Por Rosa Ramos, publicado em 1 Maio 2012 - 03:10 | Actualizado há 16 horas 25 minutos
O eterno bispo vermelho continua sem papas na língua. No Dia do Trabalhador, em entrevista ao i, acusa o governo de falta de pedagogia
Chegou a Setúbal no Verão quente. Mais de 80% da população que encontrou era operária, além de comunista e avessa à Igreja. Chegaram a organizar-lhe uma manifestação à porta da catedral no momento em que era ordenado. Um bispo, ainda por cima vindo do Norte e certamente reaccionário, não era bem-vindo. Pouco tempo depois, D. Manuel Martins tornava-se a voz dos operários e dava o famoso “grito” de alerta para a fome em Setúbal. Chamaram-lhe o “bispo vermelho”. Agora, aos 85 anos, diz que não sabe como teve coragem para dizer e fazer “certas coisas” – por exemplo, ter defendido que polícias e juízes pudessem ter direito a ser objectores de consciência quanto a ordenar o despejo de uma família. Apesar da pobreza que encontrou em Setúbal, D. Manuel Martins acredita que a crise de hoje é pior, porque está em todo o país. O bispo emérito de Setúbal admite que a fome está de regresso, defende que a Igreja deve ter uma palavra a dizer na política, considera que o governo não tem sido bom pedagogo e que todos os partidos se deveriam unir num “pacto de regime”.
Há três décadas deu o grito de alerta para a fome que havia em Setúbal. É chegada a altura de um novo grito?
Penso que a situação que estamos a viver agora é mais grave que aquela que se viveu na década de 1980 em Setúbal. Por uma razão: agora diz respeito a todo o país. Naquela altura a fome era um fenómeno mais localizado. E Setúbal era uma cidade operária, que se via confrontada com uma enorme taxa de desemprego, com o encerramento de fábricas, empresas... Tudo isso criou uma situação verdadeiramente irrespirável, de muita miséria e de alguns suicídios até. E eu, enquanto bispo, não podia deixar de comungar com a situação daquela gente, convencido de que, em harmonia com a doutrina da Igreja, o meu lugar de bispo era importante. Devia sofrer com aquela gente e chamar a atenção dos responsáveis para o drama daquelas pessoas.
A Igreja deve ter esse papel?
Claro que sim. João Paulo II disse-nos isso. E todo o Evangelho vai nessa linha. Repare que Jesus morreu por causa disso: por chamar a atenção para a dignidade do povo sofredor e oprimido pelos poderosos e políticos do seu tempo. Foi por isso que foi morto. A Igreja não pode esquecer-se disso e João Paulo II escreveu uma carta belíssima em que recorda que a Igreja tem de proclamar em toda a parte a dignidade do homem. O homem tem de ser o centro de tudo o que se faz. Especialmente ao nível do poder.
E o poder tem tido em conta a dignidade do homem?
Infelizmente, o que nós vemos – e não é só em Portugal – é que o poder exercido pelas pessoas que estão ao serviço dos partidos normalmente é exercido em função dos resultados dos partidos e não em função das pessoas. Até me arrepio às vezes quando vejo os nossos líderes partidários, dentro e fora do parlamento, preocupados apenas com a vitória do partido. E quando têm sucesso numa posição, a primeira coisa que dizem é que foi bom para o partido. Só no fim, às vezes em rodapé, é que vem a sorte do povo. Tenho muita pena que os nossos partidos tenham como filosofia primeira uma mística de clube, mais que uma mística de povo e de bem comum. Quando o povo deve ser a base, o critério e o centro das preocupações. Quem sobe ao poder não pode esquecer- -se que subir a um cargo público é, no fundo, descer à base de tudo.
Em que medida?
Nós pensamos que as pessoas que sobem ao poder passam a ser pessoas de importância, mas elas desceram para ficar abaixo de nós e para nos ajudar a crescer. E o que João Paulo II veio recordar é que a posição da Igreja deve ser ajudar as pessoas a descobrirem a sua dignidade e a sua cidadania, para que nunca se deixem manipular e para que protestem. E sabemos muito bem que a nossa gente se deixa manipular facilmente pelas vozes mais aliciantes e habilidosas. O anterior Papa recordou-nos que à Igreja compete também denunciar as injustiças que se cometem contra a dignidade e os direitos da pessoa humana, que estão consagrados na nossa Constituição. O trabalho, a saúde, a igualdade. A Igreja tem de estar muito atenta a estas situações e tem de chamar a atenção de quem manda, recordando-lhes que mandar é servir.
A hierarquia da Igreja tem estado demasiado silenciosa face à situação social que o país atravessa?
Sim. Temos chamado mais a atenção para a solidariedade e para a caridade dos cristãos que propriamente para a explicação dos modos e das causas daquilo que está a acontecer: um empobrecimento cada vez maior e desgraçado da nossa gente. É muito bonito e importante que existam instituições da Igreja que alimentam esta e aquela família. Isso está dentro da missão da Igreja, claro. Mas os princípios anunciados por João Paulo II vão mais longe: à Igreja também compete descer ao terreno, denunciar e chamar a atenção para aquilo que julga não estar bem. E se calhar muitas coisas não estão bem, por exemplo na maneira como se tem exercido o poder. É verdade que estamos numa situação desgraçada, toda a gente sabe, e se calhar ainda vamos estar pior. Puseram- -nos numa situação desgraçada. E é verdade que qualquer governo teria de recorrer a meios muito dolorosos para resolver estes problemas. Mas também é verdade que o modo como isso se tem feito não é o mais correcto.
