Nos claustros do mosteiro de Paracleto, na regi찾o de Champagne, em Fran챌a, existem, lado a lado, duas sepulturas; a do grande filósofo medieval Pedro Abelardo e de uma mulher desconhecida, de nome Heloísa.
Estranha-se, num lugar tão sagrado, estas duas sepulturas de uma abadessa e de um ex-abade e filósofo, enterrados como se de marido e mulher se tratassem, sobretudo quando temos presentes as palavras de Gregório o Grande (papa de 590 a 604) numa carta a Santo Agostinho de Canterbury, acerca da mácula do prazer carnal, mesmo no casamento: «Não pretendemos que o casamento seja culpável. Mas porque esta união conjugal lícita não pode ter lugar sem a voluptuosidade carnal, deve-se abster de entrar num local sagrado, a voluptuosidade não podendo ser, quanto a ela, de modo algum sem pecado».
Mas quem já leu a histoire de mes malheurs de Pedro Abelardo e as cartas que se lhes seguem (do séc. XII), sabe que aquelas duas sepulturas testemunham uma história verídica de amor pouco convencional na alta idade média entre dois seres extraordinários.
Abelardo, filho de uma família nobre da Bretanha de expressão francesa, seguiu estudos para a alta carreira eclesiástica, tornando-se um dos maiores filósofos do seu tempo e mestre da prestigiada escola de Notre-Dame.
Aos 35 anos, era já um homem em plena maturidade e na posse de todos os seus meios, vindo de toda a França gente para o escutar, a peso de ouro. à então que conhece Heloísa, 20 anos mais nova e à qual se liga por amores trágicos.
Esta Heloísa, também oriunda de boa nobreza, vivia em casa do seu tio Fulbert, cónego de Notre-Dame.
O seguimento da história, tão simples quanto romântica, vem narrado na Histoire des mes malleurs e resume-se assim:
Abelardo tomou pensão na casa de Fulbert e pagava a estadia com lições particulares a Heloísa, pois naquele tempo as mulheres não eram admitidas nas escolas eclesiásticas. Entre a jovem e o mestre nasceu uma paixão, até que Abelardo passou a descurar os seus cursos na catedral, preferindo compor versos em honra de Heloísa.
Heloísa apareceu grávida, o tio enfureceu-se pela honra perdida da família e Abelardo raptou-a, levando-a para casa da família, na Bretanha.
De volta a Paris, Fulbert exigiu de Abelardo a reparação da honra da família. A solução de compromisso foi este renunciar à carreira alta eclesiástica, da qual só tinha ordens menores, e à cátedra de Notre-Dame, para que tanto se havia preparado anos a fio.
Heloísa, percebendo o seu grande sacrifício, pediu-lhe que renunciasse ao casamento: «Ela antes queria ser chamada minha amante a minha mulher; deste modo só a ternura me ligaria a ela e não a força do laço conjugal», segundo confessa Abelardo na sua autobiografia.
Contudo Abelardo insistiu. Heloísa regressou da Bretanha, onde deixou o filho recém-nascido; o casamento ficaria em segredo e o casal viveria separado a fim de não prejudicar a carreira de Abelardo.
Fulbert que exigia uma reparação pública, espalhou aos quatro ventos a notícia do casamento. Abelardo, ripostando, instalou Heloísa entre as freiras de Argenteuil. Flubert e a família, furiosos e temendo que aquele fosse o primeiro passo para o repúdio, contrataram uns capangas, que castraram Abelardo.
Abelardo, refez-se do choque psicológico como pode e resignou-se a tomar o hábito monástico em Saint-Denis, enquanto Heloísa tomou hábito em Argenteuil.
Mas o extraordinário, e aqui é que vem o mais bonito da história, é que a paixão entre os dois sobreviveu à mutilação e à separação dos corpos, para se exprimir vinte anos depois, em várias cartas trocadas entre ambos e que chegaram até nós.
Heloísa, entretanto fundou o mosteiro de Paracleto e Abelardo retomou o ensino, o que lhe originou grandes dissabores com a ortodoxia religiosa e grandes arrelias com Bernardo de Clarivaux, abade de Cister.
Heloísa, apesar do seu cargo de abadessa em Paracleto, não conseguiu apagar do espírito a lembrança dos antigos amplexos e dos momentos de felicidade para sempre perdidos com Abelardo; a paixão que ela conservava, mantinha-se bem viva.
Por volta de 1132, Abelardo, já abade de Saint-Gildas, na Bretanha, resolveu escrever a sua própria autobiografia; a tal Histoire des mes malleurs. A lembran챌a do passado relatado nesta autobiografia fez renascer em Heloísa uma tal emo챌찾o, que esta escreveu a Abelardo, uma atrás de outra, tr챗s longas e magníficas cartas em que reafirmava o seu amor com a for챌a de uma paix찾o desesperada e uma sensualidade exacerbada.
Assustado com tanto ardor para uma religiosa devotada a Cristo, Abelardo respondeu num tom quase impessoal, convidando-a a transferir para Deus todo o amor outrora concebido por ele.
Nova e ardente troca de cartas e novamente o silêncio entre ambos, a não ser um curto bilhete de Abelardo em 1140, quando já enfrentava as perigosas acusações de heresia, da parte de S. Bernardo de Clarivaux. Neste momento decisivo, a ternura de Heloísa era um momento de consolação. Condenado no consílio de Sens, viria a morrer em 1142 num priorado culuniacense para onde lhe fora permitido retirar-se.
Heloísa ao ter conhecimento da notícia, pediu a Pedro, abade de Cluny os restos mortais de Abelardo para os sepultar em Paracleto, onde ela própria se fez sepultar vinte anos mais tarde.
Estes são os factos. A sua interpretação, mesmo à luz do direito canónico, fica para quem puder. Mas é certo que estas duas sepulturas, assim lado a lado, provam-nos como até no séc. XII, um homem e uma mulher, como em qualquer outra época, puderam sucumbir, apesar da diferença de idades, da posição e das barreiras do mundo, a um amor irresistível, feito ao mesmo tempo da comunhão das almas e da atracção dos corpos