"O mais violento e mais cego dos desejos humanos é o desejo de esquecer"
“Quem perde a esperança, foge; quem perde a confiança, esconde-se. E ele queria as duas coisas: fugir e esconder-se. O mais violento e mais cego dos desejos humanos é o desejo de esquecer.” Fernanda Caves foi buscar estas ideias em “Jesusalém” para fazer uma viagem pela obra de Mia Couto.
Num jantar em Luanda” – conta o escritor angolano, Ondjaki – “alguém terá confundido o editor português de Mia Couto, com o próprio Mia Couto. Virando-se para o editor, esse alguém tê-lo-á cumprimentado: ‘boa noite, Mia Couto’. Mas o escritor angolano Manuel Rei Monteiro corrigiu de imediato: ‘esse não é Mia Couto; esse é quem manda o Couto miar.’”
Se na moeda da nossa cultura, como diria Ungulani Ba Ka Khosa em “Jerusalém- A Viagem Interior de Mia Couto”, há muito que Mia Couto deixou de se inscrever no reverso, nesse lado onde pontificam outras nobres figuras das nossas letras e artes, quem o pode “mandar miar?”.
“Na verdade” – responderia Ondjaki se a pergunta fosse directamente feita – “só vozes interiores, antigas e mágicas, mas também leves e modernas, é que fazem Couto miar”.
As estudiosas brasileiras, Fernanda Cavacas, Rita Chaves e Tania Macedo entraram para o campo do escritor moçambicano e o transformaram num “objecto de estudo” como quem não resiste a prender-se num tema e quer montar as peças de um puzzle. “Mia Couto: O Desejo de Contar e de Inventar” é um livro sobre Mia Couto. Ele busca as diferentes visões que se pode sobre o autor e os sentimentos que foi provocando nas pessoas que o leram.
O escritor “Bissau-guineense”, Carlos Lopes, que assina um texto neste livro com o título “Nem Aspas Nem Raspas” se aproveitaria de Mia Couto para lembrar a praça bem familiar, faz uma espécie de retrospectiva de “vários guineenses” que se foram sucedendo desde o seu tempo de infância – presumimos – colonial se estendendo entre a independência, as guerras e golpes de estados.
“A praça tivera vários nomes ao longo do tempo, respeitando as mudanças dramáticas do poder. A praça servia de termómetro sobre o desenvolvimento. Ela já tinha vivido uma época com uma nota cheia de sipaios, outra com os boinas verdes portugueses, uma outra ainda com muitos “Volvos” e estrangeiros solidários, e depois uma festa de indigenismo e queima de palácio. Os postes de luz, primeiro deixaram de estar todos acesos, depois perderam cor e, finalmente, acabaram tortos, enferrujados e sem corrente para tentar iluminar sequer.”
Podíamo-nos prender nesta forma corrida de se resumir a história de um país através de uma praça donde aos domingos, podia se ver “meninas bonitas passeando” de manhã e à tarde, o desfile militar no render da guarda da bandeira.
Carlos Lopes parte da sua praça para a cidade da Beira, onde “as praças foram feitas com mais afinco” onde nasceu Mia Couto. Este seu texto podia também ser uma biografia de Mia, mesmo com os momentos que Lopes se ri do seu nome.
“Coube ao coitado servir de voz dos garotões e arranjar nome de mulher. Essa coisa de Mia já lhe custou transtornos” – conta Lopes sem deixar de questionar como seria se ele fosse António Emílio. “Imaginem que aborrecido seria se lhe chamassem António Emílio. Que é isso?”
Mas ter um nome de mulher não é algo que preocupa o autor. “Acha piada” – conclui Lopes. O próprio Mia fala disso na entrevista que dá a Fernanda Cavacas e Rita Chaves com o título “É como se a Memória Fosse, Faz Conta, Um Mapa dos Sítios Que Não Há”, publicado neste “Desejo de Contar”
“Eu acho que estou bem nesse nome. Porque, primeiro, não é o nome de pessoa, de pessoa será numa outra língua, numa outra cultura. Mia não é nome de homem e eu sou homem.”
Se em termos de nome Mia Couto tem certezas, o mesmo não pode dizer em relação a pertença, ao ser ou não de Moçambique. “A pertença é que já é uma coisa que teve várias evoluções. Na altura, eu, provavelmente, achava que havia uma coisa que seria um ser marinho e eu estaria ali com uma espécie de aptidão recente, como uma baleia e, portanto, teria de vir à tona para respirar.”
Assim, Mia assumia-se um cidadão que podia até ser de Moçambique, mas que poderia ir a outras partes, respirar como as baleias.
Este livro de 486 páginas, que sai com o selo da Ndjira e pela colecção Horizonte da Palavra, é uma colecção de histórias, de entrevista e de estudos sobre a obra de Mia Couto, para além das suas próprias fotografias. Traz também grandes autores moçambicanos como Ungulani Ba Ka Khosa, Calane da Silva, Francisco Noa, José Luís Cabaço e Lourenço do Rosário.