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Além de citações aos poetas moçambicanos Noémia de Sousa e José Craveirinha, há também nesta obra um diálogo poético com as obras de Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Marisa Monte, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira.
Rita Chaves
É próprio, principalmente, do sistema literário em fase de consolidação o confronto com alguns importantes desafios. Um deles está ligado à necessidade de se inserir numa tradição recentemente inaugurada e, ao mesmo tempo, superá-la em seus limites, reiventando novas trilhas em terrenos ainda pouco pisados. Sem dúvida, é essa uma questão que atravessa Maputo blues, livro de poemas de autoria de Nelson Saúte, lançado agora em dezembro na capital moçambicana, pela Editora Ndjira. O belo projeto gráfico, de cores sóbrias na capa e papel amarelecido no miolo, é já um convite à leitura. Como no reino da poesia tudo faz sentido, o cuidado com a materialidade da forma também repercute na apreensão que desses poemas podemos fazer.
Entre os muitos roteiros de leitura, podemos começar pelo título, acatando a indicação de pistas que ajudam a percorrer alguns dos caminhos pelos quais nos quer levar o poeta, todos marcados pelo apego à cidade em que nasceu e viveu a maior parte de sua vida e a paixão pela música, com assinalado destaque para as linguagens tributárias dos ritmos africanos. A referência ao blues evidencia uma forte ligação que, afinal, está enraizada na chamada cultura moçambicana. Essa dicção musical que atravessou o oceano e recriou sua linguagem na diáspora tem em Moçambique o seu culto e seus cultores. Basta lembrar poemas extraordinários como Deixa passar o meu povo, de Noémia de Sousa, e O bule e o blues, de José Craveirinha.
O amor pela música que foi um traço fundamental na afirmação da identidade moçambicana é, pois, partilhada com outros poetas da terra. Impossível não pensar em Lindemburgo Blues, do contemporâneo Luís Carlos Patraquim, que, embora não explicitada, é presença em alguns textos de Saúte. Um paralelo entre Marrabenta para Fanny Mpfumo e Metamorfose sugere pontos de aproximação que tem por base a dimensão da intertextualidade que o autor cultiva como uma das linhas de força de seu trabalho.
O leitor mais familiarizado com a poesia moçambicana também vai se reportar a muitos textos de José Craveirinha, um dos poetas basilares na linhagem a que Nelson Saúte quer ter seu nome associado. Sim, porque de modo desabrido ele assinala o seu desejo de pertença num movimento que o insere na corrente da modernidade centrada numa espécie de reinvenção da fonte, estratégia em que, do mesmo modo, apoia-se o destaque de Rui Knopfli, com o qual também comunga a crença na dimensão individual do exercício literário como uma energia legitimadora dos caminhos a serem trilhados. Com ele, Saúte parece aprender o salto para fora dos limites de uma definida nacionalidade artística, pressuposto de uma universalidade tantas vezes aludida. Num terreno onde a tensão entre forças que se antagonizam é um fato, a prática da poesia parece pretender recobrar a idéia de totalidade que a grande cisão interditou. Octávio Paz e Jorge Luís Borges, saudados na abertura da segunda parte do livro, iluminam essa direção. Se o que interessa é a busca e não a convicção do encontro, o poema se enriquece, como podemos observar em New Orleans e Tomatito.
A citação de Craveirinha, entretanto, insinua que o caminho faz-se de muitas veredas. O cantor da africanidade convicta não poderia deixar de sugerir outros lados talvez de outras moedas. E, então, vemos a memória conduzida pelos bairros periféricos da velha cidade, as referências familiares construindo uma ancestralidade em que se pode (e talvez se queira e se deva) ancorar uma poesia que tem na viagem um de seus motivos. Ao lado do cosmopolitismo que os deslocamentos favorecem, podemos detectar a incorporação de marcas culturais da terra de onde quer recuperar:
"aquele rapaz de calção e sapatilhas
- compradas numa daquelas lojas
dos monhés do Xipamanine -
correndo toda a largura da rua do Zambeze
no em que me prometeram
uma visita ao Jardim Zoológico"
A memória da infância representada no fragmento acima é um dos vetores da primeira parte do livro que se divide em quatro, embora interligadas num claro conjunto que investe na representação de um percurso do qual não podem ficar de fora as marcas do trânsito que é uma das contingências e uma das conquistas do homem contemporâneo. De certo modo, esta poesia chama para si o compromisso de retirar o continente e seus homens das fronteiras do regionalismo redutor, aspecto essencial que também organiza o diálogo que ela estabelece com a poesia de Craveirinha. A erudição patente nas citações, num jogo que, inclusive explica o lugar do Brasil na sua formação cultural, é marca que aproxima os dois projetos. Em Craveirinha, era frequente a remissão a Jorge Amado e a outros escritores, aqui, coerentemente com a proposta, temos a referência a Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Marisa Monte, embora a literatura de Carlos Drummond de Andrade, claramente citado, e a de Manuel Bandeira, apenas insinuado em algumas belas imagens, venham confirmar a energia da nossa produção literária na dicção de autores moçambicanos da atualidade. Nesse sentido, talvez possamos afirmar que a fragilidade das iniciativas institucionais não interdita a apropriação de valores culturais que se projetam sobre essa distância que torna difícil a troca desejável e necessária.