A Igreja tem receio de ser confundida com a política?
Não sei. Às vezes temos essa sensação… Acusam-nos, quando chamamos a atenção, de estarmos a fazer política. Mas repare que nós temos de fazer política! Quando defendemos a dignidade e os direitos do homem e os direitos e os conteúdos da democracia estamos a fazer política. Não há nada que não seja político quando o homem está em causa.
Dizia há pouco que a maneira como o governo está a resolver os problemas do país não é a mais correcta. Porquê?
Porque nunca nos dizem quando é que isto acaba! Pelo contrário: dizem-nos sempre que já acabou e todos os dias há uma nova notícia gravosa. Nunca sabemos como vamos acordar. Todos os dias há coisas novas. Não quero negar ou discutir a boa vontade das pessoas que ocupam o poder, mas uma coisa é certa: faltam-lhes os princípios mais elementares da pedagogia. Podiam explicar-nos “nós estamos assim, precisamos de fazer isto, precisamos de fazer aquilo”. Não é só anunciar mais medidas de austeridade, é preciso explicá-las e tratam-nos como meninos de escola. Aliás, nem com meninos de escola se faz isto. A pedagogia é um recurso que não tem sido usado, não sei se por inexperiência. Imagino que o governo tenha boa vontade, mas não tem sido pedagogo e o poder tem de ter pedagogia, senão provoca reacção e a resistência. Sabemos que metade dos portugueses anda descontente com os modos, já nem digo com os assuntos ou com as medidas. Mas com o modo como isto tem sido feito. E mesmo aqueles que concordam com as medidas, muitos deles, estão descontentes com os modos. Há falta de pedagogia nas diferenças, nas contradições, nas promessas que amanhã podem ser contrariadas. E isto não só não nos ajuda nada a nós, portugueses, como não ajuda o próprio governo. E também me parece que, numa situação como esta, o parlamento e os partidos deveriam viver numa filosofia de pacto de regime. Na solução dos grandes problemas deveriam estar de acordo, porque o que interessa é o bem do povo, é servir o povo, é acudir ao povo. Não é defender o seu clube, não é ganhar o campeonato. Aquilo a que nós assistimos é a um jogo de clubes e deveria existir um pacto naquilo que é sério, naquilo que é importante, no que é necessário. É preciso que todos os partidos concordem nessas matérias, nem que lhes custe, nem que percam votos. Aceito e entendo que qualquer governo tem de recorrer a medidas muito duras, mas que as faça com equidade e com pedagogia.
Em Outubro do ano passado, numa entrevista, disse que as medidas de austeridade ainda haveriam de fazer correr muito sangue e que isto acabaria por rebentar. Continua a pensar assim?
São os meus entusiasmos. E obviamente que disse isso em sentido figurado. O sangue de que falava é de dor e sofrimento.
Mas teme que se possa gerar um descontentamento grande na sociedade?
Descontentamento já há, manifestações já há e sensibiliza-me ver determinadas situações. A nossa pobre gente... sem trabalho. Arrepio-me, dói-me imenso quando penso na hipótese de um casal em que os dois perdem o trabalho. É que é preciso metermo-nos na pele dessa gente, sabe? E vemos os homens do poder a falar disto como uma coisa normal, como uma mera questão de números e não como uma questão de fundo. Há dramas enormes a acontecer por todo o país. Gente que não tem o que comer, que não pode pagar uma casa. Isto que está a acontecer com as casas é verdadeiramente dramático. E porque é que isto acontece? Por causa da falta de trabalho. Há políticas que possam resolver, embora no mínimo, estas situações de desemprego? É uma obrigação de todos pensar nisto. Mas claro que depois há sempre discordâncias. Porque, se calhar e infelizmente, o poder político nunca foi livre.
Quem é que o condiciona?
O poder político está sempre dependente do poder económico. Nós sabemos que os grandes é que dominam a Terra e é mais que certo que esta crise é fruto desse capitalismo selvagem. Está-se a organizar a sociedade como uma pirâmide em que a base é povo e no vértice estão meia dúzia de magnatas.
Há fome outra vez em Portugal?
Então não há? Todos os dias temos essa percepção: fábricas e empresas que fecham, o número de desempregados a aumentar. As contas são de arrepiar. Estamos numa situação muito má.
Tendo-se batido tantos anos no sector social... A realidade de hoje fá-lo sentir-se derrotado?
Derrotado não. Mas olho para isto tudo com pena. Mesmo assim, temos de cantar a esperança. Porque isto há-de melhorar. Estou convencido que os políticos e o governo hão-de acabar por descobrir que é ao povo que devem servir e que é por ele que se devem sacrificar. E que percebam que devem deixar a política clubista que têm seguido em detrimento do bem comum.
Hoje é 1 de Maio. Entende que os trabalhadores devem ir para a rua?
Que se manifestem, é um direito. E há situações em que devem mesmo manifestar-se, de acordo com a sua consciência de cidadania e até mesmo de acordo com a sua consciência cristã – porque a consciência cristã pode ser uma mais-valia para levar as pessoas a manifestarem-se e a exigir. Mas gostaria que as manifestações de hoje fossem como o 1.o de Maio logo a seguir à Revolução de Abril: uma manifestação em que os partidos, sobretudo os de esquerda, não aproveitassem para indispor as pessoas. Que seja uma manifestação de dentro, igual, sem bandeiras partidárias. Uma manifestação de cidadania e não uma demonstração de força deste ou daquele sindicato, deste ou daquele partido.
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