Grupo de Trabalho 3
Eugénia Rodrigues[1]
Chiponda, a “senhora que tudo pisa com os pés”.
Estratégias de poder das donas dos prazos do Zambeze no século XVIII.
D. Francisca Josefa de Moura Meneses: a Chiponda
As origens familiares
O percurso de D. Francisca Josefa de Moura Meneses[37], uma mestiça de Tete, é ilustrativo do processo de construção do poder das donas dos Rios de Sena. Tanto mais que o estatuto que alcançou não encontra aparentemente raízes na linhagem familiar, como no caso de outras mulheres igualmente celebrizadas.
Sabe-se pouco sobre os ascendentes de D. Francisca, neta, provavelmente por via materna, de Pascoal de Meneses e de Filipa de Sousa. Cerca de 1723, a avó obteve o prazo Cande pelos serviços prestados à coroa pelo seu primeiro marido[38]. O casal acompanhou a expansão de Tete para o norte do Zambeze onde, por esta altura, os moradores compravam terras aos chefes maraves, adquirindo aí as terras de fatiota Pandoe e Benga[39]. D. Francisca, nascida por volta de 1738, era a mais velha das três filhas de António Pascoal de Moura e presumivelmente de Maria do Rosário, natural dos Rios[40]. Embora aparentemente sem grande preeminência social, os seus progenitores investiram na educação das filhas. Todas as irmãs aprenderam pelo menos a assinar o nome o que não era comum entre as mulheres dos Rios.
A família seguiu a estratégia habitual da elite dos Rios de conseguir terras e maridos, preferencialmente reinóis, para as filhas. Esta aliança era vantajosa para as duas partes. De facto, se as famílias dos Rios dominavam terras e gentes e possuíam o conhecimento local necessário ao manejo dos negócios, a união com homens vindos do reino oferecia uma maior proximidade face à administração e, portanto, a possibilidade de influenciar as autoridades quer na nomeação de terras e de cargos quer na obtenção de distinções como, por exemplo, os hábitos das ordens militares. O plano delineado pela família para as suas filhas foi executado com sucesso já que todas casaram com Portugueses recrutados entre os poucos voluntários que então chegavam a Moçambique.
D. Francisca Josefa de Moura Meneses consorciou-se, em data incerta, com João Moreira Pereira, um natural de Ovar que chegara à colónia em 1749[41] e em Janeiro do ano seguinte já era capitão-mor dos Rios de Sena[42]. Antes, D. Francisca obtivera o prazo Dossa, pelos serviços do avô e do pai, com a condição de casar com um português do reino, e o avô oferecera-lhe, como bens parafernais, a terra de fatiota Pandoe[43]. A irmã, D. Filipa Antónia de Moura Meneses, casou-se com Inácio Octaviano dos Reis Moreira, oriundo da nobreza da terra das Caldas da Rainha, que rumara a Moçambique em 1754[44]. Para além do prazo Cande, no qual sucedera à mãe, foi igualmente beneficiada pelo avô com a terra de fatiota Benga[45]. Finalmente, D. Catarina de Moura Meneses, a mais nova, conseguiu o prazo Zangoe[46], casando com Bento da Cunha Rego antes de 1760. Fixou residência em Sena, acabando por enviuvar muito cedo[47].
As alianças matrimoniais
A associação de D. Francisca Josefa de Moura Meneses com João Moreira Pereira trouxe bons resultados, possibilitando-lhe a ascensão ao estrato superior da elite dos senhores de prazos. O marido percorreu todos os postos militares e administrativos possíveis para os moradores dos Rios, desfrutando do prestígio e das oportunidades proporcionadas por esses cargos. Como foi referido, iniciou a sua carreira como capitão-mor dos Rios de Sena, cargo imediatamente abaixo do de governador dos Rios. Em 1762, conseguiu a patente de capitão-mor do presídio do Zimbabué[48], como era designada a guarda do imperador do Monomotapa instituída pelos Portugueses no início do século XVII. Este posto - sem efectivas funções militares no século XVIII mas remunerado com 17 bares de fato - era um dos mais apetecidos dos Rios[49]. Em 1764, Moreira Pereira tornava-se o juiz da Câmara de Tete, então criada em substituição da capitania-mor[50]. Finalmente, em 1771, a sua preeminência e alegada capacidade de gerir a conflituosa sociedade local levaram-no a governador dos Rios[51], exercendo o cargo até falecer em 14 de Julho 1776[52].
