O SOLDADO MILHÃES. LEMBRAM?
NATAL POBRE COM " MILHÕES"
Nos inícios da década de quarenta, numa pequena aldeia de Trás os Montes, as chaminés da maioria das casas feitas de xisto, expeliam nuvens de fumo que transportavam os inconfundíveis aromas dos fritos e demais acepipes próprios da noite de Consoada.
Um manto de alvíssima neve, cobria toda a região. As árvores despidas de folhas que o duro Inverno sepultara, inclinavam para o solo os ramos mais frágeis que não suportavam o peso da neve. Uma ou outra folha que ainda persistia, ia se desprendendo ao ser empurrada pelo vento que começava a soprar, e quais borboletas entontecidas, revolteavam no ar até sucumbirem, pondo por instantes umas esparsas manchas acastanhadas na pureza da paisagem.
No interior da aldeia, viam se aqui e ali, uns bonecos de neve que a garotada, nas suas brincadeiras confeccionara, e que agora desertos, mais pareciam gigantescos anjos sem asas, ou fantasmas brancos que a sucessiva queda de neve ia tornando mais elevados.
A aldeia parecia deserta. O frio cortante, fazia com que toュdos os habitantes se recolhessem no aconchego das suas casas, e atテゥ os animais, procuravam o refテコgio dos seus abrigos.
A senhora Adelina, atarefava se na fritura das filhoses, rabanadas, bolinhos de bacalhau, aletria, arroz de polvo seco previamente demolhado, e cujos tentáculos mais grossos eram destinados a filetes. Um grande galo, fervia numa panela de ferro à lareira para posteriormente ser corado nas brasas depois da água da cozedura ser aproveitada para confeccionar uma aromática e saborosíssima canja.
A filharada entretinha se a jogar o rapa ou o par e pernão com amêndoas de casca, enquanto a água lhes crescia na boca com os apetecíveis aromas, ansiando a hora de se banquetear.
à certo que o cabrito, o cordeiro, o peru recheado, o bolo de mel e outras iguarias mais sofisticadas e próprias da quadra Natalícia lhes estavam vedadas. Essas coisas eram um luxo exclusivo dos mais abastados, que recorriam à candonga que por todo o lado proliferava nessa época; mesmo assim, ainda hoje admiro a ginástica económica que os meus pais faziam ao longo do ano, para que a sua numerosa prole se extasiasse com os deliciosos pitéus que só comiam uma vez por ano.
Uma enorme fogueira afugentava o vento cortante e frio que teimava em se introduzir pelos buracos das paredes, sem reboco e negras da fuligem, acumulada ao longo dos anos.
Era já lusco fusco, quando se ouviram duas pancadas na porta.
Entre quem é. - Disse o meu pai que acabava de concertar o lume.
Todos os olhares convergiram para a porta sem fechadura, nem era precisa pois um belho de madeira cumpria as mesmas funテァテオes, onde se destacou a figura de um homem franzino e de pequena estatura, embrulhado num velho capote militar jテ。 de cor indefiュnida e com alguns remendos de pano diferente. Os flocos de neve que se quedavam nos ombros e no velho chapテゥu mais pareciam pテゥtalas minテコsculas de rosas brancas ali colocadas por exテュmio escultor.
Olha o senhor Milhões! Entre homem, e feche a porta que está um frio dos diabos! Chegue se aqui ao lume e aqueça se. Uma fogueira é meia mantença como se costuma dizer. Inda falta um bocado pâra ceia mas beba um copo e meta qualquer coisa à boca para aquecer o estômago.
- Pâra ceia não fico, que a minha Teresa, - mulher dele â e a canalhada referia se aos nove filhos-, estão à minha espera para comer o caldinho, mas como calhou a passar por aqui, resolvi entrar.
E fez o senhor muito bem, sabe que a gente gosta sempre muito de o ver, e nem toda a gente tem o privilégio de ter um grande herói como amigo.
à Zeca, também não é preciso exagerar!
