Há coisas difíceis de entender. As nossas guerras e conflitos em África, por exemplo. Como é que são possíveis? A Costa do Marfim, gente, um país pacato e de repente aquilo! O Quénia, amigos, tão calmo e depois aquilo! Como é que são possíveis coisas tão horríveis como matar o outro por ser de um outro grupo político, étnico ou religioso? Como? Como se explica esta tendência suicida entre nós? Há três anos discutiu-se na França um livro de um jornalista com o título “Negrologia”. Um livro horrível, diga-se de passagem, pela fraqueza da tese, mas altamente instrutivo em relação aos perigos de conclusões rápidas. E o autor colocava as mesmas perguntas que estou a colocar agora: de onde vem esta apetência pela auto-destruição? A resposta dele era de que os negros são assim mesmo, gostam de se matar uns aos outros. É quase genético.
Porque é que estou a colocar estas perguntas? É porque as manifestações que ocorrem agora no país estão a proporcionar elementos muito interessantes para percebermos um pouco da morfologia desta aparente tendência suicida entre nós. Não é genético. Parece mais um problema ligado à nossa incapacidade de articular a nossa fala com o que acontece em resultado da nossa fala. É uma manifestação perversa da “coragem dos moçambicanos”. O que falamos não nos compromete de nenhuma maneira. Falamos simplesmente para reproduzir esta ideia dicotómica que temos do mundo: há os bons e há os maus. Nós somos os bons. Há gente a saltitar de rigozijo pela lição que o povo está a dar ao governo. Vão de tumulto em tumulto à procura das notícias que vão acontecendo. É uma espécie de CNNeanização do nosso quotidiano intercalado com conceitos pesados da sociologia a contextualizar a coisa. Os jovens que se fazem à rua não precisam de reflectir, não precisam de saber de antemão porque se fazem à rua. Alguém vai racionalizar. E essa racionalização vai justificar o que eles vão fazer na rua.
Há dois anos li um livro auto-biográfico de um escritor húngaro-canadiano. Uma parte interessante desse livro era a descrição das experiências do autor no final da segunda guerra europeia. Ao ler essa descrição apercebi-me de uma coisa muito interessante: o que vemos no Quénia hoje ou vimos na Costa do Marfim ontem ou vimos em Moçambique na década de oitenta e desde a terça-feira dia 5 de Fevereiro não é a reacção de africanos à adversidade. É a reacção do Homem à adversidade. Todo o ser humano na adversidade reage desta forma. Simples, mas muito pertinente. Isso tem me ajudado a fugir da essencialização das coisas e do comportamento. Mas agora tenho que acrescentar mais um elemento: quando o homem reage à adversidade não tem paciência para olhar ao seu redor. Reage simplesmente. Será isso que explica a aparente incapacidade de sermos mais ponderados na análise do que está a acontecer ao país? Teremos mesmo que esperar até ser tarde demais para nos darmos conta do nosso próprio papel e da nossa própria responsabilidade em tudo quanto corre mal?
É difícil dizer isto, pois este não é o momento para exigir unanimidade na abordagem do país. A diversidade é muito importante, justamente agora. E da mesma maneira que pela nossa celebração incauta das coisas podemos contribuir para as piorar os nossos governantes deviam ter pensado melhor nas consequências das suas omissões e actos. A questão é: basta dizermos apenas que os culpados são os outros que criaram esta situação? Basta? Não temos nenhuma responsabilidade no que vier a acontecer ao país? Como podemos exercer a nossa liberdade de expressão sem a inviabilizarmos de vez?
Isto coloca desafios muito grandes à actividade intelectual. Por exemplo, o que estou a escrever agora é também perigoso. Não estou simplesmente a dizer que os intelectuais devem ter cuidado na forma como abordam as coisas; em certa medida, estou também a insular os governantes da crítica. E isso pode ser grave. Como intervir de forma responsável na esfera pública sem comprometer o direito de expressão livre que todos temos e sem fazer vista grossa ao que está mal? Eis uma pergunta dificílima que a âcoragem dos moçambicanosâ nos impede de colocar devidamente. A âcoragem dos moçambicanosâ conduz-nos a uma situação em que não reconhecemos as perguntas fundamentais que estão por detrás das respostas que damos a outras perguntas. Assim, dizemos que as coisas correm mal porque os governantes não ouvem. Mas a pergunta é: porque não ouvem? Dizemos que não ouvem porque querem roubar. Sim, mas porque os nossos governantes têm esta inclinação para o roubo e porque não os conseguimos impedir? A resposta é de que é porque eles são corruptos e inviabilizam as instituições. Sim, como é que podemos diminuir essa corrupção e como é que podemos reforçar as instituições? Se os moçambicanos âcorajososâ tiverem tido a paciência de nos responderem até este ponto, aqui explodem e dizem com ar grave e sábio: âsó não vê quem não quer verâ.
ELISIO MACAMO - Sociólogo