A par das funções inerentes aos cargos ocupados, Moreira Pereira foi enviado em importantes missões diplomáticas aos Estados africanos vizinhos. Em 1769, dirigiu as negociações de paz com o chefe marave Bive por ser um dos principais moradores[53]. Nesse ano, ainda, foi preso à ordem do ouvidor-geral para responder, na ilha de Moçambique, pela sua actuação como juiz[54]. Todavia, por decisão do adjunto dos moradores de Tete, foi solto para executar a missão de que fora incumbido pelo governador-geral. Tratava-se de encetar conversações com o Monomotapa para restabelecer o comércio no Zumbo, a principal feira do sertão onde os moradores de Tete - e ele próprio - tinham grande parte dos seus interesses comerciais então afectados pelas guerras de sucessão naquele Estado. Juntamente, Moreira Pereira deveria negociar a reabertura de Dambarare que fora a principal feira de Seiscentos. Essa iniciativa diplomática granjeou-lhe prestígio, pese embora o posterior desinteresse português pela reocupação de Dambarare[55].
Ao longo da sua carreira, Moreira Pereira conseguiu aumentar consideravelmente o património fundiário da mulher, prosseguindo a estratégia familiar de expansão para o território marave. É possível que se tenha aproveitado também da influência dos cargos desempenhados. Por exemplo, em 1759, foi nomeado depositário dos bens dos jesuítas expulsos. No leilão que se seguiu, alcançou o arrendamento de três terras, no que apenas foi igualado pelo cunhado Reis Moreira[56]. A integração de novas propriedades nos bens familiares fez-se pela compra de terras de fatiota aos chefes maraves[57] e pela obtenção de prazos, através da nomeação por outros foreiros ou por concessão directa da Coroa como recompensa de serviços, nomeadamente a participação nas guerras levadas ao território marave[58]. Entre estas terras estava o prazo Camucope, a que depois foi acrescentado Panzoe, pertencente ao padroado da igreja do Espírito Santo de Tete. Além dos réditos proporcionados, com a inerente obrigação de sustentar o capelão e conservar a igreja, a sacristia e a residência eclesiástica, o padroado oferecia prestígio social[59]. Note-se que, diversamente da presumida obrigatoriedade de concessão das terras da Coroa às mulheres, todos estes prazos foram titulados em seu nome enquanto D. Francisca mantinha as terras adquiridas antes do casamento.
Como todos os moradores dos Rios, Moreira Pereira inseriu-se nas redes de comércio e exploração mineira. Todavia, os seus investimentos comerciais não foram tão bem sucedidos. O comércio dos Rios era de alto risco e terá sido aqui que Moreira Pereira contraiu dívidas elevadas - nomeadamente pelo crédito fornecido a um anterior governador dos Rios, Marco António Azevedo Coutinho Montaury - mas esta era uma constante das economia dos Rios. Assim, em 1767, já o governador-geral considerava que, tratando-se de um dos dois moradores de maior crédito nos Rios, Moreira Pereira não podia subsistir sem os rendimentos das terras, tal era a extensão das suas dívidas[60].
Findo o primeiro casamento, D. Francisca prosseguiu o projecto matrimonial iniciado pela família. Pouco depois, em 1777, casava com outro português, José Álvares Pereira, cuja ascensão na administração dos Rios foi mais rápida. Era comandante de Tete cerca de 1780[61] e em Janeiro de 1786 ascendeu a governador dos Rios, acabando por falecer em Julho ou Agosto do ano seguinte[62].
De novo viúva, D. Francisca insistiria ainda nas alianças com os governantes dos Rios. Alegadamente terá tentado o casamento com Agostinho de Melo e Almeida que governou os Rios cerca de três anos entre 1787 e 1790. Tratava-se de mais um passo na sua ascensão social. Melo e Almeida era oriundo das melhores famílias de Goa e primo do então governador-geral António de Melo e Castro. O governador dos Rios, que deixou um rasto de embusteiro entre as mulheres da região, ter-lhe-á extorquido ouro, prata e marfim sem a almejada contrapartida matrimonial[63]. É possível que, como sugere Almeida d'Eça[64], tenha considerado igualmente o consórcio com Francisco José Lacerda e Almeida, um brasileiro de S. Paulo nomeado governador dos Rios, em 1797, e incumbido pela Coroa de realizar a travessia de África. D. Francisca teria por essa altura cerca de 60 anos e o pacto com o novo governante acabou por concretizar-se através do casamento com uma sua sobrinha. A morte quase imediata de Lacerda e Almeida a caminho de Angola, na corte do Kazembe, acabou por frustrar os planos da viúva.