Não é exagero nenhum e o senhor tem a consciência disso.
Entretanto, eu e os meus irm찾os mais novos, reiniciávamos o jogo das am챗ndoas enquanto os adultos conversavam.
Nテ」o era a primeira vez que eu tinha visto o pobre do senhor Milhテオes em nossa casa ou em casa dos meus jovens avテウs, embora ele morasse a alguns quilテウmetros de distテ「ncia, mais precisamenュte em Valongo de Milhais, do Concelho de Murテァa.
Via o sempre com o mesmo capote, quer fosse no duro inverno, ou no verão mais escaldante, mas devido à minha tenra idade não lhe conhecia a história.
Passado algum tempo, já com o corpo e o est척mago aconchegado, o senhor Milh천es pediu ao meu pai:
à Zeca! Vai lá buscar a tua guitarra e toca alguma coisa! Eu gosto tanto de te ouvir tocar! A falar verdade, essa foi a principal razão que me trouxe cá. Sabes, não é só o corpo que precisa de alimento, às vezes, o espírito ainda precisa mais! Lá diz o ditado que nem só de pão vive o homem, e a música faz me esquecer muita coisa má.
Ao reparar mos na anuência pronta de meu pai, exímio guitarrista, todos os elementos da "orquestra" se puseram em campo. Enquanto um procurava o abano do lume para fingir de viola, outro metia um garfo de ferro num púcaro de lata para fazer o acompanhamento, outro batia com uma cana nas tampas das panelas qual famoso baterista, os mais pequenitos batiam palmas descompassadas e até a mais novinha, com apenas dezoito dias de vida, ao colo da minha jovem e viúva avó, ensaiava o seu primeiro sorriso como querendo também ela fazer parte da alegria colectiva. A minha mãe, sem descurar os afazeres, cantava com a sua voz cristalina e bem timbrada. Dizia se na aldeia, que ela tinha uma voz de anjo.
A dada altura o senhor Milh천es exclamou extasiado:
à em momentos como este, que chego a ter pena dos ricos.
Perante o olhar interrogativo de meus pais, acrescentou:
Com tantas preocupações em aumentar grandes fortunas, passando às vezes por cima de tudo e todos, sempre a correr contra o tempo na ganância de acumularem mais e mais, sem se lembrarem que na hora da morte deixam ficar tudo, não têm tempo de sentir o prazer de viver uma hora de calor humano tão sublime como esta. Não lhes passa pela cabeça que a felicidade não está nas grandes riquezas acumuladas, mas sim nas pequenas e belas coisas que Deus põe ao dispor de quem quiser vivê las. Acto contínuo, elevou as mãos como se estivesse a rezar num local de culto e disse:
- Se eu morresse nesta hora, ia direitinho para o Céu.
Não diga uma coisa dessas nem a brincar senhor Milhões, - replicou meu pai envaidecido por ter contribuido com um fugaz momento de alegria através da sua música, para com o amigo que muito admirava. - Ainda vai andar por cá muitos anos e eu hei de tocar muitas vezes para si, já que gosta tanto de me ouvir, mas surpreende-me com a sua prosa. Não lhe conhecia essa apetência de filósofo.
De quê? - Perguntou o senhor Milhões.- Olha lá ó Zeca, como sabes, eu não conheço uma letra do tamanho dum boi. Por isso, não sei o significado do nome que me chamaste, mas vindo de ti, só pode ser um elogio que me explicarás noutra altura. Agora, ala que se faz tarde e ainda tenho muito que palmilhar até casa.
Ao vestir o velho capote, enquanto se despedia efusivamente de todos, reparei que na parte interior do mesmo brilhavam muitas medalhas. Entretanto, ia guardando uma saquita de pano cheia de qualquer coisa que a minha m찾e lhe dera dizendo em voz baixa.
à pârós seus garotos, e não me faça a desfeita de não aceitar: o pouco bem dividido, chega para muita gente.
