas, seguiu-se outra colec챌찾o. Esta, das bandeiras dos diversos países do mundo. Ainda hoje me s찾o familiares algumas bandeiras de países remotos, como o Tibete, que, nessa altura, nem sabia onde se localizavam, na imensid찾o do globo. Depois comecei a colec챌찾o dos jogadores de futebol. Mas essa abandonei-a, porque n찾o chegou a empolgar-me, e a respectiva caderneta ficou com metade dos rect창ngulos por preencher.
Cada vez que me deslocava à mercearia de Luísa Pereira não era raro escutar as suas histórias, sempre ricas de conteúdo e relatadas com expressão teatral, que ela sabia adaptar à idade dos seus fregueses. Contígua ao modesto estabelecimento, ficava a cozinha. Enquanto cozinhava as refeições, Luísa Pereira vigiava a entrada dos clientes que logo se apressava a atender. Na minha memória olfactiva permanece ainda o cheiro do refogado de cebola e tomate que se espalhava em redor, aguçando o apetite para o jantar.
No Verão, Luísa Pereira organizava excursões à praia e o meu pai entregava-me à sua guarda para que eu pudesse ficar em segurança. Um dia, ela contratou um pescador para nos levar a passear num barco a remos, no mar de Sines. Com algum receio, olhava o largo oceano que se desenrolava na minha frente e observava a beleza do fundo marinho, ora verde, ora azulado, repleto de algas ondulantes e peixes fugidios. Depois, Luísa Pereira fez-me notar como foi admirável a proeza dos nossos navegadores que partiram pelos oceanos, em busca de terras distantes. Como uma empenhada professora, falou-me do Brasil e da Índia e acordou no meu espírito juvenil o orgulho de tantas e heróicas aventuras marítimas dos portugueses.
Humilde, Luísa Pereira obtinha com o seu trabalho no pequeno estabelecimento comercial os proventos com que auxiliava a subsist챗ncia do agregado familiar. Tempos difíceis, de muita pobreza e dificuldades que n찾o impediam a comerciante de trabalhar com alegria, servindo os outros. Desde as chaminés para candeeiros a petróleo, o bacalhau e o sab찾o, sem esquecer os figos passados, ent찾o um alimento mais económico para o trabalhador do campo, tudo passava pela pequena loja. O próprio tabaco n찾o faltava. Era um gosto ver os ma챌os, de diversas marcas, bem arrumadinhos e coloridos, sempre ao alcance da m찾o, nas prateleiras feitas com tábuas de caixote. E foi precisamente no tabaco que Luísa Pereira come챌ou a notar que algo de estranho se passava. Parecia-lhe que os ma챌os desapareciam, de vez em quando, sem a troca pela respectiva import창ncia de custo. Qualquer coisa estava a acontecer ali que era necessário desvendar. Luísa Pereira, convertida em investigadora, come챌ou a usar a porta da cozinha, semiaberta, para vigiar, discretamente, a mercearia. Foi ent찾o que um par de jovens, recentemente entregue ao vício de fumar, entrou, sorrateiramente, depois de observar a aus챗ncia da caixeira. Um dos jovens retirou de trás das costas um varapau, com um prego na ponta, e, qual farpa de toureio ultrapassando a barreira do balc찾o, espetou um, e depois outro, dos bonitos ma챌os que estavam expostos para venda, metendo-os no bolso. Descoberta a marosca, Luísa Pereira escancarou a porta e saiu em defesa do seu património comercial, mas n찾o conseguiu lograr a recupera챌찾o do mesmo, t찾o lestos foram os jovens fumadores a retirar-se. Contaria a história, por muitos dias, num misto de tristeza e compreens찾o, baixando os olhos e dizendo:
- Agora os mariolas já cá não voltam. Têm vergonha de ter sido apanhados...
Outra história relatada por Luísa Pereira, e que correu toda a aldeia, foi a dos cinco escudos.
Numa abrasadora tarde de Ver찾o entrou na loja uma cliente que veio comprar o avio, mas colocou, antecipadamente, sobre o balc찾o uma moeda de cinco escudos. Distraída, a observar os diversos géneros, alheou-se da moeda, única que trazia para o pagamento. Entretanto, entrou na mercearia uma jovem cigana, acompanhada do filho de cinco anos, completamente nu.
A cigana ficou à entrada, à espera de vez, enquanto o pequeno circulava pela loja. Quando a cliente acabou as compras e pretendeu pagar, buscou sobre o balcão a moeda que tinha ali depositado. Mas, em vão a procurou. A comerciante lembrava-se de ter visto a moeda, mas jurava que não a tinha guardado. Observado minuciosamente o chão, e todos os recantos possíveis, nada de moeda. Luísa Pereira voltou-se para o “ciganito” e, com olhar acusador, disse-lhe: - Foste tu que roubaste os cinco escudos! Completamente despido, o petiz negava, abanando a cabeça e mostrando as palmas das mãos bem abertas. Protestava a mãe cigana que “o anjinho” não era desses, além de que não tinha roupa onde esconder a moeda.
Ali estava uma situação difícil de explicar. Depois de novas buscas, desta vez entre as sacas de batatas, incluindo o uso de vassoura, nada se encontrou. Ante a decepção da cliente e o incómodo de Luísa Pereira, esta, de repente, julgou ter desvendado o mistério e, pensando alto, disse: - Foi o cigano... e meteu-a no rabo!
Levantando a tampa do balc찾o, dirigiu-se corajosamente ao rapazinho, que, estático, permanecia no mesmo lugar, os olhos aterrorizados ante aquela investida de Luísa Pereira. Mal o agarrou pelo bra챌o e o deslocou lateralmente, logo a moeda, escapando de entre as trigueiras e pequenas nádegas, fez ouvir o seu tilintar, rebolando pelo ch찾o de ladrilhos.
De supetão saiu a cigana, com o pequeno escarranchado junto aos quadris, lamuriando a perda de ensinamentos que ministrara ao “rebento”.
Luísa Pereira, já mais calma, assestou os óculos na ponta do nariz e, na posse da moeda, desinfectou-a num banho de álcool...e perfumou-a com água-de-colónia.
Quando Luísa Pereira morreu, acompanhei-a à sepultura. No percurso até ao cemitério, fui rememorando os episódios que marcaram a sua vida de humilde comerciante e de figura pública, tão familiar aos habitantes da aldeia. Senti que uma parte da minha infância ia também a enterrar com ela. Desse tempo maravilhoso, de aprendizagem da vida, ficou-me uma terna e carinhosa memória.
Era Inverno. As nuvens, carregadas de chuva, corriam pelo céu, impelidas pelo vento do pego. Dali a pouco, a noite descia sobre os campos e as casas e um aguaceiro prenunciado come챌ou a tamborilar, suavemente, nos telhados de telha v찾.
António Espadinha



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