Com efeito, D. Francisca usou igualmente o seu papel como chefe da linhagem familiar para consolidar a sua influência e o seu poder através da criação de uma rede de relações de parentesco na sociedade dos Rios. Aparentemente teve apenas uma filha, do seu primeiro casamento, Ana Francisca Pereira de Moura, falecida em 1760[65]. Esse facto compensou-o o casal investindo nos sobrinhos, nomeadamente na vasta prole de D. Filipa Moura Meneses e de Inácio Octaviano Reis Moreira. As sobrinhas mais velhas, D. Maria Antónia Teodora de Carvalho e D. Ana Felisberta Peregrina de Carvalho, foram dotadas com terras, escravos e casas. A escritura sujeitava a doação ao casamento com Portugueses, invalidando-a no caso desta cláusula levantar a oposição dos pais. Na morte das dotadas, aqueles bens passariam para irmãs seguintes já sem aquela condição[66]. Embora o casamento de mulheres dos Rios com Portugueses funcionasse por vezes como condição de preferência na atribuição dos prazos não era de modo nenhum excluidor. Porém, o casal insistiria nesse ponto reproduzindo assim o sistema colonial vigente.
Já viúva, D. Francisca criaria em sua casa outros sobrinhos. D. Leonarda Octaviano Reis Moreira, também filha da sua irmã D. Filipa, entretanto igualmente viúva, foi dotada pela tia com terras para casar com o já referido governador dos Rios Lacerda e Almeida. Logo após a morte do governador, a tia contratou-lhe novo casamento com um dos principais herdeiros dos Rios, Domingos Francisco Pereira Gajo, cujo falecimento imediato a obrigou a um último consórcio com Joaquim Francisco Colaço[67]. Além de D. Leonarda, educou igualmente o seu sobrinho neto Vitorino José Gomes de Araújo a quem pretendia constituir como herdeiro da sua casa. Tentou casá-lo com a filha de Lacerda e Almeida, a seu cargo depois da morte do governador, o que provavelmente não chegou a acontecer[68]. No início de Oitocentos, era tutora de três menores Manuel, Ana e Dionísio provavelmente também seus sobrinhos netos[69].
Todo o percurso matrimonial de D. Francisca, tal como o que projectou para os familiares dependentes dela, obedecia a uma estratégia de poder e inseria-se nos modelos de reprodução familiar e social da elite dos senhores dos prazos. Em ambos os casos, ela visava a associação aos reinóis presumivelmente mais habilitados para obter mercês da administração da colónia. No casamento da sobrinha D. Leonarda com Lacerda e Almeida, as contrapartidas oferecidas pelo governador incluíam, como se referirá, o acesso à própria corte e o reconhecimento do seu papel na ligação das duas costas de África. Na impossibilidade de efectivação destas alianças, D. Francisca optou por escolher herdeiros de outras casas importantes dos Rios quer pelo prestígio que detinham quer pelas oportunidades económicas oferecidas.
As estratégias económicas
Embora a grande parte da sua riqueza tivesse sido adquirida durante o primeiro casamento, D. Francisca soube administrá-la, sendo considerada, mesmo depois de perdas do seu património, uma mulher muito rica. Nos Rios, o poder de qualquer senhor dependia da posse das terras que, para além de possibilitarem rendimentos, permitiam manter os escravos utilizados nas actividades económicas e militares. Quase no fim da vida Moreira Pereira fora obrigado a vender algumas terras de fatiota[70] para pagar dívidas. As restantes foram confiscadas após a sua morte e leiloadas logo a 16 de Outubro de 1776, mas foram imediatamente readquiridas pela viúva coagida ao seu pagamento por soluções. Esse processo era frequente nos Rios, sobretudo no caso dos moradores mais poderosos. De facto, quer por incapacidade quer por conivência, os bens leiloados nestas circunstâncias não eram arrematados pelos outros moradores. A administração, por seu lado, anuía com este desenlace porque eram esses moradores que mantinham a segurança e a actividade económica nos Rios[71]. Apesar de tudo, à morte de Moreira Pereira, a viúva herdava uma das principais casas dos Rios e a maior de Tete.