Embora a curiosidade dos meus nove anos fosse muita no que resュpeita テ。s medalhas que tinha visto pela primeira vez, nテ」o fiz qualュquer alusテ」o ao facto. Sabia sobejamente, que os meus pais nテ」o gosュtavam de perguntas indiscretas.
Depois de ele se ter retirado fechando a porta atrás de si, ainda ouvi por instantes os seus socos de madeira cambados fazer um leve ruído na neve das escadas, como se pisasse algodão, desvanecendo se à medida que ele se afastava apressado a caminho da sua aldeia.
Devido a motivos pessoais, que nテ」o interessam a esta histテウria, sテウ voltei a ver a figura inconfundテュvel do senhor Milhテオes, mais trテェs ou quatro vezes; mas ainda hoje, sempre que se aproxima o Naュtal, revejo essa figura quase mテュtica, quase lendテ。ria, que nas poュalhas do meu baテコ continua bem viva e presente.
Voltando ao assunto em questão devo dizer que, depois da faustosa e muito apetecida ceia, como a hora já fosse adiantada e com o João pestana a reclamar os seus direitos, fomos todos até vale de lençóis, ou vale de mantas para ser mais exacta, enquanto meus pais e avó foram assistir à Missa do Galo.
A queda de neve e o vento gélido haviam-se dissipado durante a noite. O sol brilhando agora no seu esplendor, punha com os seus raios cálidos, tonalidades doiradas na alvíssima e paradisíaca paisagem. Com o seu aparecimento majestoso as almas inundavam-se de calor que superava o frio físico da época.
Acordamos muito cedo para ver com que o Menino Jesus nos presenteara durante a noite. Desilusテ」o colectiva! Em anos anュteriores havia, pelo menos, dois rebuテァados de meio tostテ」o em cada soco, nesse dia era uma meia dテコzia de figos secos.
Depois da Missa das dez a que era obrigatório assistir para beijar o pezinho do Menino Jesus, e deslumbrarmo nos com o grande e repetitivo Presépio feito a um canto perto do Altar mor, onde não faltava um prato de vidro para a recolha de alguns escudos e até algumas laranjas para presentear o Menino, todas as crianças se juntavam no adro da Igreja, mostrando umas às outras, os presentes que o próprio Menino Jesus, e não o recente e importado Pai Natal, havia oferecido a cada uma.
Trテェs ou quatro, filhas dos mais ricos, exibiam orgulhosamenュte bonecas, carrinhos de lata pintados, (ainda nテ」o tinha coュmeテァado o reinado do plテ。stico), bolas, flautas de barro, piテオes de madeira, etc. As mais pobres, mostravam timidamente rebuテァaュdos e excepcionalmente um ou outro chocolate pequenino. Havia ainda aquelas que tinham recebido pouco ou nada, fanfarronaュvam grandes presentes que alegadamente deixavam em casa, mas que nunca ninguテゥm via.
Eu corri para casa chorando envergonhada enquanto ia perguntando a mim mesma porque é que o Menino Jesus dava os melhores brinquedos só aos mais ricos. Debulhada em lágrimas, fiz a mesma pergunta à minha mãe que, sem se dar conta do desmoronar dum sonho lindo que a sua resposta ia fazer em pedaços, me respondeu com a maior calma do mundo:
à minha brutinha! Então não sabes ainda que quem põe os presentes nos sapatos dos filhos são os pais? Quem é mais rico, põe coisas melhores, os outros põem o que podem. Como a minha irmã mais nova reclamava chorando a sua refeição, a minha mãe foi amamentá la dando aparentemente o caso por concluído. Entretanto, o meu pai que se apercebera da minha desilusão, chamou me:
Senta aqui ao pé de mim que eu conto te uma coisa que espero que não esqueças nunca. Eu vi como tu ontem olhaste para as medalhas do senhor Milhões. Queres saber como é que ele as ganhou?
