Uma bela surpresa é a qualidade da Orchestra Divino Sospiro, do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, regida por Enrico Onofri e tendo como solista a soprano Gemma Bertagnolli.
Você conhece ao menos um destes dois "Antónios": Pedro António Avondano e Francisco António de Almeida? Provavelmente, não. É que, em termos de música clássica, temos o péssimo hábito de valorizar só o que vem de fora - e não curtir as nossas raízes. A música portuguesa e brasileira do século 18 é ignorada e quase nunca programada em concertos. Normalmente, quando se fala em música lusa do período, pensa-se logo no excelente compositor e cravista português Carlos Seixas, possivelmente o único nome hoje com alguma circulação internacional.
Pois quem ouvir o recém-lançado CD 1700 - O Século dos Portugueses de música instrumental e vocal portuguesa do século 18 se surpreenderá com a excelente factura dos dois Antónios citados. Foi um período em que, de burras cheias por causa do início do ciclo do ouro de Minas Gerais - Lisboa arrecadou das Gerais 115 quilos em 1697, que passaram a 6,5 toneladas em 1715 e a espantosas 10 toneladas em 1739 -, o rei d. João V promoveu um ciclo dourado na vida musical na sua corte. Importou músicos italianos para ensinar os locais. Fundou em 1713 a Orquestra de Câmara Real, o Real Seminário de Música e instituiu, 90 anos antes dos franceses, um prêmio que custeava músicos portugueses em Roma por alguns anos.
Trouxe o reputado genovês Pietro Giorgio Avondano para dirigir a Orquestra de Câmara Real. O seu filho Pedro António (1714-1782) foi nome chave da música portuguesa no século 18. Logo, músicos locais que estudaram em Roma destacaram-se. É o caso do outro António - o Francisco António de Almeida (1702-1755). D. João V formou compositores e intérpretes, criou novos reportórios e instituições que lhes deram longevidade.
Outra bela surpresa é a qualidade da Orchestra Divino Sospiro, do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, regida por Enrico Onofri e tendo como solista a soprano Gemma Bertagnolli. Para avaliar como foi decisiva a chegada dos italianos nos anos 1720, até Domenico Scarlatti passou por Lisboa em 1720 (deu aulas à princesa Maria Bárbara de Bragança). A surpreendente produção para cravo de Carlos Seixas está aparentada a Scarlatti. Neste CD, aliás, há um interessante concerto para cravo anônimo atribuído a Seixas, cujo manuscrito está na biblioteca da Universidade de Coimbra. Outra clara influência de Scarlatti está na cantata "A quel leggiadro volto", para soprano e cordas, de Francisco António de Almeida, em que brilha a soprano italiana Gemma Bertagnolli. Ela e a Orchestra Divino Sospiro criam também momentos memoráveis em árias de Pedro António Avondano, como a "Scena de Berenice", "Non partir bell'idol mio" e "Perché se tanti siete".
Em 1728, o cosmopolitismo implantado por d. João V era visível na Orquestra Real de Câmara, que tinha 7 violinos, 2 violas, 2 cellos e 1 contrabaixo - todos estrangeiros. O único português da gema era Carlos Seixas. Neste grupo, o destaque era o líder, violinista e compositor Pietro Giorgio Avondano. Dele, a Orchestra Divino Sospiro interpreta, com muita correcção, duas sinfonias no formato lento-rápido-lento: uma em ré maior para cordas e contínuo que nada fica a dever às de Vivaldi; e outra, encantadora, em fá maior, para cordas, dois oboés e contínuo.
Por João Marcos Coelho, estadao.com.br
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