Assim, cerca de 1777, já casada novamente, D. Francisca possuía oito terras da Coroa e cinco de fatiota. Duas daquelas terras - Dossa e Inhamatantoe e Domue - situavam-se a sul do Zambeze e estavam alegadamente “desertas” pelos ataques dos príncipes do Monomotapa. Na mesma região tinha arrendado a terra Inhambanzoe. A norte do rio, em território marave, localizavam-se os prazos Camucope, Chioza e Domba, Inhamacaza e Tundo e as terras de fatiota Chipasse, Bamboe, Nhancoma, Pandoe e Inhaufa, esta com os incumbes Sonte, Cuve Cabuabua, Canjanda, Nhamitondo e Chigoza[72]. Em 1798, continuava a ser a maior proprietária de Tete com sete prazos e um chão na vila, igualmente foreiro à Coroa, num total de 57 prazos, para além das terras de fatiota[73]. Aparentemente em 1801, os dotes dos sobrinhos tinham privado D. Francisca de parte dos seus bens fundiários, possuindo apenas os prazos Camucope e Nhamacaza e as terras de fatiotas[74].
Mesmo considerando a alta concentração fundiária existente nos Rios, D. Francisca possuía um elevado número de terras. Eram quase todas pequenas, se comparadas com os grandes prazos de Sena, mas a maioria localizava-se na margem esquerda do rio Zambeze, na altura as mais produtivas do distrito de Tete. Estas terras produziam cereais (milho, meixoeira, arroz e trigo) e algodão bem como legumes e frutas[75], obtidos através dos tributos pagos pelos Africanos que as habitavam - sobretudo pelos colonos – ou da produção directa das escravas nas hortas existentes junto às residências dos senhores nos prazos. Esta produção permitia sustentar a mão-de-obra usada noutras actividades e, eventualmente, disponibilizar cereais para o mercado.
Tal como os outros moradores, D. Francisca possuía inúmeros escravos empregados, para além do trabalho doméstico e agrícola, nas actividades de guerra e segurança e na exploração de vários serviços como a mineração, o comércio e a condução de embarcações[76]. É difícil averiguar a quantidade de escravos de cada morador não só devido à incerta fiabilidade das estatísticas no século XVIII, mas também à relativa mobilidade geográfica da população africana e à imprecisão da documentação portuguesa quanto ao seu estatuto social. Ainda assim, D. Francisca foi sempre uma das principais senhoras de escravos dos Rios. Na década de 1760, possuiria cerca de 1.000, apenas ultrapassada pela irmã D. Filipa com 1.200 e por D. Inês Castelbranco, moradora em Sena, com 6.000[77]. Nos anos de 1790, ou talvez antes, tinha ascendido à posição de principal detentora de escravos de Tete, como indicia uma relação dos cativos a fornecer para uma expedição militar. Era a única obrigada ao envio de 80 combatentes, existindo apenas dois moradores a enviar 70 e todos os outros um número muito inferior[78]. Cerca de 1798, teria perto de 2.000 escravos dos quais cerca de 300 acompanhariam Lacerda e Almeida na malograda travessia de África[79]. Aquele quantitativo terá diminuído na viragem do século com a mortalidade ocorrida durante a expedição e a intensificação das fomes na região de Tete[80]. Mesmo assim, nessa altura, D. Francisca era capaz de fornecer ao governador dos Rios 150 soldados, número muito superior ao indicado por outros moradores, apenas equivalente aos 100 disponibilizados pela sua irmã D. Filipa[81].
Grande parte dos seus escravos ocupava-se da exploração do ouro. Na África Oriental, o trabalho de mineração era feito pelas mulheres, assegurando os homens a defesa do local. No início de XIX, D. Francisca era a principal mineradora da Machinga, uma mina a cerca de 22 léguas a nordeste de Tete, localizada na década de 1770. Quando o explorador baiano Manuel Galvão da Silva ali se deslocou, em 1788, já o ouro extraído acusava diminuição e os moradores retiravam a sua escravatura para outros locais[82]. Dez anos depois, apenas D. Francisca e outros dois moradores exploravam a mina. Ignora-se quantas pessoas tinha D. Francisca nesta actividade. Mas, em 1798, Lacerda e Almeida pode levar daqui 200 escravas para a sua expedição, deixando ainda as mulheres velhas, doentes e grávidas[83]. Existia uma espécie de contrato entre os senhores e as escravas que exigia a cada grupo de cinco mulheres (ensaka) uma entrega semanal de 14 grãos de ouro, guardando o excedente para se manter[84]. Apesar da alegada decadência da mina, as escravas da Machinga tirariam 40 pastas de ouro por ano, ou seja, 4.000 meticais[85] o que representava uma quantia considerável.