Antevendo uma boa história, sentei me o mais confortavelmente possível junto dele, nas escaleiras de pedra que davam acesso a porta de casa, e escutei atenta e deslumbrada, aquilo que realmente nunca mais esqueci.
O nome dele é Aníbal Augusto Milhais. Foi para a 1ª Grande Guerra em 1915, para a Flandres, integrando, junto com o teu avô materno, o Corpo Expedicionário Português que era constituído por 55 mil homens. Depois em França, em La Lys, no fatídico dia nove de Abril de 1918, travou se uma infernal Batalha, e as Tropas Aliadas a que Portugal pertencia estavam completamente destroçadas, devido à quantidade muito maior de elementos inimigos, e começaram a recuar, deixando para trás o chão juncado de mortos e feridos aos milhares. O Soldado Milhais, vendo se sozinho com a sua metralhadora e sem ninguém que lhe desse ordens ou o apoiasse, agigantou se (como o pequeno David da Bíblia que derrotou Golias) e começou a disparar em todas as direcções. Sempre que as munições se esgotavam, abastecia se com as dos camaradas mortos. De vez em quando, rastejava por entre os cadáveres para mudar de posição. E foi por trás de um cavalo que jazia morto por cima das pernas do teu avó desmaiado, mas que o senhor Milhões ao reconhecer julgou morto, que entre soluços de raiva, fez uma grande brecha nas hostes inimigas que por sua vez começaram a recuar, pensando que tinha chegado um Exército fresco e numeroso, a reforçar o que julgavam derrotado. Quando se procedeu à recolha dos mortos e feridos, é que o senhor Milhões viu que o teu avô, de quem era muito amigo estava vivo. Ainda lhe sobejaram forças para ajudar a remover o nobre animal que tombara em cima do teu avô salvando lhe a vida mas deixando grandes sequelas nos membros inferiores. Veio recambiado para o pé da tua avó e dos três filhos que já tinham, entre eles, a tua mãe, pois que o teu avó se alistara voluntário para honrar o seu País como ele dizia. Voltando ao senhor Milhões: quando o Major Ferreira do Amaral em 15/7/1918 lhe conferiu um Louvor na Ordem de Serviço, teceu lhe um rasgado elogio pela bravura e sangue frio demonstrados acrescentando: âà um Soldado de pequena estatura, mas a sua coragem, valeu por milhões.â Dessa frase resultou a alcunha pela qual este bravo Transmontano passou a ser conhecido. Daí em diante muitas Condecorações Nacionais e Estrangeiras lhe foram concedidas, tantas quantas as medalhas que tu viste e das quais nunca se separa. Em 1919 regressou à terra, onde posteriormente viria a casar. Com tantos louvores e medalhas, incluindo a da Ordem de Torre e Espada, morreria de fome ele e os filhos se não fosse a ajuda de amigos e conhecidos. Pensando melhorar de vida, ainda se endividou para emigrar para o Brasil, mas franzino e analfabeto como é, não conseguiu arranjar trabalho. Uma vez mais, foram os amigos e conhecidos que lá estavam que fizeram uma colecta para lhe pagar passados poucos meses, a viagem de regresso a Portugal. Este gigante Patriota a quem Portugal tanto deve, merecia do Estado outro tratamento menos humilhante. Estou convicto que quando ele morrer, vai ser um mar de discursos e lágrimas de crocodilo. Até são capazes de lhe erigir uma estátua. Afinal, sempre fica mais barato ao Estado inaugurar uma estatua, feita até pelo povo, do que uma reforma condizente com e seu estatuto de Herói, para poder viver como tal e lhe é devido. As grandes reformas e proventos, são para aqueles que fazem as guerras nos bastidores servindo se de uma qualquer ideologia adequada aos seus intentos vis, para em nome da mesma, mandar o Zé Povinho matar ou morrer, sem que eles derramem uma gota de sangue ou uma lágrima sequer por tantas vidas que se perdem. Tu ainda és muito nova para compreender estas coisas, mas virá um dia em que te recordaras desta conversa e me darás razão. Agora já ficas a saber, onde foram parar os rebuçados que deviam estar nos vossos socos esta manhã.