No chamado Livro segundo vamos encontrar a manifestação do lirismo que tem na aventura amorosa o grande tema. Os poemas reduzem sua dimensão física mas mantêm o que talvez pudéssemos identificar como uma retórica do excesso, registrado no uso da reiteração como recurso estilístico, sugerindo talvez o caráter obsessivo a que o sentimento amoroso associa-se. Naturalmente, o tempo não se abre a uma única musa, reiterando-se a idéia de que a grande musa é mesmo a experiência do amor e não uma mulher específica:
"Vejo-te assim nos meus versos
Tuas mãos africanas indianas árabes
Tua comovente beleza
Na cadência deste flamenco
Nestas vozes ciganas tangendo-me
Com as ocres cores de Sevilha
Nos pátios da Ilha de Moçambique
Onde tu bailas e voltas a bailar"
Como muito bem apontou o escritor João Paulo Borges Coelho na cuidada apresentação que fez de Maputo blues na sessão de seu lançamento, os livros misturam-se, interpenetrando-se alguns de seus traços. O tom memorialístico do "Livro primeiro" é retrabalhado em imagens que, traduzindo a atualidade dos fatos, remetem para uma espécie de lembrança do presente a inscrever-se como um sinal do futuro. A Canon digital presente em A fotografia surge como uma interessante metonímia:
Ali estás porfiando o imponderável
enquanto a Canon digital te fixa
para além do teu tempo. Ali estás.
......................................................
Oiço cantar a Bebel Gilberto
e quase choro. A chuva anuncia
uma estarnha saudade. Como se eu fosse
uma ave inábil na bruma desta manhã.
.....................................................................
Ali estás na fotografia. O prodígio
da máquina sobreviverá ao momento
estático em que te capturou. Ali permanecerás
para além da memória e das minhas cinzas".
Preparado o solo, no "Livro terceiro", os poemas podem, com serenidade, buscar os signos da contemporaneidade, mergulhando o eu lírico nos cenários multiplicados de um mundo em movimento. Na epígrafe, os versos de José Craveirinha pacificam qualquer dilema em que se pudesse perceber o inconciliável:
"Os bons fazedores de certos sonhos
também estão superiormente autorizados em África
a escalar todas as mais belas montanhas azuis do Mundo"
Nesse segmento cruzam-se as referências que colocam lado a lado Madri, Nacala, Maputo, Lisboa e Chidenguele. São signos de um roteiro que se ilumina em poemas alternados entre longos e brevíssimos, como nos instigantes Sms1:
"Amo-te no trânsito anônimo da cidade"
E Sms2:
"Vejo-te no rosto inconcreto da multidão
que me habita na beleza sussurrada da cidade".
O ritmo algo frenético da vida urbana penetra a dicção dessa poesia votada à representação do universo em que se integra. Como se essas novas formas de comunicação, a despeito de seu pragmatismo, não deixassem de guardar a possibilidade da magia de que o discurso poético se pretende portador.
O "Livro quarto" apresenta-se como o espaço da consagração dessa maturidade que vem sendo preparada ao longo dos anteriores. A insistência, talvez excessiva, no apego ao biográfico desagua numa retórica um tanto hesitante entre o registro prosaico e a busca de um sentido para a vida perante épicas mais solicitantes. A prosa comum de um cotidiano integrado confronta-se com a dimensão algo apocalíptica das tragédias que assolam o mundo. No recorte dos dramas da vida pessoal, assim como na representação dos acontecimentos trágicos que assolam o mundo, a morte é a presença mais firme. É, todavia, quando se descola do estritamente pessoal que o poema cresce e recupera a tensão que é própria da economia do lirismo.
Do impacto gerado pelas grandes dores coletivas, nascem os poemas mais fortes desse segmento, aqueles que assumem Caxemira, Canaã e Beslan como signos do nosso tempo, esse "tempo de homens partidos", para citar Drummond, cuja presença se explicita na epígrafe desse "Livro quatro" e se espalha pelos textos que nos trazem à memória os cantos tecidos a partir da Segunda Grande Guerra. A "rosa do povo", cultivada pelo notável autor mineiro, ressurge com a dramática evocação da História do presente, manifesta nos sinais da inaceitável e inexorável dor a pontuar as imagens moduladas por um ritmo pautado pelo pasmo:
"A jovem mãe acaricia a nuca da filha.
Tem sangue na mão direita, na outra mão
leva dois anéis. A mão esquerda sobre a garganta
da dor. O cabelo demasiado negro
amarrado por um puxinho azul e branco.
Três dedos do pé esquerdo
Nascem do vestido sobre as sandálias".
Nas imagens a um tempo comoventes e equilibradas com que o poeta nos traça o retrato da mãe (e são tantas ) em sua insuperável dor, estrutura-se uma escrita preocupada em articular alguns dilemas que aturdem o homem diante do mundo e de si próprio. Com resultados muito positivos em poemas como esse A jovem mãe de Beslan e Improviso de bombas em Canaã, nos quais Fátima Mendonça, em seu prefácio, afirma identificar a "fulgurante interpelação do mundo" que consagrou Craveirinha.
Mesmo se desigual na extração poética de sua escrita, como não é incomum reconhecermos em coletâneas de poemas, Maputo Blues é uma notícia sem dúvida importante no cenário da poesia moçambicana. Nesse conjunto de textos ali reunidos, o leitor depara-se com problemas interessantes que se abrem à literatura de Moçambique e com algumas das angústias que fazem parte do repertório de grande parte dos poetas que emergem dos espaços definidos como periféricos e, conscientemente, lutam contra o seu próprio aprisionamento em campos de exotismo. Empenhada em libertar-se das restrições que a geografia poderia impor, a proposta de Nelson Saúte corre noutra direção, perseguindo notas capazes de combinar a marrabenta de Fanny Mpfumo com o jazz de Billie Holiday, fazendo da escrita literária a travessia entre os muitos pontos do planeta. E é nesse compasso que ele investe na sua relação com as matrizes que compõem o que para o autor é a sua tradição literária.
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