Os seus escravos eram igualmente utilizados no comércio, área em que não só continuou a actividade dos maridos como passou a operar em novos mercados. Na década de 1790, integrou o reduzido grupo de moradores de Tete a encetar relações comerciais directas com o longínquo reino do Kazembe. A importância desta iniciativa é sublinhada pelo facto de apenas terem participado na missão comercial mais dois moradores, o seu sobrinho Rebelo Curvo e Manuel Caetano Pereira, este em representação do pai, o famoso Gonçalo Caetano Pereira. D. Francisca associar-se-ia também à expedição de 1798, conduzida por Lacerda e Almeida, enviando mercadorias com as quais esperava obter lucros superiores aos dos mercados habituais[86]. Esta actividade prolongou-se pelos anos seguintes, apenas interrompida pelos períodos de guerra. Em 1811, D. Francisca, tal como Gonçalo Caetano Pereira, expediu nova delegação ao Kazembe na companhia dos pombeiros angolanos Pedro João Baptista e Amaro José, de regresso à costa ocidental[87].
Os comerciantes dos Rios actuavam como intermediários entre os mercadores grossistas da Ilha de Moçambique - nesta altura, eram os banianes do Guzerate que controlavam as ligações comerciais com a Índia - e os Estados africanos. As redes comerciais que penetravam no sertão funcionavam graças ao crédito fornecido pelos mercadores da Ilha aos foreiros e outros negociantes. Estes importavam tecidos e contas indianos que pagavam, no ano seguinte, principalmente em ouro, marfim e, desde as últimas décadas de Setecentos, também em escravos. Recorrendo ao mesmo sistema de crédito dos seus pares masculinos, as mulheres dos Rios puderam envolver-se do mesmo modo nas actividades comerciais. De facto, como as suas casas dominavam os escravos enviados para o sertão com as mercadorias, os comerciantes eram obrigados a recorrer a elas para penetrar nos mercados africanos. Tal como os detentores masculinos das casas dos Rios, D. Francisca beneficiava do crédito dos mercadores de Moçambique, sobretudo banianes[88].
Como ficou dito, à sua morte o primeiro marido legou à viúva, para além de um vasto património, as dívidas contraídas na sua actividade comercial e creditícia. Segundo alguns observadores coevos, a sua situação de falência resultara de ela ser mulher, velha e, no fim da vida, cega. Ter-se-ia tornado, assim, uma presa fácil de embusteiros[89]. É certo que ela adquiriu novas dívidas, mas esses observadores ignoram em geral o peso dos débitos herdados e a situação de endividamento da generalidade dos mercadores dos Rios.
Aparentemente, o seu primeiro investimento mal sucedido foi o tentado casamento com o governador Melo e Almeida, cujas alegadas extorsões – provavelmente a título de créditos - se traduziram no endividamento da viúva junto dos comerciantes da Ilha de Moçambique. Além disso, D. Francisca fez sociedades comerciais nem sempre bem sucedidas. Por exemplo, no final de 1790, na parceria com o seu sobrinho José Francisco de Araújo acabou lesada em mais de 30 pastas de ouro. A sua participação na travessia de África foi igualmente ruinosa. Para além da perda do valor de mais de um ano de mineração, o tempo em que as suas escravas estiveram ocupadas com a expedição, vários escravos seus faleceram na viagem e outros foram represados na volta pelo chefe Mucanda, obrigando D. Francisca ao seu resgate. No entanto, por esta altura ela mantinha crédito suficiente junto dos ricos comerciantes banianes de Moçambique, como Lacamichande Motichande, que lhe continuavam a fornecer as fazendas para o comércio[90].
Finalmente, parte dos seus rendimentos provinha da prestação de serviços à rede comercial que ligava Moçambique aos Rios. D. Francisca alugava as suas embarcações para o transporte de mercadorias no rio Zambeze[91]. Além disso, construíra três casas num terreno na vila foreiro à Coroa para alugar aos viajantes e comerciantes que se deslocavam a Tete[92].
Apesar das suas dívidas, em 1798, D. Francisca tinha ainda a casa mais opulenta de Tete[93]. A sua ascensão social traduziu-se em sinais exteriores como a sua residência. Na década de 1760, vivia em casas de pedra, cal e adobe, cobertas de palha, como a generalidade das habitações dos moradores de Tete[94]. Posteriormente, essas casas foram cobertas de telha, uma das quatro existentes na vila em 1811[95].
