No fim da manhã desta terça-feira Paulina Chiziane (Moçambique) e Ondjaki (Angola), em debate movimentado e repleto de declarações sinceras, falaram sobre a criação literária nos países africanos de língua portuguesa.
O escritor aproveitou a oportunidade para redefinir o tema dos seminários da 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, evento literário que decorre em Brasília até o próximo dia 23 com a participação de autores africanos que falam português, “A literatura africana de expressão portuguesa”.
"Sou de um país angolano de expressão angolana. Não sou de expressão portuguesa. Me desculpem, mas somos países africanos de língua portuguesa. Tenho problema com a designação da lusofonia. Para ir aos países lusófonos, preciso de visto", relativizou.
Ondjaki disse ter um idioma próprio: o desportuguês. "É um estado de poesia. É a minha língua de pensar e, sobretudo, criar. O escritor deve tratar a língua de maneira que gere resultados estéticos e identitários.
Paulina traçou um breve percurso que a literatura tomou em seu país. Antes do domínio de Portugal, a tradição oral era o veículo de transmissão da sabedoria do povo, utilizado e desenvolvido principalmente pelas mulheres. Na condição de colonizado, o país foi invadido pela educação europeia: os autores abraçaram a denúncia social. Após a independência, em 1975, "existiram realidades novas".
"A língua é vantagem e barreira. Nós usamos, de certa maneira, olhos europeus para escrever sobre a África", explicou.
A moçambicana, em desabafo que emocionou o público, apontou e criticou um novo tipo de colonialismo: o religioso. "Para nós, o Brasil é branco e mulato. A imagem do negro não existe. O único negro reconhecido como negro é o Pelé", começou. "Nós temos medo do Brasil. Um sem-número de igrejas evangélicas quer ensinar aos africanos quem é Deus. Os portugueses vieram com a cruz e a espada. Os brasileiros, com a cruz e a Bíblia. Nós queremos dizer ′sim` a Deus, mas na nossa própria cultura", observou.
Já o romancista Milton Hatoum criticou a descaracterização urbanística das metrópoles brasileiras, afirmando que "é um crime o que aconteceu com as nossas cidades”.
"A Manaus da minha infância já não existe mais. Nem a Brasília que eu conheci em 1968", disse Hatoum sobre a cidade onde nasceu e sobre aquela para onde se mudou em 1967, quando tinha 15 anos, e onde chegou a ser detido ao participar numa manifestação contra o governo militar.
"A especulação imobiliária, em conluio com políticos safados, acabou com as nossas cidades. Aconteceu com Manaus, com São Paulo, está a acontecer com Brasília e com o Rio de Janeiro, onde você já não vê mais a paisagem. E só vai piorar", acrescentou o autor, classificando prédios recém-inaugurados ou em construção em Brasília como horríveis, por destoarem da proposta urbanística e arquitectônica modernista pela qual a capital federal foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade.
"Vejam esses hotéis horríveis construídos no sector hoteleiro. É uma cópia de São Paulo, que também já se tornou uma cópia horrível de Miami, da mesma forma que Manaus. Isto não é Brasília. Isso é a antiarquitectura. Quanto a Manaus, não conheço mais a minha cidade. Tudo lá está poluído. Cada vez que eu volto, tenho que tomar um antidepressivo", contou o autor, convidado para falar sobre ficção e memória na literatura.
Hatoum recordou que, na adolescência em Brasília, teve um poema publicado por um importante jornal da cidade. "Foi uma experiência muito bonita. Nessa mesma época eu ganhei o meu primeiro prêmio literário, mas quando falei aos meus pais que queria ser escritor, eles tremeram. Ser escritor no Brasil?", brincou o autor, antecipando a possibilidade de narrar, no seu próximo livro, algumas das experiências "um pouco heterodoxas" que vivenciou quando jovem, na capital federal.
"Imagine o que era um grupo de jovens vivendo em Brasília em 1968. Estávamos enlouquecidos. Tinha ditadura, não se podia estudar direito. Perdemos a conta do número de invasões à Universidade de Brasília [UnB]. Refugiávamo-nos em muitas coisas. Até nas drogas. Não sou político e posso dizer: nós experimentamos tudo e essas experiências talvez sejam narradas."
Perguntado sobre a receita para escrever bem, Hatoum destacou a necessidade de encontrar o seu próprio tom ou voz literária e criar um universo ficcional característico que permeie o conjunto da obra e permita o reconhecimento por parte do leitor. Ele destacou ainda a necessidade de que o aspirante a escritor goste de ler e de escrever. Além de não ter medo das críticas. "A resenha mais venenosa não é capaz de destruir um bom livro", receitou Hatoum, antes de revelar que só se deu por satisfeito com um dos seus maiores sucessos de crítica e público, o romance Dois Irmãos, após reescrevê-lo 19 vezes.
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