Fez o gesto de se levantar como dando por finda a história. Um olhar meu, suplicante e quase hipnotizador, deteve-o.
Então o que foi agora?
Pai, e o avô?
Então: o teu avô morreu vai para quatro anos; ainda te lembras dele?
Tinha de facto uma tテゥnue lembranテァa de um homem ainda jovem, de cabelo acastanhado e olhos azuis, sentado numa cadeira de braテァos feita em madeira, na varanda da casa onde se resguardava do frio com uma manta sobre os joュelhos, ou espreitava o sol de Inverno. Os olhos frios como aテァo, tomavam por vezes tonalidades de cinzento quando ralhava com tudo e todos, o que acontecia frequentemente.
Sim lembro me, mas ele não foi também um Herói?
à claro que foi, como aliás todos os que foram para essa malfadada Guerra. Os que morreram, os que viveram e os que ficaram deficientes como foi o caso do teu avô. Ele não recebeu medalhas, mas sinceramente, quem merecia uma grande medalha era a tua avó.
Como assim? Ela também foi à Guerra?
Não, mas é uma mulher de armas.
- Nunca lhe vi nenhuma!
Viste sim: o arado, a enxada, a seitoira, a tesoura da poda, a pá do forno, a roca, as agulhas de fazer as meias de lã e outras mais. O teu avó que era de Porrais e Professor Primário; casou ainda muito novo com a tua avó, uma jovem muito bonita de quinze anos e já senhora de uma invejável casa de lavoura, que um tio sem descendência lhe deixara em testamento nas Varges, Concelho de Murça. Antes de ter ido para a Guerra, ele era muito alegre e trabalhador e viviam felizes. Quando regressou, o lugar na Escola já estava ocupado. Como tinha muita dificuldade em andar, devido ao cavalo lhe ter caído sobre as pernas, deixou de trabalhar, porque não podia, e passava os dias na taverna a jogar as cartas e a embriagar se. Perdeu ao jogo todas as propriedades agrícolas e, na tentativa inútil de tudo recuperar, chegou a jogar a tua avó, da qual o adversário prescindiu. Ficaram só com umas courelas minúsculas que não interessavam ao adversário do jogo, e se não fosse a intervenção do povo, ficariam sem a casa onde viviam porque o ganancioso jogador, deixá-los-ia sem tecto, bem como os mais filhos que iam nascendo ano após ano, fazendo a conta de dez. Por fim, ficou paralisado dos joelhos para baixo, e era a tua avó que o transportava ao colo da cama para a cadeira e vice- versa durante os catorze anos que lhe restaram de vida. Depois de o deixar confortavelmente instalado, abalava para os campos que tinham sido seus, mas que agora pagava renda, para deles, e sozinha, tirar o sustento a fim de que os filhos não tivessem que pedir esmola ou morrer de fome.
Dizia se na aldeia, que os gases das bombas lançadas pelo inimigo lhe tinham afectado o miolo, razão porque ele se tornara rabugento, mau até. Tinha sempre a bengala ao pé com que castigava severamente os filhos a quem chamava para lhes bater, e até a tua submissa avó, não escapava ao seu mau humor e aproximava se para ser espancada. Julgo que fosse o efeito dos ciúmes infundados, devido à sua debilidade física que o tornaram assim. Olha que ele, chegou ao ponto de ensinar a ler e escrever os filhos daquele que lhe tinha ficado com tudo, alegando que as dívidas de jogo são sagradas, e não ensinou os próprios filhos. Ao contar te tudo isto, não pretendo que guardes uma má imagem do teu avô Manuel! Mas é somente para que mais tarde reflictas nesta conversa, e fiques com a certeza de que numa guerra, seja ela porque motivo for, nunca há vencedores nem vencidos; e os efeitos nefastos que dela advém, não constam dos livros históricos. Das guerras, só aproveitam aqueles que as incentivam sem se preocuparem com a devastação física e moral dos que nelas combatem. Não esqueças nunca o seguinte: desde que o Mundo é Mundo, nunca a paz se consolidou através de uma guerra.