A actividade e a estratégia económica de D. Francisca enquadram-se na perseguida por outros moradores dos Rios. Antes demais, o domínio das terras que, para além dos réditos moderados, eram fundamentais para manter a mão-de-obra empregue em actividades económicas consideradas mais lucrativas - o comércio e a mineração - e para assegurar o poder militar de cada senhor. Perante as dívidas que ameaçavam a sua situação económica, a sua estratégia foi conseguir adiar o seu pagamento através de precatórias judiciais ou portarias governamentais, evitando assim desfazer-se do património que lhe dava prestígio e acumulava para os sobrinhos. O caso de D. Francisca é elucidativo do papel das donas na economia dos Rios envolvendo-se, em maior ou menor grau, em diversas actividades mesmo aquelas que, como o comércio, eram tradicionalmente reservadas aos homens.
A “senhora que tudo pisa com os pés”
D. Francisca adquiriu o nome africano de Chiponda, “senhora que tudo pisa com os pés”[96], provavelmente apenas depois da viuvez. Os seus maridos foram, pelo menos aparentemente, súbditos respeitosos[97]. João Moreira Pereira, se usou de firmeza enquanto governador dos Rios, nunca alcançou o protagonismo da mulher, tal como o seu sucessor, na casa de D. Francisca e na cadeira do governo, José Álvares Pereira. A notoriedade de D. Francisca, tanto no espaço português como africano, foi ganha no confronto com a administração portuguesa, com os outros foreiros e provavelmente também com os chefes africanos. Com efeito, a viúva soube usar o seu poder militar, enquanto senhora de Africanos, para ameaçar uns e outros, não se distinguindo de outros foreiros poderosos. Terá sido em particular pelo uso da força armada que D. Francisca ganhou o nome de Chiponda.
O seu poder começava junto dos seus próprios dependentes africanos e, em particular, da sua escravatura, a “mais obediente entre as mais”[98]. A escravatura nos Rios, diferente da existente noutros espaços coloniais como o Novo Mundo ou as ilhas, baseava-se num sistema de dependência clientelar. Era difícil a utilização de meios de coacção, em particular a violência, pelo que o controlo social dos Africanos dos prazos dependia em larga media de processos de negociação[99]. A identificação com o senhor - traduzida no reconhecimento desfrutado entre os seus dependentes - era fundamental na mobilização das populações dos prazos para as actividades económicas e militares, assegurando assim o poder do foreiro. D. Francisca conseguiu criar laços de identidade com os seus dependentes africanos, beneficiando talvez da preponderância feminina na sociedade matrilinear marave, onde se localizava a maior parte das suas terras e donde provavelmente era originária a maioria dos seus cativos.
Usando os seus escravos armados, D. Francisca entrou em confronto com o governo dos Rios, iniciativa que lhe valeu uma celebridade ofuscadora de outros papéis desempenhados por ela. Num episódio pouco esclarecido, entrou em conflito, supostamente nos primeiros anos de 1780, com o então governador dos Rios António Manuel de Melo e Castro[100]. Ignoram-se os motivos que conduziram D. Francisca às suas terras da margem setentrional do rio Zambeze, onde juntou os seus dependentes e ameaçou destruir as casas do governador e arrasar a vila de Tete. Num relato oitocentista, ela teria mesmo reunido 30.0000 combatentes, número manifestamente exagerado, obrigando assim à capitulação de uma expedição ida de Moçambique, confundindo-se neste particular o incidente com outro anterior. O litígio parece não ter deixado testemunhos directos que permitam avaliar os seus contornos[101]. Embora casada e podendo o marido mediar a sua relação com a administração colonial, D. Francisca não se intimidou, agindo como outros senhores poderosos. Aliás, as notícias posteriores deste acontecimento centram-se na sua personalidade omitindo qualquer alusão ao marido. O episódio foi provavelmente ampliado e passou a fazer parte da representação das donas dos Rios, ilustrando o seu enorme poder face à administração.
Apesar da possível sobrevalorização daquele incidente, existem indícios de que o estatuto D. Francisca continuou a ser construído na oposição às autoridades dos Rios. Anos depois, em 1793, outro governador dos Rios, Cristovão de Azevedo Vasconcelos, um senhor de prazos, informava o governo-geral que a maior parte dos moradores de Tete era “muito obediente exceptuando D. Francisca de Jozefa Moura e Menezes, [que] não deixa de ter genio arrogante, e soberbo, e muitas vezes oposto a execução de algumas ordens como tem sucedido”[102].
É certo que D. Francisca era nesta altura suficientemente poderosa para não acatar as ordens do governador. Todavia, conhecendo-se a independência dos senhores dos prazos face aos governantes e nomeadamente os violentos conflitos que durante a década de 1790 opunham diversos foreiros e estes à administração[103], a “obediência” de que fala o governador visava acentuar a imagem de D. Francisca como uma mulher rebelde.
A par do confronto directo, a sua relação com as autoridades coloniais pautou-se noutras circunstâncias pela colaboração. O caso mais conhecido é o do auxílio prestado a Francisco de Lacerda e Almeida na sua viagem através do continente africano. O apoio da foreira começou pelas informações prestadas ao governador por um seu escravo - que integrara uma anterior embaixada – sobre a rota até ao Kazembe[104]. Depois, perante a resistência dos moradores em disponibilizar escravos para servirem como carregadores e soldados na viagem, D. Francisca não só forneceu os 40 que lhe couberam por rateio, como se apressou a enviar mais 60 e, finalmente, dispensou 200 das suas escravas de mineração, assim incumbidas de um trabalho masculino. Por fim, graças às suas ordens, a sua escravatura terá sido a única a não abandonar o governador nos dias seguintes à partida de Tete[105].
A cooperação colhida pelo governador, em contraste com a oposição da maioria dos foreiros pouco interessados em desviar os seus escravos para actividades consideradas incertas, conduziu-o a opinar que D. Francisca “tem o timbre de não negar-se a qualquer coisa que seja necessário para o bem do Real Serviço, e nisto tem a sua vaidade”[106]. O apoio dispensado pela viúva servia, no entanto, o mesmo objectivo de preservação do seu estatuto na sociedade dos Rios. Com efeito, ela terá visto a sua participação no plano régio de ligação das duas costas de África como uma ocasião de enorme prestígio cujos ecos chegariam à corte. Tratava-se de obter da rainha o seu reconhecimento “como sua fiel, e amante vassala”, numa iniciativa geralmente apenas admitida aos homens. Além disso, a sua ajuda visava vantagens mais imediatas. De facto, o governador, já viúvo nos Rios e com uma filha menor, prestou-se a casar secretamente com D. Leonarda, a sobrinha educada por D. Francisca, o que era certamente um casamento muito acima das expectativas de ambas. Ademais, comprometera-se a ajudar a viúva a resgatar os débitos crescentes com os seus soldos. Por conseguinte, para D. Francisca, como ela alegava, estava também em causa o “desempenho” da sua casa e a manutenção do seu “respeito”[107]. Ou seja, através do apoio ao governador ela visava preservar o seu património material e simbólico.
A morte precoce de Lacerda e Almeida na corte do Kazembe frustrou os planos da viúva e as vicissitudes posteriores da expedição afectaram o seu investimento comercial. Assediada pelos credores, ela não hesitou em apelar para o governador de Moçambique e em escrever para o reino, para o cunhado do falecido governador e para o secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho[108]. O seu objectivo era alcançar uma moratória na cobrança das dívidas de modo a conseguir recuperar a sua situação económica. Pelo menos a sua iniciativa junto do governador-geral conduziu a recomendações que fizeram suster a pressão dos credores. Poder-se-ia supor que D. Francisca, já envelhecida nesta altura, estava mais disposta a acatar os ditames das autoridades. Todavia, ela afrontava com a firmeza habitual o juiz de Tete recusando o pagamento de uma alegada dívida ao seu sobrinho e impedindo a execução dos seus bens[109].
Provavelmente, o poder de D. Francisca foi também construído no confronto com outros senhores dos Rios. Ignora-se a ocorrência de anteriores litígios, mas ela protagonizou um conflito armado já no início de Oitocentos. Nesta altura, a sua terra de fatiota Bamboe foi leiloada, talvez por dívidas, e o novo proprietário tomou posse legal da terra. Tal não impediu D. Francisca de armar os seus escravos, mantendo-se na posse efectiva da terra de que se arrogava proprietária[110].
Sabe-se menos sobre o relacionamento da Chiponda com as sociedades africanas vizinhas onde desfrutava igualmente de grande notoriedade. Quando Lacerda e Almeida preparava a expedição para atingir a Angola, encontrava-se em Tete o príncipe Mussidansaro, um Bisa que chefiava uma missão comercial do Kazembe à vila portuguesa. O rei pedira pelo seu embaixador que D. Francisca lhe mandasse um filho e ela recomendou-lhe o governador. Mussidansaro terá aceite que Lacerda e Almeida era filho ou pelo menos sujeito a D. Francisca porque, como explicou o governador,
“tendo a dita Senhora entre os cafres, e brancos tambem, o justo epiteto de grande e como tal, considerando-me eles inferior a ela me tinham por seu filho, bem como eles chamam filhos a todos que estão sujeitos”[111].