"Era a alma de um artista a falar.”
Fez nova tentativa para se levantar mas eu puxei lhe suavemente o braço num convite mudo para continuar.
Que foi agora? Por hoje, já não falo mais de guerras, porque é um tema que me põe mal disposto. Lembra te que é Natal, um dia convidativo à paz e concórdia entre os homens! Não foi isso que ouviste na Missa?
Sim; mas é só uma pergunta.
Diz lá então.
Porque é que chamam Rosa galega à avó?
Bom! Rosa, porque é o nome dela; e galega, por ser a alcunha que dão ás pessoas que trabalham muito. Não tens ouvido a expressão que actualmente se usa: trabalha que nem um galego? Não conheço ninguém que melhor faça jus ao epíteto.
Ao quê?!?
- à alcunha. Ela lavra e semeia o pão que depois ceifa, debulha e coze. Semeia e trata do linho que fia na roca para fazer os lençóis. Semeia, sacha e arranca as batatas. Poda e trata da vinha, vindima e pisa as uvas com que faz o vinho. Fia a lã das ovelhas para fazer as meias de toda a família, inclusive as que trazes nos pés. Guarda e ordenha as ovelhas de onde lhe vem algum provento monetário com os queijos que faz e os cordeiros que vende nas feiras. Criou sozinha, os oito filhos sobreviventes dos dez que teve, e agora ajuda a criar os netos; e tudo isto, sem nunca descurar a lida da casa que, embora pobre, é um mimo de asseio. A sorte dela, é que nunca precisou de ir ao médico. Conhece muitas ervas e mezinhas para todas as doenças. Por tudo isto, é que lhe chamam Rosa galega.
Deviam antes chamar lhe super mulher e cobri la de medalhas da cabeça aos pés - repliquei eu cheia de orgulhoso carinho.
Tens razão, mas agora basta de conversa; vamos comer que a tua mãe está farta de chamar.
Aproximei me de minha avó e abracei a freneticamente, gritando a plenos pulmões:
- A minha avó é a melhor do mundo, é uma super avó, merecia muitas medalhas!
Alheios à conversa tida com meu pai, os familiares julgaram que eu tivesse perdido o resto do juízo ou que estivesse com febre. Pouco habituada a tais manifestações súbitas de carinho, a minha avó ficou sem palavras. Vi-lhe no entanto a resposta nas duas grossas lágrimas que lhe rolaram pela face ao fechar momentaneamente os olhos de um azul cristalino que brilhavam como estrelas.
Os anos foram passando. Hoje é outro o tempo! à outro o lugar. As vidas destes intervenientes, seguiram o seu ciclo, o seu caminho. O senhor Milhões faleceu a três de Junho de 1970.
A minha super avó, em 1967 com pouco menos de cem anos. Vivia sozinha por opção; nunca quis electricidade ou gás em casa, e ainda carregava a lenha com que cozinhava, lavava a roupa na ribeira que atravessa a aldeia dividindo a em dois Concelhos: Murça e Mirandela.
Nunca foi ao Mテゥdico a nテ」o ser quando a levaram forテァosamente poucos meュses antes de entregar a alma ao Criador, devido a uma broncopneumonia.
A profecia do meu falecido pai, cumpriu se no que dizia respeito ao senhor Milhões.
Em 1995, vinte e cinco anos apテウs a sua morte, foi inaugurado com toda a Pompa e Circunstテ「ncia numa das melhores praテァas de Murテァa, um busto do seュnhor Anテュbal Augusto Milhais que perdurarテ。 alテゥm dos sテゥculos nos anais da nossa Histテウria, com o nome mais conhecido e merecido de MILHテ髭S
Um original de
Graziela Vieira