O qualificativo de “grande” de D. Francisca chegara por esta altura ao Kazembe quer através das caravanas bisa que asseguravam o comércio entre aquele reino e Tete quer pela embaixada que ela enviara antes. As relações entre os Portugueses e o Kazembe passaram, por conseguinte, pela mediação de D. Francisca. Ela assumia, assim, um papel informal de carácter diplomático absolutamente singular na sociedade colonial portuguesa. Tal era possível pelo papel institucional que as mulheres desempenhavam na diplomacia dos Estados africanos da região
O prestígio que granjeou entre Africanos e Portugueses, manteve-o até à sua morte em 1824 ou 1825[112]. Numa representação ao ouvidor-geral contra um seu sobrinho, os moradores de Tete ressalvavam a posição de D. Francisca, assegurando que a ela todos respeitavam “com seria veneração”[113]. O estatuto alcançado por D. Francisca exemplifica o processo de construção das relações de género na sociedade dos Rios. Num sistema patriarcal como o introduzido pelos Portugueses na região dos Rios de Sena, as mulheres tinham de negociar constantemente o poder tal como fez D. Francisca Josefa de Moura Meneses.
Conclusões
Provavelmente na viragem para o século XVIII, ocorreram transformações históricas que possibilitaram uma redefinição do papel das senhoras dos prazos dos Rios de Sena. Nessa altura, novas orientações na política colonial associadas a uma elevada mortalidade dos colonizadores europeus, cuja substituição não foi assegurada, permitiram às mulheres entrar na posse de um elevado número de terras. Durante Setecentos, e provavelmente também depois deste período, elas tiveram, assim, oportunidades semelhantes às dos homens no acesso aos recursos económicos. A maioria destas mulheres eram mestiças, descendentes de Africanos, Portugueses e Indianos, mas também existiam Goesas e provavelmente um número insignificante de reinóis. Nesta altura, a questão da raça não era, em geral, relevante no processo de concessão dos prazos, desde que as beneficiadas fossem consideradas súbditas da Coroa portuguesa e pertencessem à elite dos Rios ou de outras regiões do império.
As autoridades esperavam que as mulheres detentoras de títulos fundiários se confinassem à vida doméstica enquanto os seus maridos geriam os bens como cabeças de casal. No entanto, aproveitando o controlo das terras e das suas populações e beneficiando do preponderância das mulheres nas sociedades africanas da região, elas definiram para si um desempenho diverso. Muitas administravam as terras da Coroa e os negócios que lhes estavam associados, não dispondo apenas de influência mas cumprindo um papel institucional reconhecido. Elas encontraram-se, assim, a desempenhar papéis semelhantes aos dos seus parceiros masculinos. O estatuto das donas foi construído principalmente pelas mestiças, mas mulheres estrangeiras, principalmente Goesas, adquiriram uma posição semelhante. Mais do que a cor da pele, na construção do poder destas mulheres importava a sua capacidade de inserção na sociedade dos Rios.
De facto, nos Rios de Sena, onde as forças militares regulares eram reduzidas e a autoridade colonial frágil, o poder estava principalmente nas mãos dos senhores dos prazos capazes de mobilizar as populações africanas das suas terras não só para as actividades económicas, como também militares. As mulheres tiveram, assim, oportunidades idênticas, ou provavelmente superiores, às dos seus parceiros masculinos de recrutar as populações para construir o seu poder. Na verdade, devido à preponderância feminina nas sociedades africanas da região, elas foram, por vezes, capazes de dispor do apoio dos seus dependentes africanos mais facilmente do que os homens, sobretudo os recém-chegados. No cumprimento do papel de foreiro não existiam aparentemente diferenças entre homens e mulheres, isto é, o exercício do poder era indistinto do género.
Parece ter sido fundamentalmente a classe – com o controlo de terras, bens e gente que lhe estava associado - a possibilitar o enorme poder das donas como dos outros foreiros. É necessário, contudo, ter em conta, que no seio da elite dos senhores dos prazos existiam também diferenciações sociais. As donas mais notórias eram certamente as que dispunham de mais terras e dependentes. Todavia, um conhecimento mais aprofundado dos papéis e dos estatutos das mulheres nos Rios de Sena implica não só mais estudos sobre as donas dos prazos como também sobre os restantes grupos de mulheres que não faziam parte da elite detentora de prazos.